Uma
Vida com os Direitos Humanos
Manuel
Hipólito Almeida dos Santos
Edição
do Autor
Índice
Introdução . 7
1
– A infância . 9
2
- Os primórdios do engajamento nas questões sociais . 17
3
– Amnistia Internacional . 21
4
– DECO - Assoc. Portuguesa para a Defesa do Consumidor. 59
5
– O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos . 73
6
– Rotary International . 93
7
– Fórum Portucalense . 105
8
– Maçonaria .107
9
– Outras associações e instituições . 121
10
– Ideias-chave para uma Política de Base Social. 123
11 – Um exemplo de vivência de relações sociais no
trabalho.127
Síntese
da atividade académica e profissional . 131
Publicações
do autor. 133
Ficha
Técnica . 135
Introdução
O
presente livro, o décimo que publico desde 1985, tem o objetivo de deixar o registo
de uma grande parte da minha vida, na qual desenvolvi atividade intensa em
matérias de direitos humanos, desde a sua aplicabilidade na vida quotidiana das
pessoas, nas relações com o poder político, no exercício da atividade
profissional e nas interações com os órgãos de comunicação social. Uma visão
mais alargada da minha vida e do meu pensamento, a outras áreas, pode ser encontrada
no meu blogue, cujo endereço se encontra na ficha técnica, e nos livros que já
publiquei, identificados no final deste livro.
Poderá
parecer que quero relevar um certo orgulho pela atividade em que me envolvi,
mas quem me conhece sabe que nunca me quis colocar em bicos de pés, até porque
tenho consciência dos muitos erros que cometi e do sofrimento que,
involuntariamente, possa ter causado a pessoas que comigo conviveram.
Gostaria
que da leitura do texto deste livro não se visse qualquer espírito laudatório,
mas, apenas, o relato de vivências das quais quero deixar testemunho.
Propositadamente, não refiro aspetos que poderiam afetar o direito à
privacidade de pessoas inseridas, de forma direta e indireta, nos testemunhos
que relato, independentemente dos laços afetivos que muitas vezes se criaram.
Obviamente
que as ações relatadas tiveram, em muitos casos, um preço muito alto, pago,
nomeadamente, pela família e pelas pessoas com quem mais de perto me
relacionei, já que recaiu sobre elas o peso das minhas ausências e a
disponibilidade maior que lhes poderia dedicar. Para elas o meu pedido de
perdão e que sintam que nunca tive o propósito deliberado de lhes causar mágoa
ou sofrimento.
É justo
que manifeste a minha gratidão a todas as pessoas que me têm acompanhado ao
longo da vida e que permitiram que eu possa dar este testemunho de ter vivido
uma vida com os direitos humanos.
Como
nota adicional, é provável que nos textos deste livro apareçam palavras com a
ortografia antiga e com a ortografia do novo acordo ortográfico, tendo
escolhido, em muitas palavras, a ortografia que pareceu mais adequada.
V.N.Gaia,
Maio de 2022
1 –
A infância
Nasci numa família humilde, cujos meios de subsistência provinham do trabalho braçal. Do lado dos avós maternos, o meu avô (Francisco de Almeida), explorava, aquando do meu nascimento, uma carvoaria (estabelecimento de revenda de carvão) situada paredes meias com a Fonte dos Dois Amigos, nas imediações em frente da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos. A minha avó (Emília Dias da Silva) foi, toda a vida, doméstica, como era comum naquele tempo. Tiveram sete filhos (cinco raparigas – Alzira, Lina, Alice, Emília (minha mãe) e Almerinda - e dois rapazes – Carlos e Francisco), cujos sobrenomes eram Dias de Almeida. Do lado dos meus avós paternos, o meu avô (Manuel dos Santos) foi pescador numa traineira em Matosinhos e a minha avó (Rosália da Conceição Rodrigues) era doméstica. Tiveram três filhos (dois rapazes – Hipólito (meu pai) e Honório (meu padrinho) e uma rapariga - Antonieta (minha madrinha), de sobrenomes Santos.
Todos estes meus
ascendentes frequentaram a escola primária, mas nem todos concluíram os 3 anos
correspondentes ao 1ºgrau. O analfabetismo era, nesse tempo, elevadíssimo, mas
todos estes meus ascendentes já sabiam ler e escrever, ainda que com muitas
insuficiências.
Meus pais, Hipólito e
Emília, nascidos em 15/12/1926 e 04/06/1929, respetivamente, casaram em 1946 e
foram viver para casa dos meus avós maternos, situada no início da Avenida D.
Afonso Henriques (esquina com a Rua Dr. José Ventura nº 294), mesmo em frente da
Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, casa esta onde moravam todos os meus
ascendentes maternos atrás referidos. Os meus avós paternos viviam na Rua
Cartelas Vieira, a cerca de 100 metros da casa dos avós maternos. O meu pai era
serralheiro mecânico e, em 1946, exercia essa profissão na serralharia Vulcano
situada na Rua Dr. José Ventura, também paredes meias com a Fonte dos Dois
Amigos. A minha mãe era padeira (distribuidora de pão ao domicílio).
O quotidiano era
vivido numa área geográfica muito pequena, em que os empregos e a moradas se
situavam em locais de grande proximidade, sendo as deslocações efetuadas a pé.
Os transportes coletivos existentes (comboios e elétricos) eram raramente
utilizados, pois eram caros e desnecessários para a vida corrente.
Nasci a 4 de Novembro
de 1946, tendo o parto decorrido na morada da família, como era normal nesse
tempo, tendo-me sido posto o nome de Manuel Hipólito de Almeida Santos. A 4 de
Fevereiro de 1948 nasceu a minha irmã Dulce Albertina de Almeida Santos.
As recordações dos
primeiros anos da infância são poucas e muito ténues. Passava o tempo entre a
casa dos avós maternos e dos paternos e era apaparicado por toda a família.
Recordo-me que o meu tio Francisco, ainda adolescente, brincava muito comigo e
transportava-me num pequeno carro, por ele construído, com uma pequena caixa
onde eu me sentava e movido sobre quatro pequenas rodas de cortiça (estas rodas
eram utilizadas como boias nas redes de pesca). Numa das ocasiões, tendo eu
cerca de 6 anos de idade, levou-me a assistir a um jogo de futebol num terreno
privado não cultivado, entre equipas de amigos de ocasião, em que as duas
balizas eram sinalizadas com duas pedras, em cada baliza, que eram colocadas
com uma distância que traduzia a dimensão da baliza (cerca de 4 m). Eu fiquei
sentado num muro que ladeava o campo. Era normal esse terreno ser utilizado
para estes jogos mas, sempre, vigiando se aparecia o dono, já que este não
autorizava a sua utilização. Quando o dono aparecia toda a gente fugia ante os
seus impropérios. Nesse dia aconteceu algo inesperado. Não só apareceu o dono
do terreno como veio acompanhado dum contingente de polícias que cercaram o
campo e levaram toda a gente para a esquadra de Matosinhos. E lá fui eu preso,
pois a polícia não teve contemplação pela minha idade nem pelo facto de eu só
estar a assistir ao jogo. Passadas poucas horas a minha mãe foi buscar-me à
esquadra e levou-me para casa, ficando o meu tio e os outros colegas mais algum
tempo na esquadra.
Também me recordo de
algumas passagens na casa dos meus avós paternos, nomeadamente do lanche
constituído por uma malga (pequena tigela) de cevada acompanhada de pão com
manteiga. Eu gostava de molhar o pão na cevada ficando a manteiga a boiar, que
bebia de seguida, constituindo um pitéu que muito apreciava. Também gostava de
ir para a traineira onde o meu avô era pescador, nos períodos de intervalo
entre a descarga do peixe e a nova saída para o mar. Era normal dormir a sesta,
durante a tarde, num pequeno quarto em casa destes avós. Enquanto não adormecia
estava atento à passagem de ratos no corredor em frente do quarto (a presença
de ratos nas casas era comum e todas as famílias tinham gatos e ratoeiras para
os apanhar, usando pequenos pedaços de queijo como isco, mas a maioria escapava
ao gato e à ratoeira). Também ficou gravado na minha memória o programa "Meditando", que a minha avó gostava de ouvir, transmitido diariamente na Rádio Renascença ao final da tarde, em que a música de fundo era a suite "Air" de J.S.Bach, despertando o meu gosto pela música clássica e pela reflexão sobre o cristianismo.
Uma outra recordação
relaciona-se com os homens que recolhiam papel usado num grande saco. Esta
figura humana era usada para amedrontar as crianças, pois era-lhes dito que se
se portassem mal o homem levava-as dentro do saco e não mais voltavam a casa.
Eu tive, sempre muito medo do” homem do saco” bastando a sua invocação para me
aquietar.
O vestuário que usava era de variedade pequena, circunstância inerente à esmagadora maioria das pessoas, tendo em conta o baixo poder económico e o seu custo elevado. Não gostava de usar roupa de fazenda junto à pele, pois “picava-me”, tendo de vestir sempre roupa interior mais macia. Como o pescoço não ficava protegido pela roupa interior, quando usava camisas de fazenda quase não mexia a cabeça para não sentir o roçar da fazenda. Preferia camisas de flanela, pois eram mais macias. Na alimentação, os ingredientes preponderantes, por serem dos mais baratos, eram as batatas, o bacalhau e as sardinhas, aos quais me habituei com gosto (a carne só tinha lugar ao Domingo e em quantidade escassa).
Tendo uma irmã mais nova 15 meses, era o seu protetor, resguardando-a das tropelias das outras crianças, sendo o atirar de pedras uma malfeitoria frequente.
A maioria das doenças
era tratada com remédios caseiros da medicina popular. Quando a gravidade da
doença obrigava ao recurso dos poucos médicos existentes (na zona histórica de
Matosinhos, onde eu morava, havia dois médicos, conhecidos pelos seus
diminutivos - Dr. Sousinha e Dr. Lourinha). Os medicamentos por estes
receitados eram, em muitos casos, preparados nas farmácias, havendo poucos
medicamentos pré-embalados (um destes era o “Saridon”, em comprimidos, usado
para o tratamento de todas as dores).
Uma doença que me
acompanhou até aos 12 anos foi a amigdalite, que me provocava febres altas, com
delírios, durante dias seguidos, A febre era atacada encostando rodelas de
batata à testa, atando-as à volta da cabeça, e para a infeção gargarejava-se
água salgada. A penicilina ainda não era de uso generalizado, pelo que a
cirurgia de ablação das amígdalas, com anestesia total, era uma saída muito
frequente. Fui operado duas vezes (aos seis e aos onze anos). Na primeira
cirurgia, antes da aplicação da anestesia (máscara com anestésico) fui amarrado
de pés e mãos para facilitar a imobilização. Na segunda cirurgia fui
anestesiado ao colo da minha mãe. Foram momentos traumatizantes da minha
infância.
Em 1953 iniciei o meu
percurso escolar.
Estávamos no dia 1 de
Outubro de 1953. Em vários locais de Portugal os pais encontravam-se nas
escolas primárias a inscrever os seus filhos para a frequência do ensino
primário. Nesse tempo não se controlava se os pais inscreviam ou não ou filhos
nas escolas apesar do ensino obrigatório ser o 1º grau do ensino primário (os
primeiros 3 anos – 1ª à 3ª classe). Mas isto tinha um carácter quase meramente
indicativo pois era impossível exigir-se tal a todos os pais, já que ainda não
existiam escolas suficientes nem a opinião pública estava mobilizada
suficientemente para tal desiderato. Não havia sanções para quem não cumprisse
essa obrigação.
O ensino primário (1ª
à 4ª classe), o preparatório (1º e 2º ano) e secundário (3 anos no ensino
liceal ou no ensino técnico) era quase todo nas escolas do Estado. Eram
permitidas escolas no sector privado mas não tinham reconhecimento oficial dos
graus que outorgavam, havendo necessidade de realização de exames nas escolas
do Estado para se obter os diplomas respetivos. Uma grande parte destas escolas
privadas eram propriedade das misericórdias ou de congregações religiosas,
sendo o acesso a estas escolas restrito a certa faixa social, tendo os irmãos
da Misericórdia direito à inscrição dos seus filhos e podendo usar a sua
influência para inscrever outros familiares.
Em Matosinhos também
existia a Santa Casa da Misericórdia com a sua escola primária, denominada
Escola do Adro já que se encontrava situada no adro da Igreja do Bom Jesus de
Matosinhos. Como era usual, a sua frequência era dos filhos das famílias ditas
conceituadas, já que a Misericórdia era exigente na seleção dos seus irmãos e,
por conseguinte, nos alunos que iriam frequentar a escola.
Uma mãe (minha mãe),
Emília de nome, padeira, que só tinha a 2ª classe, casada com um serralheiro,
Hipólito de seu nome (meu pai), que já tinha a alta qualificação académica da
4ª classe, atreveu-se a pedir ao tio Rodrigo, que era irmão da Misericórdia, se
podia usar a sua influência para me matricular na Escola do Adro, ambição
elevada para a sua condição económica e
social. Mas o tio Rodrigo empenhou-se e conseguiu a autorização para se
proceder à matrícula no dia 1 de Outubro. Apresentaram-se mãe e filho (eu
próprio) nesse dia na escola da Santa Casa da Misericórdia. Foi exigida a
cédula pessoal da criança e certidão de casamento dos pais, com a recomendação
de que aquando do início das aulas no dia 7 de Outubro (menos de uma semana
depois) o aluno devia levar vestuário apresentável e calçar sapatos. Gerou-se
pânico no seio familiar. Vestuário ainda se podia arranjar mas sapatos é que não.
