O meu testemunho sobre o 25 de Abril de 1974
Passados
quarenta e cinco anos da revolução havida em Portugal, no dia 25 de Abril de
1974, sinto que muito há ainda por dizer sobre o contexto ligado a tão
importante acontecimento da história recente de Portugal.
Os testemunhos
já vindos a público têm dado a conhecer muitas das envolventes dos
acontecimentos. No entanto, outras vivências, de quem era vivo e consciente na
altura, têm, também, de vir a público para se tentar completar o cenário
decorrido. Os testemunhos individuais, vividos pela própria pessoa, ajudarão
tal propósito, sendo mais objectivos e reais do que muitas das interpretações
já dadas a conhecer, algumas das quais são decorrentes da postura
político-ideológica de quem as expõe e, portanto, nem sempre ajustadas à
factualidade das situações que se desenrolaram. Para que a história registe
toda a realidade é preciso que se disponha dos contributos e documentos
abordando as mais variadas facetas que, além das análises políticas, contenham
vivências reais e objectivas de pessoas que estiveram presentes nos
acontecimentos, nas mais variadas situações e lugares.
É neste sentido
que me predisponho a dar testemunho da minha vivência do 25 de Abril de 1974,
quer das circunstâncias anteriores à data, quer das consequências posteriores
ao acontecimento.
Tendo nascido em
1946, pude acompanhar, em consciência, o que era a vida no regime anterior ao
25 de Abril. A minha família era pobre (os meus pais eram operários fabris em
Matosinhos, vila em que predominava a indústria conserveira e metalo-mecânica,
a par duma ruralidade assente numa agricultura de subsistência ou pouco mais),
tendo sido com dificuldade que me possibilitaram a frequência do curso
industrial de electricista do ensino secundário. Anteriormente tinha
frequentado o ensino primário numa escola privada reservada aos familiares dos
irmãos da Confraria do Bom Jesus da Santa Casa da Misericórdia de Matosinhos,
já que um tio do meu pai era um desses irmãos (um dos requisitos exigidos era
de que os alunos tinham de ir calçados para as aulas. Ora eu nunca tinha tido
sapatos – demasiado caros para as possibilidades económicas dos meus pais -, tendo
a minha mãe solicitado ajuda à Junta de Freguesia, a qual me pagou o par de
sapatos que possibilitou o meu ingresso na escola. Nesta escola tive o
sortilégio de ter uma professora na 4ª classe, Professora Carmen, de grande
sensibilidade humana, que se interessou pelo prosseguimento dos meus estudos,
tendo-me dado explicações gratuitas – os meus pais não podiam pagar - para eu
poder ser aprovado no exame de admissão à escola industrial, o que veio a
acontecer).
O contexto
económico-político-social em que vivi, no período antecedente ao 25 de Abril de
1974, principalmente a partir da década de 60, era caracterizado por uma forte
emigração, desenvolvimento económico crescente, instabilidade política e guerra
nas colónias (com focos principais em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique), censura
e limitações à liberdade de expressão e associação, presos políticos e tortura,
baixos níveis de escolarização e largas faixas de pobreza. Notei, contudo, que
a realidade dos últimos quinze anos do anterior regime se vinha a alterar,
lenta e progressivamente, sendo a situação em 1974 muito diferente da do início
dos anos sessenta. Como trabalhador por conta de outrem, na Chenop e no Banco
Borges e Irmão, acompanhei a actividade sindical no Sindicato dos Eletricistas
e, principalmente, no Sindicato dos Bancários do Norte, tendo, aqui,
participado em algumas reuniões vigiadas pela polícia de forma ostensiva.
Participei em manifestações proibidas no 1º de Maio de 1972 e 1973, assim como
em cortejos da queima das fitas, sempre com cargas policiais e detenções de
alguns participantes.
Iniciei a minha
actividade laboral em 1961, com 15 anos de idade, na Chenop, com um salário
razoável para a época e para a inexistência de experiência profissional
anterior (trinta escudos por dia de 8 horas), já que sendo possuidor dum curso
secundário fui admitido sem ter de passar pelas categorias de aprendiz. O leque
salarial entre o director geral de uma grande empresa e um operário médio era
de quatro para um. Havia actualizações salariais periódicas, ligeiramente acima
da inflação, fruto do crescimento económico que se verificava.
