sábado, 11 de maio de 2019

O meu testemunho sobre o 25 de Abril de 1974


O meu testemunho sobre o 25 de Abril de 1974

Passados quarenta e cinco anos da revolução havida em Portugal, no dia 25 de Abril de 1974, sinto que muito há ainda por dizer sobre o contexto ligado a tão importante acontecimento da história recente de Portugal.
Os testemunhos já vindos a público têm dado a conhecer muitas das envolventes dos acontecimentos. No entanto, outras vivências, de quem era vivo e consciente na altura, têm, também, de vir a público para se tentar completar o cenário decorrido. Os testemunhos individuais, vividos pela própria pessoa, ajudarão tal propósito, sendo mais objectivos e reais do que muitas das interpretações já dadas a conhecer, algumas das quais são decorrentes da postura político-ideológica de quem as expõe e, portanto, nem sempre ajustadas à factualidade das situações que se desenrolaram. Para que a história registe toda a realidade é preciso que se disponha dos contributos e documentos abordando as mais variadas facetas que, além das análises políticas, contenham vivências reais e objectivas de pessoas que estiveram presentes nos acontecimentos, nas mais variadas situações e lugares.
É neste sentido que me predisponho a dar testemunho da minha vivência do 25 de Abril de 1974, quer das circunstâncias anteriores à data, quer das consequências posteriores ao acontecimento.
Tendo nascido em 1946, pude acompanhar, em consciência, o que era a vida no regime anterior ao 25 de Abril. A minha família era pobre (os meus pais eram operários fabris em Matosinhos, vila em que predominava a indústria conserveira e metalo-mecânica, a par duma ruralidade assente numa agricultura de subsistência ou pouco mais), tendo sido com dificuldade que me possibilitaram a frequência do curso industrial de electricista do ensino secundário. Anteriormente tinha frequentado o ensino primário numa escola privada reservada aos familiares dos irmãos da Confraria do Bom Jesus da Santa Casa da Misericórdia de Matosinhos, já que um tio do meu pai era um desses irmãos (um dos requisitos exigidos era de que os alunos tinham de ir calçados para as aulas. Ora eu nunca tinha tido sapatos – demasiado caros para as possibilidades económicas dos meus pais -, tendo a minha mãe solicitado ajuda à Junta de Freguesia, a qual me pagou o par de sapatos que possibilitou o meu ingresso na escola. Nesta escola tive o sortilégio de ter uma professora na 4ª classe, Professora Carmen, de grande sensibilidade humana, que se interessou pelo prosseguimento dos meus estudos, tendo-me dado explicações gratuitas – os meus pais não podiam pagar - para eu poder ser aprovado no exame de admissão à escola industrial, o que veio a acontecer).   
O contexto económico-político-social em que vivi, no período antecedente ao 25 de Abril de 1974, principalmente a partir da década de 60, era caracterizado por uma forte emigração, desenvolvimento económico crescente, instabilidade política e guerra nas colónias (com focos principais em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique), censura e limitações à liberdade de expressão e associação, presos políticos e tortura, baixos níveis de escolarização e largas faixas de pobreza. Notei, contudo, que a realidade dos últimos quinze anos do anterior regime se vinha a alterar, lenta e progressivamente, sendo a situação em 1974 muito diferente da do início dos anos sessenta. Como trabalhador por conta de outrem, na Chenop e no Banco Borges e Irmão, acompanhei a actividade sindical no Sindicato dos Eletricistas e, principalmente, no Sindicato dos Bancários do Norte, tendo, aqui, participado em algumas reuniões vigiadas pela polícia de forma ostensiva. Participei em manifestações proibidas no 1º de Maio de 1972 e 1973, assim como em cortejos da queima das fitas, sempre com cargas policiais e detenções de alguns participantes.