Só o pai é que tinha um par de sapatos, oriundos do casamento uns anos atrás,
já que o resto da família (mãe, filho e filha) andavam descalços ou calçavam
socos e solipas. Como resolver esta exigência? Pedir dinheiro à família para
comprar sapatos não era possível pois a situação económica era igualmente de
carência. Pedir à família mais alargada ou aos amigos parecia inviável já que
sapatos era artigo de luxo que não suscitava generosidade. O que ocorreu à
pobre mãe? Pedir ao presidente da junta de freguesia, que era conhecido por ser
pessoa bondosa e a vergonha de pedir a uma entidade pública é sempre menor do
que pedir a pessoas singulares. O presidente da junta foi sensível e apresentei-me
no dia 7 de Outubro com sapatos oferecidos pela Junta de Freguesia de
Matosinhos, acompanhado da minha mãe. A partir desse dia, passei,
autonomamente, a deslocar-me de casa para a escola sem medos nem a companhia
dos pais ou outros adultos.
Habitávamos, nessa
altura, na Rua Dr. Forbes Bessa, a poucos metros da esquina com a Rua do
Godinho, novamente perto da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos e do marco
histórico que, depreciativamente, designamos “O Calhau” pois o tipo de
monumento não foi apreciado pela população (este monumento, em forma de padrão,
foi erigido, em 1953, para comemorar o centenário do foral de elevação a vila
das freguesias de Matosinhos e Leça da Palmeira). Assistia a jogos de futebol
do Leixões e ouvia relatos de hóquei em patins, no rádio da senhoria (a maioria
da população não tinha meios económicos para comprar um rádio), com a
participação de Portugal, vibrando com as vitórias portuguesas.
Coincidindo com o
final da 1ª classe, os meus pais e os meus avós maternos mudaram de residência
para a Rua Jorge Viterbo Ferreira nº 12-1º, no Porto (junto ao Palácio de
Cristal), indo o meu pai exercer a sua profissão de serralheiro na construção
do cais de V.N.Gaia, onde esteve cerca de um ano, sendo o meu avô materno o
feitor dos Edifícios Restauração que englobavam os prédios compreendidos entre
o início da Rua Jorge Viterbo Ferreira e
o nº 335 da Rua da Restauração.
Nessa altura
frequentei a 2ª classe na escola primária da Rua D. Manuel II nº 226, no Porto,
em frente ao Palácio de Cristal. Paralelamente, frequentei a catequese no
Seminário de Vilar onde fiz a 1ª comunhão (O seminarista que me ensinou a
catequese ofereceu-me um lenço de assoar como prenda pelo meu aproveitamento).
O meu lanche preferido era uma sandes de pão com açúcar.
Com a conclusão do
cais de Gaia, o meu pai teve de mudar de emprego, conseguindo arranjar
colocação, sempre como serralheiro mecânico, na empresa de metalomecânica
Oliveira e Ferreirinhas, em Matosinhos. A minha mãe continuou como padeira.
Para a minha
continuação de estudos, recorreu-se, outra vez, ao tio Rodrigo, para voltar à
Escola do Adro, tendo-me inscrito na 3ª classe e integrado a classe da Profª
Manuela (a minha irmã também entrou para a mesma escola – Professora Rosalina).
O sistema educativo estava organizado em turmas de sexos separados. Entretanto,
tínhamos fixado residência no Lugar de Bouças de Cima, ainda em Matosinhos,
sendo a distância de casa à escola de cerca de 500 metros.
Terminada a 4ª
classe, entretanto tornada como limiar do ensino obrigatório com a designação
de 2º grau do ensino primário, colocou-se a questão de decidir o meu futuro. Ir
aprender um ofício, como a generalidade dos meus pares, ou ir continuar os
estudos no ensino preparatório para o qual era necessário fazer uma prova de
admissão que exigia conhecimentos mais profundos do que a 4ª classe.
Para a preparação
deste exame de admissão existiam explicadores privados a quem se tinha de pagar
por mês, em média, o equivalente a 8 dias de trabalho do nosso pai serralheiro.
Tal era incomportável pois o dinheiro mal dava para a sobrevivência, não
sobrando o que quer que fosse para outras despesas. Mais uma vez a minha mãe fez
jus ao seu atrevimento e dirigiu-se à minha professora da 4ª classe (Profª
Cármen), que, também, era explicadora, pedindo que eu pudesse frequentar as
explicações para o exame de admissão que ela pagaria tudo o que pudesse. A
exemplo do Sr. Presidente da Junta atrás referido, a Sra. Profª Cármen disse:
“Eu estou a dar as explicações remuneradas em casa dum aluno (Zé Manuel) que mora
próximo da escola, com três outros alunos. O seu filho que apareça que eu
acolho-o em igualdade com os outros, mesmo que não possa pagar.” E lá fiz o
exame de admissão e entrei para a então designada Escola Industrial e Comercial
de Matosinhos, única escola de Matosinhos com ensino além da instrução
primária.
Também, nesse ano,
fiz a comunhão solene na Igreja Católica (18 valores) e crismado na Igreja do
Bom Jesus de Matosinhos.
Aqui importa fazer um
parêntesis. Desde essa altura nunca mais fiz juízos sobre os outros quando
precisam de ajuda, aprendi a não passar lições de moral quando se presta ajuda
aos outros, nunca mais condicionei a minha ajuda ao comportamento dos outros.
Sigo um preceito cristão: dar com a mão direita de forma a que esquerda não veja.
Penso que por muito que faça pelos outros nunca pagarei o que fizeram e
continuam a fazer por mim. Sinto que a sociedade tem sido indulgente para
comigo. Tem desculpado os meus erros e tem estado ao meu lado quando tenho
precisado. A todos, ao Presidente da Junta de Matosinhos, à Profª Cármen e a
quem ao longo da vida tem privado comigo, estou reconhecido e em dívida. Assim
sendo, só tenho de praticar a caridade com quem precisa, sem esperar
recompensa, sem perguntar como, para quê ou porquê. Foi assim que fizeram
comigo. Não tenho o direito de ser mais exigente para com os outros do que outros
foram para comigo.
Na Escola Industrial
e Comercial de Matosinhos dei continuidade aos estudos (só uma minoria de
crianças prosseguia os estudos). Fiz os dois primeiros anos sem reprovações,
com notas variando entre os 10 e os treze valores (numa escala de 0 a 20). Das
disciplinas constantes do ciclo preparatório constava a frequência da Mocidade
Portuguesa em que se doutrinava a disciplina e os valores políticos do regime
vigente, incluindo atividades físicas, obrigando à compra do fardamento
respetivo. A dificuldade de os meus pais não terem dinheiro para o fardamento
foi resolvida com uma declaração médica atestando que eu devia ser dispensado
da frequência das disciplinas com atividades físicas por razões de saúde.
Nesse tempo
histórico, meados dos anos 50, foi descoberta a vacina para a poliomielite,
tendo os meus pais desenvolvido esforços para me ser dada, assim como à minha
irmã. Fomos das primeiras crianças em Matosinhos a tomar essa vacina. A baixa
literacia da maioria dos adultos fez com que a vacina não tivesse uma grande
adesão, assistindo-se, ainda, nos anos seguintes, a que muitas crianças
ficassem fisicamente diminuídas com a doença, fortemente incapacitante, já que
só em meados dos anos 60 se lançou uma grande campanha nacional de
vacinação.
Terminados os dois
anos do ensino preparatório, houve, novamente, que tomar a decisão: Prosseguir
os estudos ou ir trabalhar? O pai continuava como serralheiro mecânico. A mãe
tinha mudado de padeira para operária conserveira, na Fábrica de Conservas
Universal que era propriedade de um tio do meu pai (naquela altura havia mais
de uma dezena de grandes fábricas de conservas de peixe em Matosinhos). Devido
a esta ligação familiar, a partir dos nove anos de idade, eu passava as férias
na fábrica, circulando livremente em toda a fábrica e não fechado na creche,
durante o horário de trabalho da minha mãe, que chegava a ser de 16 horas
diárias, tendo interiorizado todo o processo de produção de conservas de
peixe. O pai ganhava 25$00 (vinte e
cinco escudos) por dia. A mãe ganhava menos de 2$00 por hora, não tendo
garantias de quantas horas trabalharia por dia, pois tal dependia da quantidade
de peixe pescado pelas traineiras. Havia dias em que havia trabalho até às 24
horas mas noutros dias podia não ter trabalho. Com tão pouco dinheiro, que nem
sequer permitia o acesso a bens básicos (a alimentação era, na maioria,
comprada a crédito - o termo usado na altura era “fiado”), foi difícil a
decisão de continuar os estudos, mas os meus pais arriscaram e matricularam-me
no curso profissional de Montador Eletricista (iniciado nesse ano em
Matosinhos), pois a profissão de eletricista estava em ascensão (Uma grande
parte das habitações ainda não dispunha de eletricidade).
Os meus avós paternos davam-me uma semanada de 2$50, que me permitia ir ao cinema (o bilhete custava 1$50) e comprar uma ou outra guloseima. Leitura, além dos livros escolares, era luxo impossível. Algumas vezes lia um jornal diário (Jornal de Notícias) que o senhorio da minha casa assinava e que permitia que eu o lesse. Gostava especialmente de ler os artigos do Engº Almeida e Sousa e as sentenças do juiz António Quintela, pelo humanismo das posições e juízos que ambos faziam, personalidades estas que me influenciaram na orientação para os direitos humanos.
Uma outra função que tinha de cumprir era a de acompanhar a minha mãe, uma ou duas vezes por semana, ao tanque público, que se distanciava cerca de 300 metros da minha casa, onde ela procedia à lavagem da roupa, à noite depois do trabalho dela na fábrica de conservas. Como o meu pai trabalhava à noite, eu, apesar de ainda uma criança, fazia de segurança para o caso de algo poder acontecer (o assédio sempre existiu ao longo da história).
Com os amigos vizinhos da minha idade (Zé manco, Quim espanhol e Neca espanhol), constituímos uma outra família a que demos o nome de “Bonanza”, nome este retirado de uma série de aventuras de uma família nos USA que passava na televisão. Habitávamos perto uns dos outros. tendo eles deixado os estudos e trabalhavam como aprendizes em várias profissões da indústria e dos serviços. Convivíamos diariamente em múltiplas actividades (jogos de futebol e de pião, idas ao cinema ao domingo, visitas pagas às “senhoras” que nos permitiam o usufruto dos seus préstimos (normal, na época, nos adolescentes), visionar programas de televisão no Café Parque – a televisão tinha aparecido há pouco tempo e eram raros os locais que dispunham de aparelhos de TV- , assistir aos jogos desportivos do Leixões (clube local) nas várias modalidades – futebol, hóquei em patins, voleibol, hóquei em campo, basquetebol, etc… .
Com os colegas da
escola o convívio resumia-se ao espaço escolar, no edifício situado na esquina
da Avenida Afonso Henriques com a Rua Alfredo Cunha (atualmente é a Biblioteca
de Matosinhos, situada nas traseiras dos Paços do Concelho). A partir do 7º ano
de escolaridade – 1º ano do ensino secundário (12/13 anos de idade) fomos uma
turma em que alguns de nós eram portadores dalguma rebeldia, não sendo “peras
doces” para os professores. Um dos colegas já tinha uma idade mais avançada (16
anos) com reprovações anteriores, sendo, naturalmente, quem “mandava” no nosso
comportamento. A mim, como mais novo, obrigou-me a ser o chefe de turma,
devendo-lhe obediência. E era eu que tinha de representar a turma sempre que
algo não corria bem, nomeadamente nos julgamentos das queixas pelo diretor da
escola. Vigiávamos os professores nos dias anteriores aos exames e exercícios
de avaliação, procurando apanhar-lhes os rascunhos dos enunciados das provas
que eles rasgavam e colocavam no cesto dos papéis para o lixo existente na sala
dos professores. Quando isto acontecia, faltávamos à aula anterior à prestação
de provas, à qual só ia o melhor aluno para não termos falta coletiva (as
faltas coletivas tinham consequências disciplinares gravosas), e íamos para um
pinhal próximo construir o puzzle dos fragmentos do rascunho para sabermos o
enunciado da prova. Obviamente, era raro haver negativas nas provas. Espiávamos
os namoricos dos professores para os condicionar nas nossas avaliações,
assediávamos as colegas (as escolas industriais e comerciais, ao contrário dos
liceus, tinham frequência mista ainda que em turmas separadas), e, até, as
nossas famílias subornavam, com bens, um ou outro professor que teimava em nos
dar nota negativa.
Em Julho de 1961
terminei o curso de Montador Eletricista com a nota final de 13 valores, sem
nunca ter reprovado. Uma outra tarefa de que frequentemente era incumbido (com
alguma vergonha) era levar o almoço ao meu pai, numa marmita, pois ele
trabalhava a cerca de dois quilómetros de casa o que não dava tempo para a sua
deslocação, pois só dispunha de uma hora de intervalo para almoço.
Tendo em conta que em
Matosinhos não havia qualquer estabelecimento de ensino com formação superior
ao 9º ano, quem quisesse, e pudesse, continuar os estudos, teria de se deslocar
para o Porto, com o custo inerente dos transportes públicos (autocarros ou
elétricos). Logo, tivemos (eu e os maus pais) de procurar emprego.
Aconteceu que, nesse
ano de 1961, estava a ser construída a subestação de transformação de energia
elétrica de Matosinhos, no Lugar de Bouças de Cima onde eu residia. A minha mãe
foi pedir ao engenheiro chefe da empresa (CHENOP) que me empregasse, ao que ele
acedeu e comecei a trabalhar a partir de Outubro desse ano, sendo o único
trabalhador, dos que se encontravam na construção, a dispor dum curso
secundário, tendo sido escolhido pelo engº referido (George Khron) para,
seguindo as suas orientações, proceder às ligações do quadro da subestação
(entrei como aprendiz e passados três meses passei a oficial e chefe de turno).
Entrei na empresa com um salário de 30$00 diários, valor acima da média para a
época e para a minha idade (15 anos). O meu pai, serralheiro mecânico de 1ª na
empresa Oliveira e Ferreirinhas, com vinte anos de experiência, ganhava 39$00
por dia. Passei a ser uma forte ajuda para a família, tendo sido possível, dois
anos após, mudarmos para uma habitação mais confortável na Rua Cândido dos Reis
na freguesia de Custóias.