Em 1968 fui chamado
a cumprir o serviço militar, tendo sido mobilizado para Timor, passando à
disponibilidade em 1972. Este recrutamento para o serviço militar interrompeu a
carreira profissional e a frequência dos estudos superiores no Curso de
Engenharia Eletromecânica do Instituto Industrial do Porto (actual Instituto
Superior de Engenharia do Porto), sendo retomadas estas actividades após a
cessação do serviço militar. Se já tinha pouca simpatia pelo regime político
vigente, tal agravou-se fortemente com esta machadada na minha vida familiar
(tinha casado em 1966), académica e profissional. Isto reflectiu-se na minha
nula motivação na qualidade de prestação como militar, limitando-me a esperar
que o tempo passasse para me livrar daquele empecilho. Paradoxalmente, a minha
carreira militar foi passada na especialidade de segurança de transmissões,
cargo de confiança na medida em que tinha acesso aos códigos de segurança
utilizados nas comunicações militares, pelo facto de já não haver quantidade
suficiente de recursos humanos no quadro permanente das forças armadas que
permitisse que funções dessa elevada confiança e sensibilidade se mantivesse
fora da alçada dos milicianos. Isto já é demonstrativo dalguma desorganização
política do regime, pois o meu passado de comportamento político não abonava
como fiel desse regime. Em situação idêntica encontrei muitos camaradas de
armas, para quem o serviço militar era desagradável e prejudicial,
encontrando-se, aqui, uma parte significativa do nulo apoio que esse regime
teve para contrariar o 25 de Abril.
Após a minha
desmobilização do serviço militar, concluí o curso de Engenharia Eletromecânica
e desenvolvi actividade profissional com o regresso à Chenop, e posteriores
prestações profissionais no Banco Borges e Irmão, Instituto de Emprego e
Formação Profissional, Texas Instruments e Fábrica de Porcelanas da Vista
Alegre. Em todas estas entidades encontrei um clima de distanciamento
relativamente ao regime político, sendo poucos os activistas que tomavam
posições de demarcação política, mesmo nas épocas eleitorais de 1969 e 1973 em
que participaram listas da oposição, não havendo grande mobilização para a
inscrição nos cadernos eleitorais, pelo que não foi difícil ao regime vencer
essas eleições, incluindo o recurso à fraude e viciação dos resultados nalgumas
circunscrições eleitorais. Igual cenário se tinha passado nas eleições
presidenciais de 1958, em que o General Humberto Delgado participou como
opositor ao regime. Esta figura é, ainda hoje, controversa, pois durante
dezenas de anos foi figura grada do regime, tendo caucionado a PIDE como
instituição de repressão e tortura, a censura política e a política colonial,
acções estas que condicionaram o meu apoio à sua nova postura política.