Iniciei a minha actividade laboral em 1961, com 15 anos de idade, na Chenop, com um salário razoável para a época e para a inexistência de experiência profissional anterior (trinta escudos por dia de 8 horas), já que sendo possuidor dum curso secundário fui admitido sem ter de passar pelas categorias de aprendiz. O leque salarial entre o director geral de uma grande empresa e um operário médio era de quatro para um. Havia actualizações salariais periódicas, ligeiramente acima da inflação, fruto do crescimento económico que se verificava.
Em 1968 fui chamado a cumprir o serviço militar, tendo sido mobilizado para Timor, passando à disponibilidade em 1972. Este recrutamento para o serviço militar interrompeu a carreira profissional e a frequência dos estudos superiores no Curso de Engenharia Eletromecânica do Instituto Industrial do Porto (actual Instituto Superior de Engenharia do Porto), sendo retomadas estas actividades após a cessação do serviço militar. Se já tinha pouca simpatia pelo regime político vigente, tal agravou-se fortemente com esta machadada na minha vida familiar (tinha casado em 1966), académica e profissional. Isto reflectiu-se na minha nula motivação na qualidade de prestação como militar, limitando-me a esperar que o tempo passasse para me livrar daquele empecilho. Paradoxalmente, a minha carreira militar foi passada na especialidade de segurança de transmissões, cargo de confiança na medida em que tinha acesso aos códigos de segurança utilizados nas comunicações militares, pelo facto de já não haver quantidade suficiente de recursos humanos no quadro permanente das forças armadas que permitisse que funções dessa elevada confiança e sensibilidade se mantivesse fora da alçada dos milicianos. Isto já é demonstrativo dalguma desorganização política do regime, pois o meu passado de comportamento político não abonava como fiel desse regime. Em situação idêntica encontrei muitos camaradas de armas, para quem o serviço militar era desagradável e prejudicial, encontrando-se, aqui, uma parte significativa do nulo apoio que esse regime teve para contrariar o 25 de Abril.  
Após a minha desmobilização do serviço militar, concluí o curso de Engenharia Eletromecânica e desenvolvi actividade profissional com o regresso à Chenop, e posteriores prestações profissionais no Banco Borges e Irmão, Instituto de Emprego e Formação Profissional, Texas Instruments e Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre. Em todas estas entidades encontrei um clima de distanciamento relativamente ao regime político, sendo poucos os activistas que tomavam posições de demarcação política, mesmo nas épocas eleitorais de 1969 e 1973 em que participaram listas da oposição, não havendo grande mobilização para a inscrição nos cadernos eleitorais, pelo que não foi difícil ao regime vencer essas eleições, incluindo o recurso à fraude e viciação dos resultados nalgumas circunscrições eleitorais. Igual cenário se tinha passado nas eleições presidenciais de 1958, em que o General Humberto Delgado participou como opositor ao regime. Esta figura é, ainda hoje, controversa, pois durante dezenas de anos foi figura grada do regime, tendo caucionado a PIDE como instituição de repressão e tortura, a censura política e a política colonial, acções estas que condicionaram o meu apoio à sua nova postura política.