2 - Os primórdios do engajamento nas questões sociais
Tendo nascido no seio de famílias pobres, vivi, até à adolescência, em ambiente socialmente carenciado, apesar de nunca ter sido tocado pelas situações extremas. Habitei casas pequenas e modestas, sem nunca ter faltado alimento básico nem agasalho, contactando com ambientes e pessoas em situação de pobreza, ficando sensível ao sofrimento e carências dos outros.
Logo no
primeiro emprego, como eletricista na CHENOP (Companhia Hidro-Eléctrica do
Norte de Portugal), interessei-me pelas questões sindicais, apesar do Sindicato
dos Eletricistas do Norte ser dirigido por uma Direção ligada ao poder político
vigente (As pessoas que se candidatavam aos órgãos sociais dos sindicatos eram
objeto de escrutínio prévio da instituição estatal “Instituto Nacional de
Trabalho e Previdência” e a sua candidatura poderia não ser aprovada).
Este
emprego permitiu-me um estatuto económico-financeiro mais desafogado, com um salário
de trinta escudos por dia de trabalho, que, no ano de 1961, era um bom salário
para um jovem de 15 anos. Como atrás refiro, o meu pai, serralheiro mecânico de
1ª, com 20 anos de experiência, ganhava trinta e nove escudos/dia, e a minha
mãe, operária conserveira, auferia dois escudos por hora de trabalho (só
ganhava quando havia peixe para trabalhar). Tive o sortilégio de o engenheiro
chefe da empresa (George Khron), a quem a minha mãe foi pedir para eu ser
admitido, confiar em mim e, por eu possuir o curso secundário de montador
eletricista (tirado, sem reprovações, na Escola Industrial e Comercial de Matosinhos),
colocar-me, passados 3 meses de ser admitido, como oficial de turno na
subestação de Matosinhos.
Esta minha ascensão
no emprego não ofuscou o meu interesse crescente pelas questões sociais, sendo
eu, normalmente, o porta-voz para reivindicar aumentos salariais junto do Engº
Khron. A situação político-social na altura era de opressão, já que vivíamos
sob um regime de natureza fascista, tendo eu aderido aos ideais democráticos
que sopravam da maioria dos países europeus (só a Espanha e a Grécia tinham
regimes semelhantes ao de Portugal), pelo que alinhava com todas as atitudes contrárias
ao regime em vigor.
Decorriam, nessa
altura, guerras nas colónias sob ocupação portuguesa, pelo que o serviço
militar era obrigatório para todos os jovens maiores de 20 anos. Tal também
aconteceu comigo, apesar de, entretanto, ter casado e de estar a frequentar o
curso de Engenharia de Eletrotecnia e Máquinas no Instituto Industrial de
Porto. Fui incorporado no exército em Outubro de 1968 e mobilizado, quinze
meses depois, para uma comissão de serviço de dois anos em Timor. Como estava
casado e já tinha uma filha, vendi todo o escasso património caseiro de que
dispunha para comprar as passagens marítimas de forma a que elas me
acompanhassem durante os dois anos em Timor (A viagem de Portugal para Timor
demorava sessenta dias, com paragens em Luanda, Lobito, Lourenço Marques (atual
Maputo), Beira, Singapura e Hong Kong).
Durante esses dois
anos em Timor economizamos o dinheiro suficiente para pagar as viagens de
regresso delas (o custo das minhas viagens era, obviamente, suportado pelo
Estado). O regresso foi feito por via aérea (Dili - Darwin (Austrália) - Hong
Kong – Bangkok - Bahrain (Golfo Pérsico) – Frankfurt -Londres - Lisboa).
A comissão de serviço
militar em Timor permitiu-me apreender a realidade local, com idiossincrasias
próprias. Não havia racismo, apesar da esmagadora maioria da população local
viver num quotidiano de subsistência mínima em palhotas e comendo, quase
exclusivamente, milho e mandioca cultivados localmente de forma artesanal. A
religião católica tinha pouca implantação mas as comunidades ligadas às Igrejas
eram respeitadas, sendo a maioria da população animista.
Mantive uma relação
cordial e civilizada com as diferentes pessoas com quem fui contactando, constatando
o atraso civilizacional daquela região e reforçando, em mim, o sentimento por
uma sociedade mais humanista e solidária.
Regressado a Portugal
continental no final de 1971, retomei a continuação do curso de Engenharia e
regressei ao trabalho na Chenop, mantendo o interesse pelas questões sociais.
Este interesse pelo
ativismo social veio a manifestar-se mais fortemente quando ingressei no Banco
Borges e Irmão, em 1972, e passei a ter militância no Sindicato dos Bancários
do Norte, nomeadamente para as eleições da nova Direção do Sindicato com a
presidência de Avelino Gonçalves (este dirigente veio a ser Ministro do
Trabalho após o 25 de Abril de 1974). Foram várias as reuniões sindicais com a
presença de agentes policiais à porta.
Com a conclusão do
curso de Engenharia Eletrotécnica e de Máquinas, em 1973, no Instituto
Industrial do Porto (atual Instituto Superior de Engenharia do Porto),
processou-se uma subida significativa no meu estatuto sócio-económico, passando
a ter um nível de vida de classe média, tendo adquirido o primeiro automóvel em
junho de 1973 (Morris 1100 com a matrícula DC-69-76). O primeiro telefone em
casa (nº 25845) viria a verificar-se no ano seguinte quando mudei a residência
para Aveiro. A atividade profissional exercida na Texas Instruments (Junho a
Dezembro de 1973) e na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre (Dezembro de 1973
a 1981) permitiram um certo desafogo económico.
Com a revolução em
Portugal em 25 de Abril de 1974, a sensibilidade para as questões sociais
aumentou significativamente. Liderei as primeiras comissões de trabalhadores da
Vista Alegre, iniciei a atividade sindical no Sindicato dos Engenheiros
Técnicos do Norte, de que viria a ser dirigente, tornei-me associado e ativista
da DECO - Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor em 1975, fui
ativista da Associação de Estudantes da Universidade de Aveiro (onde cursei
Engenharia Cerâmica e do Vidro) e acompanhei militantemente a agitação política
subsequente à revolução. Tive várias reuniões com membros dos governos e da
Assembleia da República e participei em várias instituições de natureza
sócio-política.
O 25 de Abril de 1974,
e posterior desenvolvimento político, constituiu uma rutura profunda com o
sistema político vigente, quer no plano político, quer no plano económico,
social e cultural. Como refere a historiadora Raquel Varela “o melhor que Portugal teve em toda a sua
História foi a participação popular e democrática durante o PREC” (O
PREC-processo revolucionário em curso- foi o período que mediou entre o 25 de
Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975, período este de grande agitação social,
política e militar para a implementação rápida das alterações desejadas). O
tempo seguinte ao 25 de Abril de 1974 traduziu-se numa revolução conturbada de
toda a estrutura da sociedade, com forte mobilização e pressão popular, ainda
que tivessem acontecido alguns percalços como foram o 28 de Setembro de 1974, o
11 de Março de 1975 e o 25 de Novembro de 1975, que, sendo acidentes de
percurso, não travaram as grandes alterações produzidas pela revolução
(eleições livres, fim da guerra colonial com a independência das denominadas
províncias ultramarinas de Portugal, liberdade de reunião, associação e
manifestação, direito à greve, melhoria
das condições sociais, etc…). Obviamente, acompanhei com entusiasmo, de forma
ativa, como adiante se verá, a dinâmica proporcionada pela revolução,
nomeadamente até 1981, altura em que passei de trabalhador por conta de outrem,
na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre, para empresário como sócio-gerente da
Maiaporce-Fábrica de Porcelanas da Maia.
Durante o período de
1974 a 1981 fui particularmente ativo na atividade sindical e na dinâmica
social na Vista Alegre, tendo, enquanto coordenador da Comissão de
Trabalhadores da fábrica e ativista sindical no Sindicato dos Engenheiros
Técnicos do Norte, do qual era dirigente, participado nas alterações
contratuais aplicáveis à indústria cerâmica.
Durante o processo
negocial com a Associação Portuguesa de Cerâmica, que decorreu durante cerca de
um ano, mantive, sempre, uma postura cordial com os dirigentes patronais,
permitindo concluir todo o processo de negociação do contrato coletivo de
trabalho sem qualquer declaração de greve como forma de pressão, o que foi raro
naquela época. Para tal, concorreu o estabelecimento de uma relação de simpatia
pessoal entre mim (enquanto líder da representação dos vários sindicatos
envolvidos) e o líder dos representantes das entidades patronais, Engº José
António Barros, havendo reuniões em que nós dois acordávamos matérias sem
intervenção, nem objeção, de mais nenhuma entidade envolvida, tendo a redação
final do contrato sido considerada das mais avançadas, como, por exemplo, ter
sido dos primeiros contratos a considerar a igualdade salarial entre homens e
mulheres, o que se traduziu em aumentos salariais de valor muito significativo
e a elevação do estatuto socioeconómico dos trabalhadores.
O Engº José António
Barros era o maior acionista de uma grande empresa cerâmica (CINCA), e sensível
às questões sociais, sendo dos poucos empresários simpatizante do Partido
Socialista, tendo esta sua postura concorrido para ser nomeado, por vários
governos, para o desempenho de cargos de relevância política.
Justo é, também, de
relevar a disponibilidade sempre manifestada pela administração da Fábrica de
Porcelanas da Vista Alegre para a compatibilização das minhas funções de chefia
na fábrica com o exercício da atividade sindical (havia semanas em que estava
ausente da fábrica vários dias seguidos, sem quebra de remuneração), sendo de
destacar a sensibilidade político-social do administrador executivo da fábrica,
Engº José Alberto Pinto Basto, que esteve sempre disponível para considerar as
reivindicações dos trabalhadores.
Não sendo meu
propósito, neste livro, ir além das matérias relacionadas com a minha
intervenção pessoal nos direitos humanos (no livro que editei em 2021 “Questões
de Ética e Cidadania II” consta um texto que aborda o 25 e Abril e a minha
intervenção na Vista Alegre, com o título “O meu testemunho sobre o 25 de
Abril”, havendo outros textos sobre o assunto no meu blogue), quero deixar
expressa a minha apreciação muito positiva da forma como a Vista Alegre era
gerida pelos seus donos (Família Pinto Basto), que se caracterizava pela
tentativa de criar uma grande família em que a fábrica apoiava várias vertentes
sociais (no espaço adjacente à fábrica, estavam implantados: um bairro social
com várias dezenas de moradias para habitação dos trabalhadores com uma renda
de um dia de salário por mês; uma cantina; uma creche; um teatro/cinema; um
orfeão; um museu; um corpo de bombeiros; um grupo desportivo-Sporting Clube da
Vista Alegre - com campo de futebol próprio e participante na divisão distrital
de futebol de Aveiro; uma quinta
agrícola que produzia e vendia artigos para os trabalhadores a preços mais
acessíveis: uma cooperativa de consumo; um posto médico; uma igreja privada,
etc… . E tudo isto com um grande suporte logístico e material da fábrica, incluindo
os salários dos trabalhadores envolvidos nestas estruturas e o pagamento
integral do tempo que fosse necessário despender para o seu funcionamento. Pode-se
dizer que estávamos perante uma Fundação de grande dimensão, ainda que, nesse
tempo, tal conceito jurídico não tinha o enquadramento que hoje se verifica.
3 - Amnistia Internacional (AI)
Durante todo o tempo que decorreu durante a juventude fui seguindo, com interesse, as poucas notícias que a Comissão de Censura deixava passar sobre a Amnistia Internacional, criada em Londres em 28 de Maio de 1961, iniciando-se a minha sensibilização para a matéria específica dos direitos humanos. Como a revolução do 25 de Abril de 1974 permitiu a constituição de associações livres, a Amnistia Internacional nasceu em Portugal, em assembleia constituinte de fundação a 18 de Maio de 1981 (escritura notarial em 06/07/1981), tendo-me inscrito como membro em 1985 com o nº 726.
A fundação desta
organização de direitos humanos teve em Peter Benenson, advogado inglês, o
principal protagonista. A sua síntese biográfica, de várias fontes,
nomeadamente da Wikipédia, diz-nos:
Peter Benenson (Londres, 31 de julho de 1921 – Oxford, 25 de fevereiro de 2005) foi um advogado e ativista político britânico. Nascido no seio de uma família judaica, filho de
Flora Benenson e Harold Salomon (coronel do exército britânico), com o nome
de Peter James Henry Solomon,
acrescentou mais tarde o sobrenome de sua mãe como homenagem ao avô materno, o
banqueiro russo Grigori Benenson.
Tendo perdido o pai quando ainda era muito jovem, foi criado pela mãe, que
orientou inicialmente sua educação através de professores particulares.
Posteriormente, estudou no renomado Eton College onde já
se destacou pelo comportamento contestador, tendo escrito várias cartas ao
diretor desta instituição nas quais reclamava das péssimas condições da cantina
e da baixa qualidade da comida escolar, a tal ponto que este escreveu uma carta
a sua mãe queixando-se das “tendências revolucionárias” de Benenson. Ainda no
período escolar, com apenas 16 anos, lançou usas primeiras campanhas: reuniu
fundos para auxiliar o Comitê de Ajuda à Espanha (que auxiliava órfãos de pais
republicanos, durante a Guerra Civil Espanhola) e para ajudar famílias de imigrantes judeus que
fugiam da perseguição nazista.
Após o secundário, foi para o Balliol College da Universidade de Oxford, onde licenciou-se em História. Durante
a Segunda Guerra Mundial incorporou-se ao exército, trabalhando no Gabinete
de Imprensa do Ministério da Informação. Com o término do conflito, voltou
para Oxford e
formou-se em Direito. Dedicou-se
então à advocacia e filiou-se ao Partido Trabalhista Britânico.