As fragilidades
do regime de então eram, cada vez mais, evidentes. Os milicianos, que compunham
a maioria das forças armadas, cumpriam essa missão contrariados. A censura
política tinha, cada vez mais, brechas que permitiam o acesso a livros e discos
proibidos (na minha passagem por Macau, a caminho de Timor, comprei o livro
vermelho de Mao Tsé Tung que estava exposto nas montras das livrarias desse
território, ao contrário da sua proibição no território continental). A audição
da Rádio Moscovo, Rádio Portugal Livre e Rádio Voz da Liberdade, proibidas pelo
regime, era já prática de muitas pessoas. As actividades clandestinas
desenvolvidas por várias forças políticas (PCP, MDP/CDE, LUAR, PS, etc…) iam
causando mossa e suscitando simpatia nalguns sectores da população. A
Assembleia Nacional dava voz a alguns deputados não alinhados (Ala Liberal onde
se destacava Francisco Sá Carneiro) que, apesar de eleitos nas listas da ANP-Ação
Nacional Popular (partido do regime) incomodavam o poder político e a facção
que o apoiava. Na comunicação social portuguesa (jornais, rádio e televisão)
eram frequentes as críticas ao regime, de forma aberta e encapotada, assumindo
particular relevância o aparecimento do jornal Expresso, dos jornais Diário de
Lisboa e República e dalguns programas da Rádio Renascença, Rádio Clube
Português e RTP. No plano internacional, Portugal só tinha o apoio expresso da
África do Sul, Espanha e Israel e a abstenção dalguns países ocidentais, sendo
condenado, frequentemente, na Organização das
Nações Unidas e no Conselho da Europa. A pertença à NATO traduzia-se em
apoio mitigado e hipócrita dos outros membros. Algum progresso económico e
social, com um grande contributo da nossa pertença à EFTA, iam sossegando a
generalidade da opinião pública (eu já em 1973 tinha automóvel próprio, bem de
grande apetência pela população), mas sem grande entusiasmo apoiante
(ressalve-se, aqui, a grande manifestação de professores de apoio ao regime,
pouco tempo antes do 25 de Abril, assim como o apoio expresso pela maioria dos
chefes militares das forças armadas). Na guerra colonial havia um sentimento
alargado da sua insustentabilidade, sentimento este reforçado pela publicação
do livro “Portugal e o Futuro” pelo general António de Spínola, caucionado pelo
Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, General Costa Gomes, o que
levou à sua exoneração dos cargos que ocupavam. Alguns oficiais oriundos da
Academia Militar contestavam alguns atractivos concedidos a oficiais milicianos
para se manterem nas forças armadas, que levavam a que se sentissem ultrapassados
na sua condição militar (motivo principal que esteve na origem do movimento dos
capitães que deu origem ao 25 de Abril). Enfim, o regime político, já se
encontrava pouco apoiado, apesar da rede instalada de bufos, informadores e
agentes policiais que iam suportando a essência da estrutura dirigente, com a
conivência duma grande parte da hierarquia da Igreja Católica. Aqui, é
relevante ter em conta que a relação entre o Estado e a Igreja Católica passou
por algumas nuances que fragilizavam uma total sintonia. Por um lado, o Estado
nunca reconheceu o ensino ministrado nas estruturas da Igreja (seminários,
colégios e escolas associadas), ou outras instituições privadas, como
equivalente ao ministrado nas escolas oficiais, obrigando os alunos a terem de prestar
exames nos estabelecimentos oficiais para a obtenção da graduação pretendida. Por
outro lado, vários sectores da Igreja Católica desenvolviam acções
conflituantes com o regime, em linha com a realização do Concílio Vaticano II
(disto são exemplos, os casos do Bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes,
obrigado ao exílio durante anos, e as reuniões da Capela do Rato onde militavam
grandes intelectuais opositores ao regime). De destacar o papel importante
desempenhado pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, onde se
juntavam católicos relevantes e figuras políticas de destaque ligadas aos
partidos políticos de oposição, na denúncia da tortura, prisões ilegais e
julgamentos injustos, editando livros com essas denúncias que eram vendidos clandestinamente
(possuo alguns desses livros). A atitude do Papa Paulo VI ao receber os
dirigentes dos movimentos armados independentistas de Angola, Guiné-Bissau e
Moçambique provocou um grande abalo à já frágil identidade do Estado-Igreja. Esta
posição da Igreja Católica encontra reflexo na forma como reagiu ao 25 de
Abril, aceitando, sem grande entusiasmo, a nova ordem política instaurada.
Em 25 de Abril
de 1974 encontrava-me, portanto, na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre, onde
tinha sido admitido em Dezembro de 1973, em cuja administração se encontrava a
família Pinto Basto, com uma postura política alinhada com a situação vigente
mas sem grandes dogmatismos nem entusiasmos evidentes. A minha admissão como
quadro técnico para chefiar o departamento de racionalização, métodos e tempos
de trabalho, baseou-se em resultados de testes psicotécnicos após uma selecção
resultante das respostas a um anúncio publicado num jornal. Não me senti
escrutinado, na entrevista efectuada, em termos de enquadramento político nem
me foram pedidas referências abonatórias, apesar de se tratar de preencher um
lugar de chefia relevante. Como me encontrava a residir no Porto, foi-me
disponibilizado utilizar, em Ílhavo, a residência onde se encontravam alojados
os quadros técnicos deslocados, com direito a alojamento em quarto individual e
refeições gratuitas, podendo, se quisesse, dispor duma moradia no aldeamento
que a empresa dispunha para alguns dos seus colaboradores. A exemplo de muitas
outras empresas, não se notava qualquer dinâmica política de contestação ao
regime vigente, nos mais de 1.000 trabalhadores da seu quadro de pessoal em Ílhavo.