As fragilidades do regime de então eram, cada vez mais, evidentes. Os milicianos, que compunham a maioria das forças armadas, cumpriam essa missão contrariados. A censura política tinha, cada vez mais, brechas que permitiam o acesso a livros e discos proibidos (na minha passagem por Macau, a caminho de Timor, comprei o livro vermelho de Mao Tsé Tung que estava exposto nas montras das livrarias desse território, ao contrário da sua proibição no território continental). A audição da Rádio Moscovo, Rádio Portugal Livre e Rádio Voz da Liberdade, proibidas pelo regime, era já prática de muitas pessoas. As actividades clandestinas desenvolvidas por várias forças políticas (PCP, MDP/CDE, LUAR, PS, etc…) iam causando mossa e suscitando simpatia nalguns sectores da população. A Assembleia Nacional dava voz a alguns deputados não alinhados (Ala Liberal onde se destacava Francisco Sá Carneiro) que, apesar de eleitos nas listas da ANP-Ação Nacional Popular (partido do regime) incomodavam o poder político e a facção que o apoiava. Na comunicação social portuguesa (jornais, rádio e televisão) eram frequentes as críticas ao regime, de forma aberta e encapotada, assumindo particular relevância o aparecimento do jornal Expresso, dos jornais Diário de Lisboa e República e dalguns programas da Rádio Renascença, Rádio Clube Português e RTP. No plano internacional, Portugal só tinha o apoio expresso da África do Sul, Espanha e Israel e a abstenção dalguns países ocidentais, sendo condenado, frequentemente, na Organização das  Nações Unidas e no Conselho da Europa. A pertença à NATO traduzia-se em apoio mitigado e hipócrita dos outros membros. Algum progresso económico e social, com um grande contributo da nossa pertença à EFTA, iam sossegando a generalidade da opinião pública (eu já em 1973 tinha automóvel próprio, bem de grande apetência pela população), mas sem grande entusiasmo apoiante (ressalve-se, aqui, a grande manifestação de professores de apoio ao regime, pouco tempo antes do 25 de Abril, assim como o apoio expresso pela maioria dos chefes militares das forças armadas). Na guerra colonial havia um sentimento alargado da sua insustentabilidade, sentimento este reforçado pela publicação do livro “Portugal e o Futuro” pelo general António de Spínola, caucionado pelo Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, General Costa Gomes, o que levou à sua exoneração dos cargos que ocupavam. Alguns oficiais oriundos da Academia Militar contestavam alguns atractivos concedidos a oficiais milicianos para se manterem nas forças armadas, que levavam a que se sentissem ultrapassados na sua condição militar (motivo principal que esteve na origem do movimento dos capitães que deu origem ao 25 de Abril). Enfim, o regime político, já se encontrava pouco apoiado, apesar da rede instalada de bufos, informadores e agentes policiais que iam suportando a essência da estrutura dirigente, com a conivência duma grande parte da hierarquia da Igreja Católica. Aqui, é relevante ter em conta que a relação entre o Estado e a Igreja Católica passou por algumas nuances que fragilizavam uma total sintonia. Por um lado, o Estado nunca reconheceu o ensino ministrado nas estruturas da Igreja (seminários, colégios e escolas associadas), ou outras instituições privadas, como equivalente ao ministrado nas escolas oficiais, obrigando os alunos a terem de prestar exames nos estabelecimentos oficiais para a obtenção da graduação pretendida. Por outro lado, vários sectores da Igreja Católica desenvolviam acções conflituantes com o regime, em linha com a realização do Concílio Vaticano II (disto são exemplos, os casos do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, obrigado ao exílio durante anos, e as reuniões da Capela do Rato onde militavam grandes intelectuais opositores ao regime). De destacar o papel importante desempenhado pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, onde se juntavam católicos relevantes e figuras políticas de destaque ligadas aos partidos políticos de oposição, na denúncia da tortura, prisões ilegais e julgamentos injustos, editando livros com essas denúncias que eram vendidos clandestinamente (possuo alguns desses livros). A atitude do Papa Paulo VI ao receber os dirigentes dos movimentos armados independentistas de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique provocou um grande abalo à já frágil identidade do Estado-Igreja. Esta posição da Igreja Católica encontra reflexo na forma como reagiu ao 25 de Abril, aceitando, sem grande entusiasmo, a nova ordem política instaurada.