Em 1957, como membro da Associação dos Advogados do Direito do Trabalho,
ajudou a formar a organização Justice e criou a Associação Para Doentes
Celíacos. Em 1961, fundou a Anistia Internacional, organização independente a qual dedicou os seus 43
anos seguintes de vida. Converteu-se ao catolicismo e nos anos 80, fundou a
Associação de Cristãos Contra a Tortura. Benenson passou os últimos anos de sua
vida muito doente, e faleceu de pneumonia, no Hospital John Radcliffe em 25 de
Fevereiro de 2005.
A ideia de fundar a Amnistia Internacional (Amnesty International) surgiu
depois de Peter Benenson ter lido um artigo num jornal, relatando a
detenção de dois estudantes que, em plena ditadura salazarista, ousaram fazer um brinde a liberdade. A Amnistia Internacional tornou-se
a maior organização independente do mundo de defesa dos Direitos Humanos,
contando com milhões de membros, tendo ganho o Prémio Nobel da Paz em 1977.
A AI
começou o seu ativismo em direitos humanos pelos prisioneiros de consciência, a
que se seguiu a abolição da pena de morte e a condenação e proibição da
tortura, dos desaparecimentos e das execuções extrajudiciais.
No
início deste século XXI alargou-se aos direitos económicos, sociais e
ambientais, assim como ao aprofundamento dos direitos civis com a sua posição
sobre a igualdade de género, o aborto e as minorias identitárias LGBTIQ+
(posição sobre o direito ao exercício da identidade sexual)
Sobre o nascimento da
AI, o Prof. Miguel da Costa Paiva Régio
de Almeida, na sua tese no âmbito do Doutoramento em Direito do ramo de
Ciências Jurídico-Filosóficas, orientada pelo Professor Doutor Mário Alberto
Pedrosa Reis Marques e apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra em Outubro de 2019, diz-nos:
“(…) Pág. 35
(…) Prova ilustrativa da importância hodierna
do movimento não governamental pelos Direitos Humanos (DH) é a proteção
institucional concedida pela ONU através da sua Declaração sobre Defensores de
DH (1998), 50 anos após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH). Desta transformação é inseparável o papel paradigmático da Amnistia
Internacional: fundada em 1961.
Esta ONG de racionalidade evangélica, de
salvação pastoral casuística tomando a DUDH como uma «bíblia secular» (MORSINK
1999: XII), foi pioneira na formação da sociedade civil global, sendo ainda
hoje a maior organização mundial de defesa dos DH. Originariamente focada na
proteção dos prisioneiros de consciência, foi alargando os seus mandatos por
campanhas de proibição do recurso à tortura e à pena de morte, bem como ao
problema da pobreza mundial.(…)
. …O momento em que o advogado britânico
Peter Benenson (1921-2005) terá decidido fundar a organização decorreu de ter
lido, no Outono de 1955, uma notícia sobre dois estudantes portugueses
aprisionados pela ditadura, após terem brindado à liberdade num bar. (…)”
Peter
Benenson saiu da liderança da AI em 1966 por suspeitar que os serviços secretos
do Reino Unido estavam a infiltrar a organização, após um relatório da AI ter
denunciado o uso da tortura pelas autoridades britânicas no Yemen. Tal foi
acontecendo em outros países ao longo dos anos.
Em
Portugal, também, tem havido infiltrações de quadros de partidos políticos,
tendo Teresa Pina, uma ex-assessora do Primeiro Ministro José Sócrates, chegado
a ser Diretora Executiva de 2012 a 2015.
Nas
primeiras dezenas de anos da AI a sua liderança era protagonizada por ativistas
voluntários e era considerado incompatível o exercício de cargos dirigentes na
AI por pessoas proeminentes do poder político/social/económico (não é por acaso
que os dirigentes da AI nunca foram conhecidos da opinião publica – eu próprio
fui abordado em meados dos anos 80 para entrar para a maçonaria “GOL-Grande
Oriente Lusitano” e recusei por na altura ser dirigente da AI).
Os
dirigentes, eleitos em assembleias gerais de associados, eram estudantes do
ensino superior, quadros de instituições e profissionais liberais (“pagava-se”
para ser dirigente, já que muitas das despesas eram suportadas pelo próprio
bolso).
Mais
tarde (em Portugal já no século XXI), a liderança passou a ser exercida por
profissionais, recrutados e não eleitos, provocando um menor envolvimento dos
ativistas nas ações da organização.
O meu
interesse pela AI iniciou-se (como atrás refiro) quando, em meados dos anos 60
do século passado, li, numa curta notícia de jornal, uma tomada de posição de
uma organização internacional de direitos humanos (Amnesty International - AI)
que me sensibilizou pelo humanismo e solidariedade dela constantes.
A
partir daí, seguia com atenção estas temáticas mas, raramente, voltei a deparar
com notícias sobre esta organização, vindo a saber, mais tarde, que a Comissão
de Censura, órgão oficial do regime político em vigor, não permitia a sua
publicação.
Com o derrube
do regime político em 25 de Abril de 1974 passaram a ser frequentes as notícias
da AI nos órgãos de comunicação social portugueses e aumentou o meu interesse e
admiração por essa organização e a vontade de ser seu associado.
Decorria
o ano de 1985 quando deparei, na Avenida dos Aliados no Porto, com uma banca de
divulgação da AI. Pedi um folheto para me inscrever e foi-me proposto por uma
ativista (Cristina Pinto), que se encontrava na banca, que integrasse a AI e o
Grupo Local 6 do Porto, o que fiz de imediato (associado nº 726).
Na
semana seguinte participei, pela primeira vez, na reunião do grupo, composto
maioritariamente por estudantes universitários da Faculdade de Medicina da
Universidade do Porto, passando a colaborar nas ações de rua, divulgando os
casos recebidos do secretariado internacional em Londres e organizando eventos
de sensibilização da opinião pública (exposições de arte, ciclos de cinema,
debates, presença nos órgãos de comunicação social, etc…).
Um dos
eventos mais relevantes relacionou-se com a realização de uma quinzena de
direitos humanos alusiva às comemorações do 38º aniversário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, tendo-se afixado, em muitos locais da cidade do
Porto, centenas de posters, com ilustração de Manuela Bacelar e poema de
Eugénio de Andrade, o que foi antecedido por várias reuniões com o poeta e a
ilustradora onde se aprofundaram relações de amizade e cooperação.
Uma ação que mobilizava os membros do grupo de forma permanente era a que se relacionava com os prisioneiros de adoção que eram atribuídos pelo Secretariado Internacional aos Grupos Locais da AI. O Grupo 6 teve dois casos: Liao Éboa (?) (Congo) e Akram Kurdya (Síria). Trabalhei pessoalmente no dossier de Akram Kurdya, estudante universitário, que se encontrava detido em local desconhecido da Síria (presumia-se na cidade de Aleppo), pois as autoridades sírias acusavam-no de pertencer a uma associação não autorizada e de desenvolver atividades contrárias ao regime político. As ações planeadas incluíam envio de cartas para o Akram e para as autoridades sírias, contactos com entidades que se relacionavam com a Síria (ex: empresa petrolífera Petrogal – atual Galp), apelos aos órgãos políticos dirigentes de países que se relacionavam com a Síria, exposições e abaixo assinados que eram enviados para as mais diferentes entidades, incluindo o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, etc… . De acordo com as recomendações recebidas do departamento de investigação do secretariado internacional da AI, era exigido às autoridades sírias que fosse divulgado o paradeiro de Akram Kurdya e que fosse libertado ou sujeito a um julgamento rápido e justo se houvesse acusação da prática de atos delituosos. De acordo com o método de trabalho da AI, um caso aberto só pode ser encerrado quando forem observadas todas as recomendações decididas. Por conseguinte, todas as semanas eram enviadas cartas para o Akram e para várias entidades, apesar de não termos tido qualquer resposta. Passados cerca de 20 anos recebamos a indicação de que o governo sírio autorizou a saída de Akram para a França. Durante estes 20 anos mantivemos a pressão sobre as autoridades.
Decorridos
cerca de seis meses da minha inscrição na secção portuguesa decorreu, em Março
de 1986, no Porto, a assembleia geral para aprovação do relatório e contas de
1985, plano e orçamento de 1986 e eleição dos órgãos sociais para o biénio
1986/87. A eleição foi uninominal e eu fui um dos eleitos para a Direção, tendo
sido acordado que ficasse com o pelouro da Formação (Os restantes elementos
eleitos foram o Vítor Nogueira como presidente, a Eduarda Sousa como
tesoureira, a Isabel Morais e a Ana Ribeiro). Como presidente da Assembleia
Geral foi eleito o Luís Silveira. No mês seguinte teve lugar a 1ª reunião da
Direção eleita, nas instalações da sede em Lisboa (Rua Martens Ferrão 34-3º
dtº), com a presença da única funcionária Aida Chamiça. As instalações
surpreenderam-me pela negativa, dada a sua decrepitude. Apesar de eu ter conhecido, e contactado,
pela primeira vez, os restantes membros dos órgãos sociais na própria AG, o
mandato do biénio foi exercido em clima de grande cooperação e amizade, valores
estes que estiveram sempre presentes em todos os mandatos seguintes, independentemente
das salutares diferenças de opinião. Em 1987 teve lugar a reunião do Conselho
Internacional (ICM) no Brasil (Águas de Lindóia, perto de S. Paulo), com a
presença de cerca de 400 delegados de todas as secções nacionais que compunham a AI. Fui um dos quatro representantes da secção
portuguesa. Estas reuniões do Conselho Internacional da AI tinham periocidade
bienal e eram compostas por representantes de todas as secções mundiais da AI,
sendo a sua duração de 10 dias, decorrendo em países sempre diferentes e
escolhidos pelo Comité Executivo Internacional.
Esta
ligação umbilical à AI ir-se-ia manter durante toda a minha vida. Fui eleito
várias vezes para o exercício de mandatos na Direção, como vogal (pelouros da
formação, imprensa e programa de língua portuguesa), tesoureiro e presidente da
Direção. O último mandato foi o de presidente da assembleia geral em 2015/2017.
Também integrei a delegação portuguesas a várias reuniões dos conselhos
internacionais (ICM) (Brasil-Águas de Lindóia 1987; Irlanda-Dublin 1989; Japão-Yokohama 1991; USA-Boston 1993; Eslovénia-Liubliana
1995), assim como participei em dezenas de outras reuniões internacionais
(Londres, Madrid, Paris, Roma, Bruxelas, Antuérpia, Quito, Cuenca, Guayaquil,
Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, Bogotá, Santa Marta, Barranquilha,
etc…). o que me permitiu ter uma boa ideia das diferentes realidades mundiais.
Esta participação intensa (não remunerada pois todos os dirigentes da AI eram
voluntários) na vida da secção portuguesa acabou por afetar a minha vida
familiar e profissional, havendo anos em que passei vários meses fora do país
por longos períodos alternados. Além das
funções nos órgãos nacionais, desempenhei funções de ativista e coordenador dos
grupos locais 6 (Porto), 20 (V.N.Gaia) e do cogrupo sobre os direitos das
crianças.
Obviamente
que estes cerca de quarenta anos de militância têm muitos marcos relevantes,
dos quais destacarei alguns dos mais significativos.
Corria
o ano de 1996 e em Portugal encontrava-se em curso o processo de revisão
constitucional, sendo preciso acordos partidários para a obtenção dos 2/3
necessários à aprovação das alterações. Neste sentido desenvolveram-se
contactos entre os diferentes partidos políticos, tendo o PS e o PSD celebrado
um acordo de natureza confidencial, dado o melindre de que algumas propostas de
alteração se revestiam. Uma destas propostas prendia-se com a alteração do artº
33º da altura, em cuja redação se abria
a possibilidade de extradição para países aonde vigorava a pena de morte (esta
proposta não estaria desligada das conversações entre Portugal e a China
relativas à questão de Macau, eliminando a garantia que as pessoas residentes
em Macau tinham de não serem condenadas a penas superiores a 20 anos nem
condenadas à morte, já que em Macau se aplicava o direito penal vigente em
Portugal, o que não se aplicaria no caso de serem extraditadas para a China).
Como em quase todos
os segredos que se pensa estarem bem guardados, mão amiga fez-me chegar uma
cópia desse acordo confidencial PS/PSD. Como já estava próxima a data da
revisão constitucional, tomamos na Secção Portuguesa decisões sobre um conjunto
de ações que iríamos desencadear para impedir a aplicação desse acordo no que
tocava ao artº 33º, nomeadamente:
- Pedir audiência à
Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República (A.R.);
- Realizar um debate sobre
Direitos Humanos em Portugal;
- Propor ao
Secretariado Internacional da A.I. a realização de uma ação urgente sobre
Portugal.
- Denunciar
publicamente a gravidade dessa proposta de alteração.
A divulgação destas
ações teve importante alarido na comunicação social. Por exemplo, o programa
“Falatório” da RTP1, coordenado pela jornalista Paula Moura Pinheiro, transmitiu
uma entrevista, comigo e com o advogado Francisco Teixeira da Mota, de grande
audiência e que levou a que o Ministro da Justiça na altura, Vera Jardim,
tivesse telefonado para a RTP para intervir em direto, telefonicamente, no
programa, tendo-se gerado um pequeno debate entre nós, em que o ministro deixou
subentendido que estava desalinhado com a proposta do seu partido. Na audiência com a Comissão da A.R. foi
notória a dificuldade do PS e PSD em sustentarem a sua proposta, tendo,
inclusivamente, o ex-presidente da A.R., Dr. Barbosa de Melo, declarado, em
sessão da Comissão, que o seu partido (PSD) estava errado e que a AI tinha
razão. Na reunião havida com o presidente da Assembleia da República, Dr.