Os trabalhadores auferiam baixas remunerações (cerca de 2.500$00 por mês para
homens e 2.000$00 para mulheres) que eram complementadas com possibilidade de
acesso ao refeitório, à cooperativa de consumo para aquisição de bens
alimentares e de utilidades domésticas, à creche e ao aluguer de casas do
aldeamento (a renda a pagar era de um dia de salário por mês). Os quadros
técnicos auferiam remunerações acima da média nacional, como forma de atraí-los
para uma localidade fora dos grandes centros urbanos (eu entrei com uma
remuneração mensal de 10.000$00, o que me permitia pagar uma renda de casa -
tipologia T3 -, no centro de Aveiro, no valor mensal de 3.000$00 – mais do que
o salário mensal dum trabalhador. Por coincidência, a minha mudança de
residência do Porto para Aveiro efectuou-se na semana entre o 25 de Abril de
1974 e o 1º de Maio, tendo assistido da varanda da nova residência à manifestação
desse 1º de Maio).
A revolução do
25 de Abril não teve expressão significativa, nesse dia, quer na fábrica, quer
na cidade de Aveiro. Na fábrica da Vista Alegre o dia de trabalho iniciava-se
às 8 horas para os trabalhadores fabris e às 9 horas para os quadros técnicos e
empregados de escritório. Para supervisionar a laboração fabril logo a partir
das 8 horas, a empresa tinha uma escala de serviço dos quadros técnicos de
forma a que um deles estivesse presente desde o início do dia. Aconteceu que
nesse dia era eu que estava de serviço, pelo que me dirigi para a fábrica às
7,45 sem saber da revolução que se desenrolava em Lisboa. Um dos encarregados
dirigiu-me, em tom pouco audível, perguntando se eu sabia de alguma coisa pois
tinha ouvido na rádio umas notícias que davam conta duma revolta militar.
Disse-lhe que nada sabia, pelo que lhe disse que o início da laboração iria
decorrer como normalmente. No entanto, logo após a entrada dos trabalhadores,
voltei à messe onde estava instalado e procurei saber do que se passava, tendo,
então, sido posto ao corrente dos acontecimentos que se estavam a verificar em
Lisboa. Às 9 horas a Direção da fábrica trocou algumas impressões, nada tendo
decidido para alterar a laboração normal, o que se verificou sem qualquer
perturbação, além da atenção com quem se ia seguindo as notícias pela rádio. No
final do dia (era 5ª feira) desloquei-me ao centro de Aveiro e, também, nada de
extraordinário, na movimentação pública, se passava além da alteração profunda
na comunicação social, dando conta de que em Lisboa grande parte da população
estava na rua apoiando a revolução. Telefonei para a minha avó no Porto, que
morava perto da minha casa (eu ainda não tinha telefone pessoal), tendo a minha
mulher, funcionária da segurança social, dito que tinha saído mais cedo do
serviço mas que estava tudo sem grandes movimentações. No dia seguinte,
sexta-feira, a empresa voltou a funcionar normalmente, tendo no final do dia
feito a viagem de regresso ao Porto, para o fim de semana, sem qualquer questão
anormal no movimento rodoviário. Nesse fim de semana estive a tratar da mudança
de residência do Porto para Aveiro, com a vida corrente a decorrer normalmente,
independentemente da alteração profunda nos órgãos de comunicação social que relatavam
a revolução de forma entusiasta e vibrante.