Em 25 de Abril de 1974 encontrava-me, portanto, na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre, onde tinha sido admitido em Dezembro de 1973, em cuja administração se encontrava a família Pinto Basto, com uma postura política alinhada com a situação vigente mas sem grandes dogmatismos nem entusiasmos evidentes. A minha admissão como quadro técnico para chefiar o departamento de racionalização, métodos e tempos de trabalho, baseou-se em resultados de testes psicotécnicos após uma selecção resultante das respostas a um anúncio publicado num jornal. Não me senti escrutinado, na entrevista efectuada, em termos de enquadramento político nem me foram pedidas referências abonatórias, apesar de se tratar de preencher um lugar de chefia relevante. Como me encontrava a residir no Porto, foi-me disponibilizado utilizar, em Ílhavo, a residência onde se encontravam alojados os quadros técnicos deslocados, com direito a alojamento em quarto individual e refeições gratuitas, podendo, se quisesse, dispor duma moradia no aldeamento que a empresa dispunha para alguns dos seus colaboradores. A exemplo de muitas outras empresas, não se notava qualquer dinâmica política de contestação ao regime vigente, nos mais de 1.000 trabalhadores da seu quadro de pessoal em Ílhavo. Os trabalhadores auferiam baixas remunerações (cerca de 2.500$00 por mês para homens e 2.000$00 para mulheres) que eram complementadas com possibilidade de acesso ao refeitório, à cooperativa de consumo para aquisição de bens alimentares e de utilidades domésticas, à creche e ao aluguer de casas do aldeamento (a renda a pagar era de um dia de salário por mês). Os quadros técnicos auferiam remunerações acima da média nacional, como forma de atraí-los para uma localidade fora dos grandes centros urbanos (eu entrei com uma remuneração mensal de 10.000$00, o que me permitia pagar uma renda de casa - tipologia T3 -, no centro de Aveiro, no valor mensal de 3.000$00 – mais do que o salário mensal dum trabalhador. Por coincidência, a minha mudança de residência do Porto para Aveiro efectuou-se na semana entre o 25 de Abril de 1974 e o 1º de Maio, tendo assistido da varanda da nova residência à manifestação desse 1º de Maio).
A revolução do 25 de Abril não teve expressão significativa, nesse dia, quer na fábrica, quer na cidade de Aveiro. Na fábrica da Vista Alegre o dia de trabalho iniciava-se às 8 horas para os trabalhadores fabris e às 9 horas para os quadros técnicos e empregados de escritório. Para supervisionar a laboração fabril logo a partir das 8 horas, a empresa tinha uma escala de serviço dos quadros técnicos de forma a que um deles estivesse presente desde o início do dia. Aconteceu que nesse dia era eu que estava de serviço, pelo que me dirigi para a fábrica às 7,45 sem saber da revolução que se desenrolava em Lisboa. Um dos encarregados dirigiu-me, em tom pouco audível, perguntando se eu sabia de alguma coisa pois tinha ouvido na rádio umas notícias que davam conta duma revolta militar. Disse-lhe que nada sabia, pelo que lhe disse que o início da laboração iria decorrer como normalmente. No entanto, logo após a entrada dos trabalhadores, voltei à messe onde estava instalado e procurei saber do que se passava, tendo, então, sido posto ao corrente dos acontecimentos que se estavam a verificar em Lisboa. Às 9 horas a Direção da fábrica trocou algumas impressões, nada tendo decidido para alterar a laboração normal, o que se verificou sem qualquer perturbação, além da atenção com quem se ia seguindo as notícias pela rádio. No final do dia (era 5ª feira) desloquei-me ao centro de Aveiro e, também, nada de extraordinário, na movimentação pública, se passava além da alteração profunda na comunicação social, dando conta de que em Lisboa grande parte da população estava na rua apoiando a revolução. Telefonei para a minha avó no Porto, que morava perto da minha casa (eu ainda não tinha telefone pessoal), tendo a minha mulher, funcionária da segurança social, dito que tinha saído mais cedo do serviço mas que estava tudo sem grandes movimentações. No dia seguinte, sexta-feira, a empresa voltou a funcionar normalmente, tendo no final do dia feito a viagem de regresso ao Porto, para o fim de semana, sem qualquer questão anormal no movimento rodoviário. Nesse fim de semana estive a tratar da mudança de residência do Porto para Aveiro, com a vida corrente a decorrer normalmente, independentemente da alteração profunda nos órgãos de comunicação social que relatavam a revolução de forma entusiasta e vibrante.