Almeida Santos, este não quis debater o assunto pois considerava que não de
devia pôr em causa as relações com a China. No debate sobre Direitos Humanos em
Portugal, realizado conjuntamente com a Civitas, o Fórum Justiça e Liberdades e
a APRIL, o Presidente da República, Jorge Sampaio, que presidiu à abertura, além
de nos ter recebido em audiência no Palácio de Belém, prometeu sensibilizar os
partidos políticos para a delicadeza do assunto. Na ação urgente lançada pela
AI (a única ação urgente sobre Portugal depois da revolução de 25 de abril de
1974), concertada em várias reuniões em Londres com os mais altos dirigentes da
AI, obtivemos uma participação enorme de milhares de cartas de pressão, de todo
o mundo, sobre as autoridades portuguesas (muitos dirigentes políticos mundiais
e seus familiares são membros da A.I. e participam nas nossas campanhas).
Alguns deputados e membros do governo português chegaram a dizer-me que nos seus
contactos internacionais eram abordados por colegas doutros países e pela
comunicação social internacional perguntando como é que em Portugal estava em
curso uma ação de retrocesso civilizacional, contrariando as recomendações do
Conselho da Europa e da ONU.
Com
estas ações e as múltiplas intervenções da Secção Portuguesa conseguimos travar
essa parte do acordo e não houve a introdução no artº 33º da possibilidade de
extradição para países aonde vigorava a pena de morte (Numa revisão
constitucional posterior a redação do artigo foi, infelizmente, alterada, ainda
que se mantenha o princípio da não extradição em casos da aplicação da pena de
morte, de tortura ou outras penas cruéis, desumanas e degradantes).
Mais
uma vez a A.I. demonstrava que não é por acaso que a defesa dos direitos humanos
universalmente consagrados encontra nos seus membros um baluarte que consegue
vencer quem não quer respeitar esses valores de profundo progresso civilizacional.
Na
sequência do processo de contestação da revisão da Constituição da República
Portuguesa relativamente à extradição de pessoas para países que preveem a pena
de morte, o secretário geral da AI, Pierre Sané, efetuou uma visita a Portugal,
acompanhado do investigador para a Europa do Sul, David Braham. Nesta visita
mantiveram-se contactos com altos responsáveis políticos, sociais e religiosos
(Presidente da República Jorge Sampaio, Presidente da Assembleia da República
Almeida Santos. Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa D. José Alves,
etc…) que tiveram ampla cobertura noticiosa nos órgãos de comunicação social.
Na reunião havida com o Presidente da Assembleia da República foi abordada a
comemoração do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos em
1998, tendo sido assumido que Portugal relevaria esse facto com a proposta de a
Assembleia da República passar a atribuir anualmente um prémio de Direitos
Humanos, a entregar no dia 10 de Dezembro de todos os anos seguintes, a uma
entidade com trabalho relevante na área dos direitos humanos (duas das
organizações em fui dirigente receberam este prémio – A AI em 2006 e a O.V.A.R.
em 2018).
Um dos
países com presença constante nos relatórios da AI é a Turquia. A secção
portuguesa tem um historial significativo de presença na divulgação das violações
de direitos humanos nesse país, com ações públicas e intervenções nos órgãos de
comunicação social. Numa dessas ações, a embaixada da Turquia em Lisboa
contestou a divulgação pela AI dum elevado número de presos políticos, pelo que
solicitamos uma reunião com o embaixador para obtermos resposta concreta para
as pessoas que mencionávamos. Contrariando a ausência de resposta anteriormente
havida para reuniões, desta vez o embaixador aceitou receber-me, a sós, na
qualidade de presidente da secção portuguesa. Ponderado o risco de algo poder
acontecer (a embaixada é território do país que representa), aceitei essa
condição de reunião a sós, tendo concertado com um colega da AI (José Manuel
Cabral) que este aguardaria por mim no exterior da embaixada durante uma hora,
após o que tocaria à porta perguntando por mim e, na ausência de resposta,
contactaria o Ministério dos Negócios Estrangeiros. À entrada da embaixada
foi-me exigido que fosse revistado pela polícia turca, tendo eu recusado a
revista, sendo essa exigência retirada após a polícia contactar o embaixador. A
reunião foi tensa, pois o embaixador não esperava que a AI tivesse dados
concretos sobre as pessoas (nomes e locais de detenção), tendo-se recusado a
assumir que iria pedir explicações ao seu governo, ao que eu respondi que nesse
dia iria denunciar essa posição da Turquia. Passados 45 minutos saí da
embaixada com alívio dos colegas que me esperavam no exterior e na sede da AI.
Passados
mais de 30 anos desde o nascimento da AI, esta já se encontrava implantada em quase
todas as regiões do mundo, com secções nacionais em mais de 70 países. Tendo em
conta que ainda não havia estruturas da AI em muitos países que tinham o
português como língua oficial (só havia em Portugal e no Brasil), a secção portuguesa
desempenhava um papel de relevo em todas as ações que envolvessem os restantes
territórios, nomeadamente nos PALOPs (Países africanos de língua oficial
portuguesa). Numa dessas ações, fomos incumbidos, em 1996/97, de pressionar a
UNITA (força política angolana que estava em guerra com o governo sediado em
Luanda) no sentido de libertar um familiar duma família que se encontrava
refugiada no Canadá (não havia liberdade de movimentação nas áreas controladas
pela UNITA). De entre as iniciativas levadas a efeito, destaca-se o contacto
pessoal que mantive com um elemento da Direção da UNITA (Dra. Fátima Roque,
esposa do presidente do banco BANIF), numa reunião a sós que com ela mantive no
Hotel Infante de Sagres no Porto, aproveitando a circunstância de uma
conferência promovida pelo Fórum Portucalense (de cuja direção eu fazia parte),
entidade que mantinha boas relações com dirigentes da UNITA. Da conversa havida
resultou o compromisso da Dra. Fátima Roque ir fazer diligências para a
libertação de pessoa em causa, o que veio a acontecer pouco tempo depois.
Esta
importância que a secção portuguesa da AI ia tendo no seio da organização teve
tradução na criação dum programa de língua portuguesa (as línguas oficiais da
AI eram o inglês, francês, castelhano e árabe), aprovado na reunião do Conselho
Internacional -ICM- em Yokohama (Japão) em 1991, o que permitiu uma difusão
mais ampla das publicações que o movimento ia produzindo, tendo-se traduzido
numa maior penetração na sociedade em Portugal, nomeadamente junto dos órgãos
de comunicação social, de que grandes exemplos foram a entrevista de uma hora,
no programa de grande audiência “Conversas Secretas”, produzido pelo jornalista
Baptista Bastos no canal de televisão SIC, e do programa “Falatório”
apresentado pela jornalista Paula Moura Pinheiro com a colaboração do advogado
Francisco Teixeira da Mota na RTP (como já referi, neste programa o Ministro da
Justiça Dr. Vera Jardim telefonou, em direto, para o programa tentando justificar
as críticas que estavam a ser feitas ao Governo de que fazia parte), assim como
muitas outras reportagens e notícias nos diferentes canais de televisão e
noutros órgãos de comunicação social.
Uma
outra ação relevante desencadeada durante a visita do Secretário Geral da AI,
Pierre Sané, nos finais de 1996, foi a diligência privada e confidencial
efetuada junto do ex-Presidente da República, Mário Soares (em reunião havida
na Fundação Mário Soares), no sentido de este aceitar participar num grupo
restrito de grandes líderes mundiais, com ligações pessoais e diplomáticas
relevantes, a quem a AI recorreria sempre que um gravíssimo problema de
direitos humanos estivesse a ocorrer em qualquer parte do mundo, no sentido de
que as relações pessoais entre esses líderes contribuísse para a rápida
resolução do problema. Mário Soares aceitou participar e durante algum tempo
este grupo de personalidades agiu, confidencialmente, para a proteção de
pessoas que estavam em risco em diversas partes do mundo, utilizando as
relações pessoais que tinham com dirigentes dos países onde tais ocorrências se
estavam a verificar. Só um grupo restrito de pessoas conhecia este projeto e
nenhum órgão de comunicação social teve dele conhecimento na altura.
Mas,
nem sempre as boas relações que a AI mantinha com alguns líderes tiveram
resultados positivos. Bastará lembrar que não conseguimos que o presidente
Mário Soares, membro da AI, colocasse na agenda da visita, a Portugal, do Rei
Hassan de Marrocos, o fim das prisões secretas nesse país, às quais nem a Cruz
Vermelha tinha acesso, com o argumento de que o Rei Hassan era um travão ao
fundamentalismo islâmico em Marrocos e que, portanto, não se devia colocar na
agenda um grão de areia que ofuscasse as boas relações Portugal/Marrocos.
Também, aquando da visita de Mário Soares à China, a convite das autoridades
chinesas, não conseguimos colocar na agenda a situação dos direitos humanos na
China, tendo Mário Soares nos dito que indo como convidado não seria um ato de
cortesia colocar um problema que desagradasse às entidades que o convidaram. Aliás,
as relações entre a AI e Mário Soares pautaram-se, sempre com grande franqueza,
apesar de nem sempre sermos apoiados. Mário Soares foi considerado “Prisioneiro
de Consciência” em 1968 pela AI, quando foi deportado para S. Tomé e Príncipe
pelo regime político vigente em Portugal antes do 25 de Abril de 1974, o que
levou a que a AI desencadeasse uma grande campanha mundial pela sua libertação.
Esta ação gerou em Mário Soares um grande capital de simpatia para com a AI, o
que se veio a manifestar, alguns anos mais tarde, na sua inscrição como membro
da secção portuguesa da AI.
Uma
outra grande ação em que a secção portuguesa participou ativamente foi a
clarificação da posição da AI sobre as questões de identidade sexual. Como, na
altura, a AI só tomava posições concretas sobre temas de direitos humanos
constantes do seu mandato (prisioneiros de consciência, pena de morte, tortura
e tratamentos cruéis, desumanos e degradantes, execuções extra-judiciais e
desaparecimentos) para os quais aprofundava a investigação, caso a caso, nos
outros temas de direitos humanos constantes dos referenciais internacionais a
AI limitava-se à sua abordagem genérica. No entanto, desde há muitos anos que
havia, no seio da AI, grande pressão para que a questão das identidades sexuais
fosse incluída no mandato, pelo que foi feito um grande estudo internacional,
com recurso a entidades com trabalhos aprofundados nessa área, que durou alguns
anos, até que no ICM de Japão-Yokohama
1991, se apreciou um estudo detalhado apresentado pelo Comité Executivo
Internacional da AI e se aprovou uma resolução que passou a ser a posição
oficial da AI sobre a identidade sexual: “Todas as pessoas têm o direito a
exercer a sua identidade sexual desde que em privado, entre adultos e com livre
consentimento”. Durante esta reunião do ICM fomos pressionados pelo lobby
fortíssimo LGBT, que, permanentemente, nos assediava nos corredores do hotel
onde decorria a reunião para a defesa das suas posições, já que não concordavam
com as condicionantes do texto que foi aprovado (privado, adultos, livre
consentimento). Aliás, a ILGA Portugal (Associação
de Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e
Intersexo) convidou a secção portuguesa da AI para a mesa de honra da sua
sessão pública de apresentação (1996?), tendo eu declarado, na minha
intervenção protocolar enquanto presidente da secção portuguesa, a posição
oficial da AI, o que não deixou satisfeitos muitos dos presentes que queriam a
ausência de condicionantes para a admissão e prática das várias identidades
sexuais.
O crescimento e a
qualidade de trabalho que a secção portuguesa da AI demostrou, desde a sua
criação, granjearam-lhe respeito e consideração no Secretariado Internacional
da AI em Londres. Como tal, eram atribuídas à secção portuguesa funções de
natureza internacional, nomeadamente em países de língua portuguesa e
hispânica. Nestas funções fui delegado na EDAI (Editorial de Publicações em
Língua Castelhana) o que me obrigava à participação em reuniões internacionais
em vários países, com relevo para a América Latina. Numa dessas reuniões, que
decorreu em Santa Marta (norte da Colômbia), num resort turístico cujo
proprietário era um importante “capo” ligado a negócios “escuros”, vi-me
envolvido numa situação de perigo de vida quando, aproveitando um dia de pausa
nos trabalhos da reunião, decidi, com outros colegas presentes na reunião,
deslocar-me à histórica cidade de Cartagena das Índias, que dista cerca de 200
Km do local onde nos encontrávamos. Para tal efeito, consultamos os horários
das carreiras de autocarros e decidimos partir às 6 horas da manhã, com
regresso previsto para o último autocarro que partia de Cartagena as 18 horas.
Passamos o dia na visita à cidade e antes das 18 horas dirigimo-nos à estação
dos autocarros onde fomos informados que o autocarro dessa hora tinha sido
cancelado. Como tínhamos de regressar nesse dia a Santa Marta, não tivemos
alternativa que não fosse alugar um mini-bus com motorista, apesar da relutância
deste em nos transportar alegando que o percurso era perigoso durante a noite,
já que na zona proliferavam milícias armadas que costumavam assaltar quem por
lá circulava. Pagando uma quantia extra, decidimos correr o risco da viagem de
regresso nessa noite. Ora, aconteceu que a meio do percurso uma dessas
milícias, armada de metralhadores, obrigou-nos a parar e ordenou-nos que
saíssemos e nos colocássemos de costas contra uma parede, com as mãos
levantadas e as metralhadoras para nós apontadas, alegando que éramos agentes
estrangeiros simpatizantes do governo nacional. O motorista entabulou
negociações com o chefe da milícia e quando referiu que o nosso destino era o
resort turístico de Santa Marta (cujo proprietário estava ligado a essa
milícia) fomos autorizados a prosseguir viagem, sem nos deixarem de informar que
a nossa vida esteve em risco.
Numa outra ação
internacional, o Secretariado Internacional da A.I. sondou-me sobre a
possibilidade de eu levar uma ajuda financeira confidencial (2.000 dólares) a
uma família da favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, da qual vários
membros da família tinham sido mortos numa operação policial, em 1993, pelo que
se encontravam em situação económica difícil. Como eu tinha familiares a viver no Rio de
Janeiro poderia alegar que a quantia que transportava (valor superior ao
legalmente autorizado nesse tempo) se destinava a doar a esses familiares.