Nos dias
seguintes ao 25 de Abril começou-se a assistir a movimentações públicas, além
das verificadas em Lisboa, que culminaram nas manifestações grandiosas do 1º de
Maio em todo o País. Tem, então, início uma dinâmica de profunda alteração na
vida das pessoas, das empresas e do País. Na fábrica da Vista Alegre, a
Administração informa que se enquadra na nova situação, tendo o presidente do
conselho de administração, Conde Bobone, convocado e dirigido um plenário de
trabalhadores em que solicitou que estes elegessem uma comissão de
trabalhadores. Constituiu-se um grupo organizador, de que fiz parte, que
elaborou um regulamento de forma a permitir que todos os sectores da fábrica
estivessem representados na comissão. Eu fui eleito como representante dos
quadros técnicos e, logo a seguir, como coordenador da comissão.
As consequências
do 25 de Abril tiveram repercussão profunda no País e na vida das empresas, em
termos de filosofia política e na realidade quotidiana. A fixação do salário
mínimo em 3.300$00, nos sectores secundário e terciário, traduziu-se em
aumentos significativos de salários que, em muitos casos, foram muito
superiores a 25%.
Na Vista Alegre,
foram congelados os salários superiores a 12.000$00 e revista a tabela de
preços de venda dos produtos com aumentos superiores a 10%. Foi suspensa a nova
metodologia de métodos e tempos de trabalho, muito contestada pelos
trabalhadores, que permitiria aumentar a produtividade em mais de 30%. A Direção
e a Administração da empresa mantiveram contactos frequentes com a comissão de
trabalhadores, concertando posições e possibilitando a laboração em normalidade
e uma certa paz social, apesar de, por vezes, as reivindicações dos
trabalhadores assumirem um confronto em termos de linguagem e de posicionamento
ideológico, quer através da comissão de trabalhadores, quer com a comissão
intersindical de delegados sindicais (o jornal “Informativo”, editado por esta
estrutura, é disso reflexo). Nunca houve uma greve na empresa (nem sequer
alguma vez tal hipótese foi levantada nas duas comissões, em que se integravam
membros já assumidos do Partido Comunista), nem foram saneadas quaisquer
pessoas, apesar de se suspeitarem que algumas eram informadores da polícia política
(PIDE/DGS) entretanto extinta, situações estas ímpares no contexto do país. Em
Junho desse ano de 1974 a empresa comemorava o seu 150º aniversário, havendo um
programa preparado com a participação do Presidente da República que foi
deposto. Com a alteração da situação política, as comemorações decorreram sem
qualquer entidade política de relevo, apesar de ter sido convidado o General
António de Spínola como Chefe da Junta de Salvação Nacional. A Administração da
empresa manteve-se em funções sem nunca ter sido questionada pelo novo poder
político nem pela comissão de trabalhadores. Nunca houve atrasos no pagamento
de salários nem despedimentos. Mesmo assim, houve tentativas externas de
nacionalizar a empresa, tendo em conta a sua dimensão e a importância que tinha
noutros sectores de actividade. A Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre, SARL,
era detentora da totalidade do capital social da Eletro-Cerâmica (isoladores e
outro material eléctrico em porcelana) e da Sociedade de Porcelanas (produção
de pratos e chávenas para restauração), tinha incorporadas as unidades do
Gabinete e Laboratório de Estudos, Interdecal (produção de decalcomanias) e
Vialpo (extracção de caolino), detinha uma participação no capital social da
Ivima (produção de vidro e cristal), além de que a família Pinto Basto detinha
interesses significativos em explorações agrícolas, no turismo, na navegação,
etc…, e acordos de cooperação tecnológica com um grande grupo cerâmico alemão
(Hutschenreuther). Essa tentativa de nacionalização nunca teve qualquer
receptividade por parte da comissão de trabalhadores e da comissão
intersindical da Vista Alegre no seu todo (eu fiz parte das duas comissões),
apesar das comissões de trabalhadores das outras empresas do grupo serem
favoráveis à nacionalização (A Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre era, de
longe, a mais importante do grupo, pelo que a sua comissão de trabalhadores
preponderava sobre as restantes, com quem havia contactos regulares). Para tal
contribuiu a possibilidade de diálogo e resolução dos problemas com a
administração, além de que, associada à componente fabril, a empresa apoiava
inúmeras actividades em benefício dos trabalhadores e da comunidade, como, por
exemplo, o grupo de teatro, o orfeão, o clube desportivo (Sporting Club da Vista
Alegre), a cooperativa de consumo, o bairro social, a creche, o refeitório, o
corpo de bombeiros, a escola de formação, a quinta agrícola, médico diário,
etc…, fazendo com que se possa dizer que estávamos mais em presença duma
fundação do que uma empresa capitalista movida pelo maior lucro possível.