Nos dias seguintes ao 25 de Abril começou-se a assistir a movimentações públicas, além das verificadas em Lisboa, que culminaram nas manifestações grandiosas do 1º de Maio em todo o País. Tem, então, início uma dinâmica de profunda alteração na vida das pessoas, das empresas e do País. Na fábrica da Vista Alegre, a Administração informa que se enquadra na nova situação, tendo o presidente do conselho de administração, Conde Bobone, convocado e dirigido um plenário de trabalhadores em que solicitou que estes elegessem uma comissão de trabalhadores. Constituiu-se um grupo organizador, de que fiz parte, que elaborou um regulamento de forma a permitir que todos os sectores da fábrica estivessem representados na comissão. Eu fui eleito como representante dos quadros técnicos e, logo a seguir, como coordenador da comissão.  
As consequências do 25 de Abril tiveram repercussão profunda no País e na vida das empresas, em termos de filosofia política e na realidade quotidiana. A fixação do salário mínimo em 3.300$00, nos sectores secundário e terciário, traduziu-se em aumentos significativos de salários que, em muitos casos, foram muito superiores a 25%.
Na Vista Alegre, foram congelados os salários superiores a 12.000$00 e revista a tabela de preços de venda dos produtos com aumentos superiores a 10%. Foi suspensa a nova metodologia de métodos e tempos de trabalho, muito contestada pelos trabalhadores, que permitiria aumentar a produtividade em mais de 30%. A Direção e a Administração da empresa mantiveram contactos frequentes com a comissão de trabalhadores, concertando posições e possibilitando a laboração em normalidade e uma certa paz social, apesar de, por vezes, as reivindicações dos trabalhadores assumirem um confronto em termos de linguagem e de posicionamento ideológico, quer através da comissão de trabalhadores, quer com a comissão intersindical de delegados sindicais (o jornal “Informativo”, editado por esta estrutura, é disso reflexo). Nunca houve uma greve na empresa (nem sequer alguma vez tal hipótese foi levantada nas duas comissões, em que se integravam membros já assumidos do Partido Comunista), nem foram saneadas quaisquer pessoas, apesar de se suspeitarem que algumas eram informadores da polícia política (PIDE/DGS) entretanto extinta, situações estas ímpares no contexto do país. Em Junho desse ano de 1974 a empresa comemorava o seu 150º aniversário, havendo um programa preparado com a participação do Presidente da República que foi deposto. Com a alteração da situação política, as comemorações decorreram sem qualquer entidade política de relevo, apesar de ter sido convidado o General António de Spínola como Chefe da Junta de Salvação Nacional. A Administração da empresa manteve-se em funções sem nunca ter sido questionada pelo novo poder político nem pela comissão de trabalhadores. Nunca houve atrasos no pagamento de salários nem despedimentos. Mesmo assim, houve tentativas externas de nacionalizar a empresa, tendo em conta a sua dimensão e a importância que tinha noutros sectores de actividade. A Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre, SARL, era detentora da totalidade do capital social da Eletro-Cerâmica (isoladores e outro material eléctrico em porcelana) e da Sociedade de Porcelanas (produção de pratos e chávenas para restauração), tinha incorporadas as unidades do Gabinete e Laboratório de Estudos, Interdecal (produção de decalcomanias) e Vialpo (extracção de caolino), detinha uma participação no capital social da Ivima (produção de vidro e cristal), além de que a família Pinto Basto detinha interesses significativos em explorações agrícolas, no turismo, na navegação, etc…, e acordos de cooperação tecnológica com um grande grupo cerâmico alemão (Hutschenreuther). Essa tentativa de nacionalização nunca teve qualquer receptividade por parte da comissão de trabalhadores e da comissão intersindical da Vista Alegre no seu todo (eu fiz parte das duas comissões), apesar das comissões de trabalhadores das outras empresas do grupo serem favoráveis à nacionalização (A Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre era, de longe, a mais importante do grupo, pelo que a sua comissão de trabalhadores