Aceitei realizar essa missão, fazendo-me acompanhar, a expensas minhas, da
minha mulher para melhor credibilizar a posse da quantia. O Secretariado
Internacional estabeleceu os contactos com a milícia que controlava a favela no
sentido de se programar a forma do dinheiro chegar à família. Foi-me indicado
que me instalasse no Hotel Leme, na praia de Copacabana, onde alguém nos iria
buscar para nos transportar à favela. Ao início duma manhã, fomos chamados à
receção do hotel, onde se encontrava um motorista com as indicações previamente
combinadas, que nos transportou até à entrada da favela, onde fomos recebidos
por responsáveis da milícia que controlava a favela e nos levaram à família a
quem entregamos os 2.000 dólares. Passamos o dia a visitar a favela, fomos bem
tratados e acarinhados, e ao fim do dia trataram de nos proporcionar o regresso
ao hotel. Missão humanitária cumprida e com sucesso.
Nos finais de 1997 entendi que devia suspender
o meu envolvimento intenso na AI, pois estava a prejudicar seriamente a minha
vida familiar e profissional, pelo que, não cedendo a vários pedidos, resolvi
não me recandidatar às eleições nacionais para o mandato seguinte, mantendo-me
como ativista singular e membro do grupo local de V.N.Gaia, cuja coordenadora
era a Dra. Glória Felgueiras, diretora
fabril da Cerâmica do Douro.
Mas, dando continuidade a uma ação
programada para 1998 (comemoração do 50º aniversário da Declaração Universal
dos Direitos Humanos), a Direção eleita para o mandato 1998/99, presidida pelo
Cmdt. José Manuel Cabral, solicitou-me que continuasse a coordenar essa ação,
já que tinha sido eu o idealizador do programa planeado. Como corolário do
programa estava previsto um concerto comemorativo em 10/12/1998, a decorrer no
Europarque de Santa Maria da Feira que seria cedido gratuitamente, assim como a
participação sem honorários da Orquestra Sinfónica do Porto, na sequência de
vários contactos mantidos com o diretor do Europarque, Dr. António Jorge
Pacheco, que conseguiu tais benefícios. Do programa constava a Sinfonia do Novo
Mundo, de Dvorak, e o Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio, já tinha
anuído a presidir ao concerto. Mas, no início de 1998 o governo português
convidou a secção portuguesa da AI para integrar a estrutura governamental das
comemorações do 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
convite este aceite contra a minha opinião, pois entendia que a integração numa
estrutura coordenada e financiada pelo governo português hipotecava a imagem de
isenção, independência e imparcialidade da AI. Neste sentido, renunciei a ser o
coordenador das comemorações e comuniquei a anulação do programa ao Europarque,
à Presidência da República e à comunicação social.
Na continuidade
da minha ação como ativista de direitos humanos e por solicitação da então presidente
da secção portuguesa, Lucília José Justino, em 2010 constituí uma estrutura
para trabalhar sobre os direitos específicos das crianças (Cogrupo sobre os
Direitos das Crianças), de que fui eleito coordenador. Os elementos fundadores
do cogrupo, além de mim próprio, foram a minha mulher Dra. Maria de Lurdes, a
minha filha Prof. Alexandra Martins, o Engº Pedro Nicolau, a Dra. Mónica
Nicolau, a Dra. Maria Adelina Ramos e a Prof.
Manuela Ramos, a que se juntaram posteriormente o Dr. Campelo de Sousa, a Dra.
Lídia Pina, o Dr. Pedro Pedrosa, a Dra. Joana Coutinho e outros membros com
participação residual. Este cogrupo desenvolveu
as ações de campanha normais para estas estruturas, de que se destacou o
dossier de ação sobre o ativista turco Faraht Gerçek, jovem baleado pela polícia
turca, que o deixou incapacitado, mas acusado pelas autoridades turcas de
atividades ilegais (como era norma da gestão internacional dos dossiers de
ação, os grupos locais deveriam ter um dos seus membros como gestor do dossier,
tendo tal tarefa sido atribuída ao membro do grupo Engº Pedro Nicolau).
Uma outra ação relevante desenvolvida pelo cogrupo foi a realização do “Seminário
Internacional "Os Direitos das Crianças na Atualidade" - Porto, 19 de
Novembro de 2011”, no qual participaram
especialistas nacionais e internacionais da temática em análise e que
evidenciou aspetos importantes ainda pouco praticados (Ver conclusões no final
deste capítulo).
O Cogrupo representou
a secção portuguesa em diferentes eventos e estruturas, nomeadamente na
Plataforma “Fórum sobre os Direitos da Criança” que englobou dezenas de
entidades nacionais envolvidas no trabalho com crianças durante a década
2010-2020. Além disto, o Cogrupo editou cadernos temáticos (newsletters) sobre aspetos
específicos dos direitos das crianças, tais como: “Justiça Juvenil”, “Castigos
Corporais”, “Pobreza infantil”,” Provedor da Criança”, etc… (No final deste
capítulo pode-se encontrar uma dessas newsletters). O Cogrupo enviou, ainda, pareceres sobre
aspetos em atualidade, de que o parecer sobre a “Coadoção
de crianças” e sobre o “Estatuto do Aluno e Ética Escolar” remetidos à
Assembleia da República mereceram destaque relevante. O Cogrupo acabou por se
extinguir devido ao desinteresse da secção portuguesa na sua continuidade, dada
a divergência sobre a prioridade do seu trabalho. A exigência do Diretor
Executivo, Pedro Neto, de extinguir o blogue que o cogrupo utilizava (cogrupodireitosdascriancas.blogspot.com) apagou um histórico de trabalho de
bastante interesse para a AI.
Muitos outros
aspetos poderia referir sobre o meu voluntariado na AI. Não quero referir os
aspetos negativos que têm vindo a afetar o trabalho da organização, diminuindo
a sua relevância, quase parecendo que, atualmente, vive por conta do capital
construído no passado. Mas as bases da sua criação, o mandato que presidia ao
seu trabalho e as diretrizes tidas em conta permanentemente, tornaram-na numa
ONG incontornável na área. Saliente-se o princípio de não divulgação pública da
identidade dos seus membros (quem quiser pode assumir-se como membro da AI mas
a organização não o divulga), assim como os apelos mensais, inseridos nas
revistas das secções, de três casos mundiais de violações de direitos humanos
(todos os meses os membros da AI faziam chegar, às autoridades responsáveis
pelos casos, milhares de cartas e emails exigindo a sua resolução). Esta ação,
por exemplo, era de enorme eficácia já que quase afogava o correio normal da
entidade, obrigando-a a tê-la em atenção.
Além de
que a AI age, muitas vezes, em colaboração com outras ONGs, aumentando o grau
de pressão sobre as autoridades. Por exemplo, quando Nelson Mandela, ativista
sul-africano e futuro presidente desse país, se encontrava preso depois de um
julgamento injusto, com base no sistema de apartheid em vigor na África do Sul,
foi organizada em Londres uma vigília permanente (24 horas por dia durante os
365 dias do ano), durante anos, em Trafalgar Square, junto à embaixada da
África do Sul, com a colaboração da AI, e que, durante noite e dia, mantinha
ativistas na banca montada, distribuindo propaganda e entoando cânticos de
protesto pela atuação das autoridades sul-africanas. Quando me deslocava a
Londres passava algum tempo no grupo de vigília em solidariedade com os
objetivos da ação. Nelson Mandela acabou por ser libertado e o sistema de
apartheid foi abolido.
Apesar
de continuar ligado à AI, atualmente apenas como membro-associado, foi no
período 1986-1997 que mais me envolvi no trabalho de fundo da organização. Tive
ocasião de me relacionar com um grupo de ativistas de grande nível de que
refiro, por exemplo: Isabel Morais, Margarida Mendes
Silva, Vítor Nogueira, Zé Justino, Simões Monteiro, José Manuel Cabral, Luís
Silveira, Luísa Marques, Irene Rodrigues, Conceição Lobo Antunes, Nabais
Caldeira, João Freire, Teresa Nogueira, Ângelo Campelo de Sousa e tantos
outros. A minha última função nos órgãos sociais consistiu no exercício de
funções de presidente da assembleia geral no período 2016/2017, tendo proferido
na última assembleia geral a que presidi um discurso cujo texto de encontra
mais à frente neste capítulo.
Em tempo de refluxo na observância
dos direitos humanos universalmente consagrados, torna-se necessário que a AI
volte a ter o protagonismo que teve no passado.
Sedes
da Amnistia Internacional Secção Portuguesa
- Criada em 18 de maio de 1981
e constituída notarialmente em 6 de julho de 1981, com sede na Rua Marquês de
Fronteira, nº 82 - 5º esquerdo, em
Lisboa.
- Rua Martens Ferrão, nº 34 -
3º, Lisboa, de 1983 a 1993
- Rua de Campolide, nº 105 –
1º, Lisboa, de 1993 a 1995
- Rua Fialho de
Almeida, nº 13 - 1.º, Lisboa, de 1995 a 2007
- Avenida Infante Santo, nº 42 –
2º, Lisboa, de 2007 a 2013
- Rua dos Remolares, nº 7 – 2º,
Lisboa, de 2013 até ao presente
Cogrupo sobre os Direitos das Crianças
Seminário
Internacional "Os Direitos das Crianças na Atualidade"
Porto, 19 de
Novembro de 2011
Conclusões
O grupo de trabalho, constituído pelos moderadores dos painéis que consubstanciaram o Seminário Internacional “Os Direitos das Crianças na Atualidade”, concluiu:
- Há ainda uma grande distância entre o estipulado nos instrumentos jurídicos
internacionais que se debruçam sobre os direitos das crianças e a realidade do
quotidiano;
- As lacunas no cumprimento da Convenção dos Direitos
da Criança são muitas e de variada ordem, desde o nível de exigência das
crianças desfocada das necessidades e potencialidades, até à inobservância do
interesse superior da criança quando se decide sobre aspetos da sua vida;
- As autoridades governamentais não têm assumido as
suas obrigações para com o respeito pelos direitos das crianças, traduzindo-se,
por exemplo, na ausência de relatórios periódicos sobre a implementação da
Convenção dos Direitos da Criança, não cumprindo aquilo a que estão obrigadas.
- As crianças continuam a serem vítimas de atropelos e maus tratos à sua
integridade física e intelectual;
- A comunidade tem transportado para as crianças
obrigações desajustadas, negligenciando responsabilidades que cabem aos
adultos, esquecendo que as crianças são sujeitos portadores de direitos e não
seres com menor estatuto que os adultos;
- As condições de vida de muitas crianças não incorpora, ainda, a utilização de
meios básicos de vida, tais como o acesso à água, à eletricidade, à
alimentação, à saúde e à educação. Aliás, em muitos casos assiste-se até a um
retrocesso, já que o agravamento de situações de pobreza tem feito que crianças
que dispunham destes meios passassem a deixar de os ter.
- Assiste-se a ações levianas da comunidade na consideração dos interesses das
crianças, como, por exemplo, em casos de separação dos pais e em situações de
adoção;
- A institucionalização de crianças por rutura das ligações familiares não pode
ser vista como uma solução tecnocrática e asséptica para descanso dos
responsáveis, já que as situações que lhe dão origem se traduzem sempre em
danos psicológicos nas crianças que não se resolvem por essa via;
- A educação das crianças tem de ser feita respeitando as orientações da
Convenção dos Direitos da Criança, com a existência de tempos livres
suficientes e o acesso a condições de usufruto da prática lúdica;
- Tem de ser acautelado que os normativos reguladores das infrações
disciplinares aplicáveis às crianças, no tocante aos seus meios de defesa,
sejam adequados ao seu estatuto, de acordo com o estipulado na Convenção dos
Direitos da Criança, não podendo ser de menor valia jurídica do que aqueles que
se aplicam aos adultos,
- É imperioso assegurar que a preocupação do exercício
da autoridade de pais, professores e instituições, não se traduza em violação
dos Direitos Humanos das Crianças, da sua dignidade, nem dos seus meios de
defesa.
- Importa relevar o direito ao afeto e à parentalidade
sócio-afetiva como uma regra incontornável na consideração dos direitos das
crianças;
- É importante que as crianças não sejam colocadas à
margem quando os pais ou encarregados de educação são objeto do cumprimento de
penas de prisão;
- Deve ser sempre realçada a necessidade de reforçar o
interesse superior da criança como elemento fundamental em toda a problemática
inerente à criança;
- Importa assimilar o princípio de que os adultos não têm
direito à adoção, mas, sim, as crianças é que têm o direito a serem adotadas;
- Deve ser reconhecida à criança voz ativa em processo
de separação dos pais ou de quem com ela mantenha relações de responsabilidade;
- Devem ser reforçados os meios materiais para que o
Comité dos Direitos da Criança leve a cargo todas as funções que lhe estão
incumbidas;
- A criança tem de ter o poder de participar em todas
as decisões que a afetem;
- Apesar do progresso havido em muitos aspetos da vida
das crianças, é preocupante que indicadores como o índice de pobreza,
institucionalização e acompanhamento de crianças em risco se mantenham em
valores elevados;
- As organizações não governamentais desempenham um
papel relevante na promoção dos direitos humanos das crianças, sendo necessário
um incremento da sua participação na definição de políticas que afetem as
crianças;
- Sendo a exposição a modelos de comportamento
desviante uma das principais situações de risco para as crianças, importa que a
comunidade em geral, e os órgãos de comunicação social em particular, tenham
isto em conta nos programas e conteúdos que transmitem e nos meios que produzem
de acesso às crianças;
- É necessário estudar a generalização da figura do Provedor da Criança, já
existente em muitos países desenvolvidos, de forma a possibilitar o acesso, das
crianças e de pessoas e entidades que por elas se interessem, a uma entidade
com poder e estatuto que lhes possibilitem o exercício dos seus direitos;
Que a tristeza de uma criança encontre sempre o consolo
de uma mão amiga e carinhosa, que transforme essa tristeza num sorriso de
alegria e confiança.