Acresce que muitas das actividades destas estruturas eram desenvolvidas durante
o horário fabril, o que afectava, significativamente, os níveis de produção,
pois várias centenas de trabalhadores estavam afetos a essas estruturas (eu próprio fiz parte dos órgãos dirigentes do clube desportivo e da cooperativa de consumo). Apesar
disso, a empresa tinha resultados económicos positivos da actividade produtiva,
mas esses valores eram reinvestidos em equipamentos e modernização das
instalações, já que, normalmente, no início de cada ano a administração pedia
aos quadros técnicos propostas para a aplicação dos lucros do ano anterior. A
isto não era indiferente a posição dominante do grupo familiar mais abastado da
família Pinto Basto na administração da empresa, para quem os lucros da Vista
Alegre não eram tão grandes que alterassem significativamente o seu poder
económico. O administrador executivo com o pelouro da gestão técnica da fábrica
de Ílhavo era o Engº José Alberto Pinto Basto, personalidade dotada dum
espírito humanista e sensível às questões sociais, o que o tornava respeitado
por todos os trabalhadores, sendo fácil e acessível o seu contacto.
Durante o
período denominado “revolucionário”, entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de
Novembro de 1975, a Vista Alegre colaborou nos eventos políticos relevantes,
nomeadamente trabalhando “no Dia de Trabalho para a Nação” (pessoalmente não
estive muito de acordo com esta iniciativa, tendo trabalhado somente metade do
dia) e participado, com uma delegação de trabalhadores, no 1º Congresso da
Intersindical em liberdade. Foi, também, relevante a participação na discussão
do Contrato Colectivo de Trabalho da Indústria Cerâmica (fiz parte da comissão
negociadora sindical, em representação do Sindicato dos Engenheiros Técnicos de
Norte), tendo sido dos primeiros contratos em que se consignou uma tabela única
salarial igualando homens e mulheres. Na negociação deste contrato de trabalho,
desempenhou papel relevante, em representação das entidades patronais,
associadas na Associação Portuguesa de Cerâmica, o Engº José António Barros
(administrador da Cinca), com quem se estabeleceu um clima de cordialidade que
permitiu o acordo sem qualquer greve, situação inabitual para a época (grande
parte do contrato foi acordado entre nós dois). A colaboração da Vista Alegre
nas movimentações nacionais estendeu-se aos partidos políticos, tendo o PCP,
através do seu dirigente local, Carlos Alberto, com quem mantinha boas relações
pessoais, solicitado-me um contributo sobre a Vista Alegre, o que fiz sob a
condição de confidencialidade, já que tal contributo incluía dados da vida
interna da empresa que me colocavam problemas de consciência na sua divulgação
pública.
A situação periférica
da Vista Alegre, relativamente aos grandes centros urbanos, fez com que a
participação nos grandes eventos ligados à revolução do 25 de Abril fosse de
carácter residual, sem grandes implicações no quotidiano fabril. Por outro lado,
as relações pessoais existentes entre todos os que trabalhavam na fábrica eram
facilitadas por uma vivência de proximidade, cultivando amizades mesmo entre
aqueles que se situavam em quadrantes políticos diferentes. Por tal, o 25 de
Abril de 1974 e as suas incidências consequentes, repercutiu-se na Fábrica de
Porcelanas da Vista Alegre de forma singular e diferenciada de grande parte do
País.
V.N.Gaia, 25 de
Abril de 2019
Manuel Hipólito
Almeida dos Santos
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