preponderava sobre as restantes, com quem havia contactos regulares). Para tal contribuiu a possibilidade de diálogo e resolução dos problemas com a administração, além de que, associada à componente fabril, a empresa apoiava inúmeras actividades em benefício dos trabalhadores e da comunidade, como, por exemplo, o grupo de teatro, o orfeão, o clube desportivo (Sporting Club da Vista Alegre), a cooperativa de consumo, o bairro social, a creche, o refeitório, o corpo de bombeiros, a escola de formação, a quinta agrícola, médico diário, etc…, fazendo com que se possa dizer que estávamos mais em presença duma fundação do que uma empresa capitalista movida pelo maior lucro possível. Acresce que muitas das actividades destas estruturas eram desenvolvidas durante o horário fabril, o que afectava, significativamente, os níveis de produção, pois várias centenas de trabalhadores estavam afetos a essas estruturas (eu próprio fiz parte dos órgãos dirigentes do clube desportivo e da cooperativa de consumo). Apesar disso, a empresa tinha resultados económicos positivos da actividade produtiva, mas esses valores eram reinvestidos em equipamentos e modernização das instalações, já que, normalmente, no início de cada ano a administração pedia aos quadros técnicos propostas para a aplicação dos lucros do ano anterior. A isto não era indiferente a posição dominante do grupo familiar mais abastado da família Pinto Basto na administração da empresa, para quem os lucros da Vista Alegre não eram tão grandes que alterassem significativamente o seu poder económico. O administrador executivo com o pelouro da gestão técnica da fábrica de Ílhavo era o Engº José Alberto Pinto Basto, personalidade dotada dum espírito humanista e sensível às questões sociais, o que o tornava respeitado por todos os trabalhadores, sendo fácil e acessível o seu contacto.
Durante o período denominado “revolucionário”, entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, a Vista Alegre colaborou nos eventos políticos relevantes, nomeadamente trabalhando “no Dia de Trabalho para a Nação” (pessoalmente não estive muito de acordo com esta iniciativa, tendo trabalhado somente metade do dia) e participado, com uma delegação de trabalhadores, no 1º Congresso da Intersindical em liberdade. Foi, também, relevante a participação na discussão do Contrato Colectivo de Trabalho da Indústria Cerâmica (fiz parte da comissão negociadora sindical, em representação do Sindicato dos Engenheiros Técnicos de Norte), tendo sido dos primeiros contratos em que se consignou uma tabela única salarial igualando homens e mulheres. Na negociação deste contrato de trabalho, desempenhou papel relevante, em representação das entidades patronais, associadas na Associação Portuguesa de Cerâmica, o Engº José António Barros (administrador da Cinca), com quem se estabeleceu um clima de cordialidade que permitiu o acordo sem qualquer greve, situação inabitual para a época (grande parte do contrato foi acordado entre nós dois). A colaboração da Vista Alegre nas movimentações nacionais estendeu-se aos partidos políticos, tendo o PCP, através do seu dirigente local, Carlos Alberto, com quem mantinha boas relações pessoais, solicitado-me um contributo sobre a Vista Alegre, o que fiz sob a condição de confidencialidade, já que tal contributo incluía dados da vida interna da empresa que me colocavam problemas de consciência na sua divulgação pública.    
A situação periférica da Vista Alegre, relativamente aos grandes centros urbanos, fez com que a participação nos grandes eventos ligados à revolução do 25 de Abril fosse de carácter residual, sem grandes implicações no quotidiano fabril. Por outro lado, as relações pessoais existentes entre todos os que trabalhavam na fábrica eram facilitadas por uma vivência de proximidade, cultivando amizades mesmo entre aqueles que se situavam em quadrantes políticos diferentes. Por tal, o 25 de Abril de 1974 e as suas incidências consequentes, repercutiu-se na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre de forma singular e diferenciada de grande parte do País.

V.N.Gaia, 25 de Abril de 2019
Manuel Hipólito Almeida dos Santos


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