AMNISTIA
INTERNACIONAL – PORTUGAL
Cogrupo sobre os
Direitos da Criança
Justiça Juvenil
Newsletter nº 4
1 – A Justiça Juvenil na Convenção dos Direitos da Criança
Em
25 de Abril de 2007, o Comité dos Direitos da Criança da ONU divulgou a sua
apreciação sobre a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança relativamente
às questões de justiça juvenil (General Comment No. 10 - 2007 - Children’s
rights in juvenile justice) – (ver o seguinte link)
Na
introdução, o Comité declara: Nos relatórios apresentados sobre os Direitos da
Criança, os Estados-partes, dedicam, muitas vezes, bastante e detalhada atenção
para os direitos das crianças quando acusadas ou reconhecidas como tendo
infringido a lei penal (crianças em conflito com a lei). Em consonância com as
orientações da Comissão para emissão de relatórios periódicos, a aplicação dos
artigos 37º e 40º da Convenção sobre os Direitos da Criança (daqui por diante:
CRC) são o foco principal das informações fornecidas pelos Estados-partes. A
Comissão regista com apreço os muitos esforços para estabelecer uma
administração da justiça juvenil, em conformidade com o CRC. No entanto, também
é evidente que muitos Estados-partes têm ainda um longo caminho a percorrer
para alcançar o cumprimento integral da CRC, por exemplo, nas áreas de direitos
processuais, o desenvolvimento e implementação de medidas para lidar com
crianças em conflito com a lei, sem recorrer a procedimentos judiciais e ao uso
da privação da liberdade somente como medida de último recurso. A Comissão está
igualmente preocupada com a falta de informação sobre as medidas tomadas pelos
Estados-partes para impedir que crianças entrem em conflito com a lei. Isto
pode ser o resultado da falta de uma política abrangente para o campo de
justiça juvenil. Isto, também, pode explicar por que muitos Estados-partes
fornecem, apenas, muito limitada informação de dados estatísticos sobre o
tratamento de crianças em conflito com a lei. Uma política de justiça juvenil
nacional e abrangente deve promover a integração de outras normas
internacionais, em particular, as regras mínimas das Nações Unidas para a
administração da justiça juvenil (the “Beijing Rules”), as regras das Nações
Unidas para a proteção de jovens privados de sua liberdade (the “Havana
Rules”), e as diretrizes das Nações Unidas para a prevenção da delinquência
juvenil (the “Riyadh Guidelines”) e as “Regras de Bangkok” (crianças com mães a
cumprir penas de privação da liberdade).
Como
princípios orientadores para uma política compreensiva de justiça juvenil, o
Comité sustenta que o estatuído nalguns artigos da Convenção dos Direitos da
Criança tem de ser observado em qualquer sistema de justiça juvenil,
nomeadamente a não discriminação (artº 2º), o superior interesse da criança
(artº 3º), o direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento (artº 6º), o
direito a ser ouvida (artº 12º) e o direito à dignidade (artº 40º). Como
elementos base para uma política compreensiva de justiça juvenil destacam-se: a
prevenção da justiça juvenil; ações evitando o recurso a intervenções judiciais
e cuidados durante estas intervenções; idade mínima de responsabilidade
criminal e aumento do limite de idade para a justiça juvenil; garantias alargadas
para um julgamento justo, privação da liberdade, incluindo a prisão preventiva,
e prisão após julgamento.
Direito
à não discriminação
Uma das
questões relevantes sobre a discriminação assenta em que é bastante comum que
os códigos penais contenham disposições criminalizando problemas
comportamentais das crianças, como vadiagem, evasão escolar, fugas e outros
atos, que muitas vezes são o resultado de problemas psicológicos ou
sócio-económicos. É, sobretudo, motivo de preocupação que meninas e meninos de
rua sejam, muitas vezes, vítimas desta criminalização. Estes atos, também
conhecidos como infrações de condição, não são considerados como tal se
cometidos por adultos. A Comissão recomenda que os Estados-partes abolam estas
disposições sobre crimes condição a fim de estabelecer uma igualdade de
tratamento nos termos da lei, para crianças e adultos. A este respeito, a
Comissão também se refere ao artigo 56º das orientações de Riade, onde se lê:
"para evitar maior estigmatização, vitimização e criminalização dos jovens,
deve ser promulgada legislação para garantir que qualquer conduta não
considerada um delito, ou não penalizada, se cometida por um adulto, não seja
considerada uma infração e não seja penalizada se cometida por uma pessoa
jovem.
Superior
interesse da criança
Em
todas as decisões tomadas no âmbito da administração da justiça juvenil, o
superior interesse da criança deve ser uma consideração primária. As crianças
diferem dos adultos no seu desenvolvimento físico e psicológico e nas suas
necessidades emocionais e educacionais. Tais diferenças constituem a base para
a menor culpabilidade das crianças em conflito com a lei. Estas e outras
diferenças são as razões para um sistema de justiça juvenil específico e exigem
um tratamento diferente para as crianças. A proteção do superior interesse da
criança significa, por exemplo, que os objetivos tradicionais de justiça penal,
tais como a repressão/retribuição, devem dar lugar à reabilitação e objetivos
de justiça restaurativa quando se lida com menores infratores. Isso pode ser
feito em conjunto com a atenção a uma eficaz segurança pública.
O
direito à vida, à sobrevivência e ao desenvolvimento
Este
direito inerente de cada criança deve guiar e inspirar os Estados-partes no
desenvolvimento de políticas nacionais eficazes e programas para a prevenção da
delinquência juvenil, porque é evidente que a delinquência tem um impacto muito
negativo sobre o desenvolvimento da criança. Além disso, este direito básico
deve resultar numa política de responder à delinquência juvenil como forma a
apoiar o desenvolvimento da criança. A pena de morte e a prisão perpétua sem
liberdade condicional são explicitamente proibidas sob o artigo 37º da
Convenção dos Direitos da Criança.
O uso
de privação de liberdade tem consequências muito negativas para o
desenvolvimento harmonioso da criança e prejudica seriamente a sua reintegração
na sociedade. A este respeito, o artigo 37º explicitamente indica que a
privação da liberdade, incluindo a captura, detenção e prisão, deve ser usada
apenas como uma medida de último recurso e com o mais curto período de tempo
adequado, para que o direito ao desenvolvimento da criança seja totalmente
respeitado e assegurado.
O
direito da criança a ser ouvida
O direito
da criança de expressar a sua opinião livremente em todos os assuntos que a
afetam deve ser plenamente respeitado e implementado ao longo de todas as fases
do processo de justiça juvenil A Comissão observa que as vozes das crianças
envolvidas no sistema de justiça juvenil tornam-se, cada vez mais, uma força
poderosa para melhorias e reformas e para o cumprimento dos seus direitos.
O
direito à dignidade
Há um
conjunto de aspetos fundamentais a serem considerados na relação com crianças
em conflito com a lei: O tratamento tem de ser consistente com o sentido da
criança de dignidade e valor; O tratamento deve reforçar o respeito da criança
para com os direitos humanos e liberdades dos outros; O tratamento deve levar
em conta a idade da criança e promover a reintegração da criança, assumindo um
papel construtivo na sociedade; O respeito pela dignidade da criança exige que
todas as formas de violência no tratamento de crianças em conflito com a lei
devem ser proibidas e impedidas.
2 – Alguns normativos jurídicos
portugueses
Como
instrumentos jurídicos do direito interno em Portugal, aplicáveis a crianças,
são de considerar:
-
Código Penal
-
Lei Tutelar Educativa
-
Estatuto do Aluno e Ética Escolar
Por
outro lado, em Portugal, o relatório da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do
Sistema Prisional, apresentado em 2004, é claro na sua recomendação de evitar a
pena de privação da liberdade a jovens em conflito com a lei, quando diz: “. …Torna-se, assim, necessário, à semelhança do
que ocorre em muitos países europeus, e na sequência das mais recentes
recomendações do Conselho da Europa (Rec. (2003) 20, de 24 de Setembro de
2003), tomar medidas que evitem, o mais possível, os efeitos estigmatizantes da
prisão a jovens delinquentes menores de 21 anos. …”.
3 – Outros normativos
jurídicos internacionais sobre justiça juvenil
- Regras das Nações Unidas para
a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade
- Regras Mínimas das Nações
Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing).
- Princípios
Orientadores das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência
Juvenil (Princípios
Orientadores de Riade).
4 – A justiça juvenil nos órgãos de comunicação social – Alguns
títulos
- Jovens chegam cada vez mais tarde aos
centros educativos e com crimes mais graves.
"Os jovens
estão a chegar mais tarde aos centros educativos, com uma prática de crimes
mais graves, o que determina uma intervenção mais tardia e (...) menos
eficaz." A conclusão é da Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos
Centros Educativos - CAFCE (…) Quando estes jovens vão para os centros
educativos já é muito tarde, pois apresentam um percurso criminal desde os 9 ou
10 anos, por vezes."(…) O relatório da CAFCE critica também o facto de o
desenvolvimento do projeto educativo da esmagadora maioria dos jovens ocorrer
em "meio fechado", "O problema maior é que os centros educativos
não são virados para o exterior e assim o desenvolvimento dos jovens não se faz
em comunidade como dita a lei", sublinha Maria do Carmo Peralta. "O
regime fechado devia ser eliminado, é apenas clausura." 16 de junho de 2017– Diário de Notícias
- Protecção de Dados não quer menores em base nacional de criminosos
Anteprojeto de lei do
Ministério da Justiça visa evitar sanções da Comissão Europeia por falhas na
partilha de informações no âmbito do combate ao terrorismo. Base de dados
inclui impressões digitais. (…)
A Comissão Nacional de
Proteção de Dados está contra a inclusão de impressões digitais e outros dados
relativos a menores de idade numa base de dados destinada a apoiar a
investigação criminal. A intenção do Governo faz parte de um anteprojeto de lei
sobre identificação judiciária destinado a evitar sanções
da Comissão Europeia por falhas na partilha de
informações entre os Estados-membros no âmbito do combate ao terrorismo. - 31 de janeiro de 2017 – Jornal Público
- 80% dos jovens em instituições têm problemas
psicológicos
Quase 80% dos 8175 dos menores
institucionalizados em 2016 tiveram acompanhamento na área da Saúde Mental. E
um quinto, isto é, 1609, estão mesmo sob medicação. - 28 de Julho de 2017 –
Jornal de Notícias
- Violência mais violenta
(…) – perturbações de comportamento e as
graves disfunções familiares são uma presença constante nas consultas (…). É aí
que se deve trabalhar. Não sou grande defensor de modelos punitivos. - 14 de
Janeiro de 2017 – Jornal Expresso.
5 – Considerações gerais
Da análise das
linhas orientadoras do principal instrumento jurídico (Convenção dos Direitos
da Criança) e do quadro legal aplicável em Portugal, constata-se a existência
dum grande distanciamento entre o carácter formador e humanista da Convenção e
do modelo essencialmente punitivo vigente em Portugal e em muitos outros
países. Como exemplo pode-se referir que o Estatuto do Aluno e Ética Escolar
contêm medidas punitivas e deveres disciplinares em mais de 30 dos seus 56
artigos. Isto mesmo foi evidenciado no relatório da Comissão de Estudo e
Debate da Reforma do Sistema Prisional que, passados 13 anos da sua tradução em
anteprojeto de lei, nunca foi aplicado pelos sucessivos poderes políticos.
Ainda
recentemente a CRIN (Chil Rights International Network), no CRINmail 1533 de 31 de Maio de 2017, interrogava: “Quais são os problemas? Uma abordagem
de direitos de criança no campo da justiça juvenil exige que as crianças sejam
desviadas de processos judiciais formais. Isso não significa uma abdicação de
responsabilidade. Todas as pessoas devem ser responsáveis pelos atos que
cometem. Pelo contrário, exige que se dê especial atenção ao nível de
desenvolvimento e evolução das capacidades das crianças. Também é importante
que os sistemas de justiça juvenil não se baseiem na punição. A promoção da
reintegração e as disposições de sanções comunitárias inovadoras e eficazes,
devem ser o cerne da política de justiça juvenil. Sabemos que punir e privar as
crianças de liberdade tende a aumentar a taxa de reincidência. “
6 - Convenção dos Direitos da Criança
Artigo
37º
Os Estados-Partes garantem que:
a)
Nenhuma criança será submetida à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis,
desumanos ou degradantes. A pena de morte e a prisão perpétua sem possibilidade
de libertação não serão impostas por infrações cometidas por pessoas com menos
de 18 anos;
b)
Nenhuma criança será privada de liberdade de forma ilegal ou arbitrária: a
captura, detenção ou prisão de uma criança devem ser conformes à lei, serão
utilizadas unicamente como medida de último recurso e terão a duração mais
breve possível;
c)
A criança privada de liberdade deve ser tratada com a humanidade e o respeito
devidos à dignidade da pessoa humana e de forma consentânea com as necessidades
das pessoas da sua idade. Nomeadamente, a criança privada de liberdade deve ser
separada dos adultos, a menos que, no superior interesse da criança, tal não
pareça aconselhável, e tem o direito de manter contacto com a sua família
através de correspondência e visitas, salvo em circunstâncias excecionais;
d)
A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à
assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a
legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade
competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão
sobre tal matéria.
– Artº40º
1.
Os Estados Partes reconhecem à criança suspeita, acusada ou que se reconheceu
ter infringido a lei penal, o direito a um tratamento capaz de favorecer o seu
sentido de dignidade e valor, reforçar o seu respeito pelos direitos humanos e
as liberdades fundamentais de terceiros e que se tenha em conta a sua idade e a
necessidade de facilitar a sua reintegração social e o assumir de um papel
construtivo no seio da sociedade.
2.
Para esse efeito, e atendendo às disposições pertinentes dos instrumentos
jurídicos internacionais, os Estados-Partes garantem, nomeadamente, que:
a)
Nenhuma criança seja suspeita, acusada ou reconhecida como tendo infringido a
lei penal por ações ou omissões que, no momento da sua prática, não eram
proibidas pelo direito nacional ou internacional;
b)
A criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal tenha, no mínimo,
direito às garantias seguintes:
i)
Presumir-se inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente
estabelecida;
ii)
A ser informada pronta e diretamente das acusações formuladas contra si ou, se
necessário, através de seus pais ou representantes legais, e beneficiar de
assistência jurídica ou de outra assistência adequada para a preparação e
apresentação da sua defesa;
iii)
A sua causa ser examinada sem demora por uma autoridade competente,
independente e imparcial ou por um tribunal, de forma equitativa nos termos da
lei, na presença do seu defensor ou de outrem, assegurando assistência adequada
e, a menos que tal se mostre contrário ao interesse superior da criança,
nomeadamente atendendo à sua idade ou situação, na presença de seus pais ou
representantes legais;
iv)
A não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada, a interrogar ou
fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o
interrogatório das testemunhas de defesa em condições de igualdade;
v)
No caso de se considerar que infringiu a lei penal, a recorrer dessa decisão e
das medidas impostas em sequência desta para uma autoridade superior,
competente, independente e imparcial, ou uma autoridade judicial, nos termos da
lei;
vi)
A fazer-se assistir gratuitamente por um intérprete, se não compreender ou
falar a língua utilizada;
vii)
A ver plenamente respeitada a sua vida privada em todos os momentos do
processo.
3.
Os Estados-Partes procuram promover o estabelecimento de leis, processos,
autoridades e instituições especificamente adequadas a crianças suspeitas,
acusadas ou reconhecidas como tendo infringido a lei penal, e, nomeadamente:
a)
O estabelecimento de uma idade mínima abaixo da qual se presume que as crianças
não têm capacidade para infringir a lei penal;
b)
Quando tal se mostre possível e desejável, a adoção de medidas relativas a
essas crianças sem recurso ao processo judicial, assegurando-se o pleno
respeito dos direitos humanos e das garantias previstas pela lei.
4.
Um conjunto de disposições relativas, nomeadamente, à assistência, orientação e
controlo, conselhos, regime de prova, colocação familiar, programas de educação
geral e profissional, bem como outras soluções alternativas às institucionais,
serão previstas de forma a assegurar às crianças um tratamento adequado ao seu
bem-estar e proporcionado à sua situação e à infração.
7 – Algumas instituições envolvidas na
apreciação da justiça juvenil
- Conselho da Europa — www.coe.int/t/dg3/children/corporalpunishment/
- Comité dos Direitos da Criança – ONU — www2.ohchr.org/english/bodies/crc/
- CRIN – Child Right´s
International Network — www.crin.org
- Eurochild — www.eurochild.org
- Save the children — www.savethechildren.org
- UNICEF –
https://www.unicef.org/
- Procuradoria Geral da
República — www.pgr.pt
(Artigo
publicado no Jornal Expresso – Julho de 1998)
A
Hegemonia do Poder
É
preocupante a constatação, cada vez mais evidente, do cerco que o poder
político vem fazendo às organizações independentes. Ora infiltrando quadros
seus nessas organizações (nada o pode impedir), ora tornando-as dependentes
financeiramente (através de subsídios ou da “encomenda” de estudos ou
trabalhos), ora convidando-as para participarem na gestão do poder (como
consultores ou como membros de grupos de trabalho).
Este
tipo de assimilação, pela fachada democrática de que se reveste, é de difícil
contestação e as suas consequências são fáceis de calcular: perda de
independência; perda de capacidade crítica; submissão encapotada ao poder
político; desmobilização de ativistas descomprometidos. Fica o campo aberto
para o compadrio, o oportunismo, o acesso às benesses do poder. A dificuldade
de denúncia destas situações é, desde logo, patenteada pelo argumento do não
impedimento de qualquer cidadão ter acesso ao exercício de qualquer cargo
público, quer pessoalmente, quer representando uma entidade. A única defesa
consiste em as associações que se pretendem independentes estipularem, de forma
clara e sem subterfúgios, a incompatibilidade do exercício simultâneo de cargo
ligado ao poder político com o de ativista da associação, seja ele qual for, e
de considerar inelegível para funções dirigentes quem já teve algum vínculo
importante ao poder político.
Das
várias associações, ditas não governamentais, existentes, com relevância
nacional, já quase todas se encontram já na órbita do poder político.
Associações de consumidores (quer dependentes economicamente, quer com
exercício simultâneo de cargos nas associações e no poder político),
associações ambientalistas e ecologistas (as suas receitas são maioritariamente
constituídas por subsídios governamentais ou trabalhos para o governo),
sindicatos (as quotas dos associados são uma parte menor das receitas, sendo o
restante de fundos governamentais, nomeadamente de fundos europeus),
associações de direitos humanos em que até a Amnistia Internacional começa a
integrar este tipo de relação promíscua. Ficam de fora, por enquanto, algumas
entidades, tipo Rotary e Lions, em que a sua ação não incomoda o poder político
e têm-se revelado pouco ativas, ou até desinteressadas, em assumir qualquer projeto
que belisque o modelo se sociedade em que se inserem. Contribuem para diminuir
alguns problemas sociais, praticam a solidariedade e estabelecem relações
pessoais cordiais entre os membros dos clubes, o que por si só já é louvável e
de salientar, mas, quer a sua forma de funcionamento e governação, quer a
heterogeneidade da sua composição, não lhes permite irem mais além do que
enunciar as questões nas palestras que realizam. Têm um espaço próprio do qual
não têm demonstrado querer em sair. Por isto, não se têm mostrado interessantes
para o poder político as colocar debaixo do guarda-chuva, a que,
eufemisticamente, chamam participação da sociedade civil na construção da
sociedade democrática. Para este guarda-chuva anestesiante apenas interessa
quem incomoda ou quem serve de muleta. Esta postura do poder político, de
afogamento das alternativas, de amordaçamento subtil das vozes independentes,
da homogeneização do poder e da sociedade, conduz a uma forma de totalitarismo
contrário à essência da democracia. É que numa sociedade verdadeiramente
democrática não só se deve deixar respirar, sem tentações, quem quer exercer a
liberdade no verdadeiro sentido do termo, como deve ser fomentada a existência
de alternativas.
A
inexistência de sentinelas conduz às ditaduras. Como exemplo recente, refira-se
a aceitação, por parte da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional (A.I.),
do convite do governo português para integrar a Comissão Governamental para as
Comemorações do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Esta aceitação é um passo que fere os princípios de isenção e independência tão
arduamente conquistados ao longo da vida da A.I.. Quer no seu âmbito (comissão
de nível governamental), quer na sua composição (maioritariamente composta por
membros do governo), quer na sede de funcionamento (Presidência do Conselho de
Ministros), quer no objetivo (garantir a adequada interligação do mesmo plano
com outras iniciativas governamentais previstas para o corrente ano), quer no
financiamento (será suportado por dotação provisional do Ministério das
Finanças), esta comissão tem um cariz governamental inequívoco.
O
dever-se saudar a iniciativa do governo português de celebrar o 50º aniversário
da Declaração Universal dos Direitos Humanos não quer dizer que a Amnistia
Internacional tenha de estar na comissão. Antes pelo contrário, a A.I. tem de
ter um programa de comemorações autónomo e que vai, certamente, mais longe do
que irá a comissão. Por outro lado, a A.I. sempre apareceu perante a opinião
pública desligada dos governos. Era a sua marca de prestígio, de credibilidade,
de respeito, de confiança. Esta machadada na imagem da A.I. tem custos
irreparáveis. Para a perda de independência destas organizações, cuja
existência só faz sentido se forem independentes, tem contribuído o alheamento
dos seus membros, deixando a sua Direção entregue a quem interessa esta
proximidade com o poder político, retirando-lhes representatividade e carácter
democrático. É lamentável que a independência de organizações com um passado
exemplar de verticalidade esteja a ser posta em causa por dirigentes sem
qualidade, acessíveis às mesuras e benesses do poder político, alteração esta
que está a ser feita de forma subtil e não denunciada. A permanência continuada
destes dirigentes na Direção destas organizações torna-os autistas profundos,
que depois de estarem no poder só saem empurrados, se ainda na organização
estiver alguém com verticalidade e paciência para os empurrar. É esta a
caracterização da maioria das organizações chamadas não governamentais. E é por
isto que se assiste à deserção dos ativistas descomprometidos, apenas
preocupados com a defesa dos ideais.
Triste
sinal dos tempos. (Artigo publicado no semanário “Expresso” - Julho de 1998)
Manuel
Hipólito Almeida dos Santos
(Exposição enviada à Assembleia da República)
À
Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura
Assembleia da República
1249-068 LISBOA
Lisboa, 13 de Junho de 2012
Assunto: Estatuto do Aluno e Ética Escolar – Proposta
de Lei 70/XII
Exmos. Senhores Deputados
Ao tomarmos conhecimento da Proposta de Lei 70/XII
verificamos nela estarem contidas disposições que, no âmbito deste Cogrupo
sobre os Direitos das Crianças da Amnistia Internacional – Portugal, afetam as
crianças naquilo que são os seus direitos consignados nos referenciais
internacionais de direitos humanos, pelo que solicitamos a V.Exas. a melhor
consideração para o seguinte:
1 – A Convenção dos Direitos da Criança (CDC), de que
Portugal é Estado-Parte, contem os princípios que devem nortear todas as
políticas sobre as crianças, sendo um instrumento jurídico imperativo para
todos os Estados que o ratificaram. Desta Convenção ressalta que “… importa
preparar plenamente a criança para viver uma vida individual na sociedade e ser
educada no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas e, em
particular, num espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade e
solidariedade”. Ao encontrarmos conteúdos de natureza proibitiva e/ou punitiva
em 31 dos 56 artigos da proposta de lei quase parece que nos encontramos
perante um código punitivo e não um estatuto do aluno que siga o estipulado na
CDC.
2 - Na exposição de motivos da proposta de lei não
existe referência à exigência do respeito pela Convenção dos Direitos da
Criança (CDC), nem uma palavra de elevação para com as crianças, antes
aparecendo enfatizado no seu 2º parágrafo “Sendo
objetivo estratégico do Governo apostar no estabelecimento de uma nova cultura
de disciplina, esforço e mérito, na maior responsabilização de alunos e pais ou
encarregados de educação, no reforço da autoridade efetiva dos professores e do
pessoal não docente.” pelo que somos de opinião que deve ser expresso na
exposição de motivos a sua ligação à CDC referida no ponto 1.
3 - Nos 3º e 4º parágrafos da exposição de motivos consta: “A presente proposta de lei visa consagrar a
centralidade da escola como espaço de ensino e formação, criando condições para
o efetivo cumprimento da escolaridade obrigatória e para a melhoria do ensino.
Tal
desiderato impõe a construção de um regime que promova, em primeiro lugar, o
reforço da autoridade dos profissionais de ensino e comprometa e responsabilize
os intervenientes no processo de ensino pelas suas condutas”.
Volta a não ser tida em conta a orientação da CDC nem
se coloca como objetivo a atingir, de igual prioridade, a consideração da
cidadania e o reconhecimento do aluno como sujeito de direito, nem a obrigação
do respeito pelo interesse superior da criança em tudo o que a ela diz
respeito.
4 - No 5º parágrafo diz-se “Para isso contribui não só a simplificação da fundamentação das
decisões sobre avaliação de alunos e o realce da especial proteção penal
relativamente aos crimes contra os trabalhadores docentes e não docentes, mas
também o reconhecimento e respeito da autoridade do professor pelos pais ou
encarregados de educação e pelo aluno.”
E as crianças não merecem especial proteção penal?
Entendemos que a proteção penal relativamente aos crimes cometidos contra os
trabalhadores docentes e não docentes deve ser alargada às crianças enquanto
alunos.
5 - No 10º parágrafo estabelece-se “A cultura de rigor nesta matéria aconselha a que se
equiparem as faltas de pontualidade e as de faltas de material didático a
faltas de presença, devendo as escolas consagrar este princípio e a respetiva
regulação em sede do respetivo regulamento interno.”
Não é excessivo, por exemplo, a falta de um lápis ser
equiparada a falta de presença? Importa clarificar os conceitos de falta às
aulas e de falta de material, não devendo a ordem de saída da sala e outras
faltas sancionatórias serem automaticamente qualificadas de faltas
injustificadas já que se estará na presença duma dupla penalização (artº 14º e
alínea d) do artº 17º).
6 - No último parágrafo da pág. 4 é estabelecido que “Com vista, ainda, à implementação de uma
cultura de responsabilidade e disciplina, introduz-se a impossibilidade dos
alunos assumirem cargos ou funções de representação nos órgãos da escola nos
casos de exclusão por excesso de faltas ou por aplicação de medida disciplinar
superior a advertência registada.”
Isto quer dizer que uma sanção superior à advertência
registada é uma mancha que acompanhará os alunos na sua vida escolar? Como se
pode consagrar uma medida ao arrepio do Código Penal aplicado aos adultos que
protege estes contra qualquer discriminação após o cumprimento da pena
aplicada?
7 - No 1º parágrafo da pág. 5 diz-se que “Opera-se, ainda, um reforço dos deveres dos
alunos, com a proibição de utilização de equipamentos eletrónicos, a
impossibilidade de captação e ou difusão, por qualquer meio, de imagens ou sons
não autorizados captados na escola, o respeito pelos direitos de autor e
propriedade intelectual, a reparação e indemnização de danos causados à escola
e às pessoas.”
Como se pode responsabilizar uma criança por danos
materiais se ela está impedida legalmente de trabalhar e ter meios materiais
próprios?
8 - No 2º parágrafo da pág. 5 consta “No plano disciplinar, por outro lado, registe-se
as alterações operadas na ordem de saída da sala de aula e demais locais onde
se desenvolva o trabalho escolar, aplicada pelo professor, que passa a implicar
sempre a marcação de falta injustificada e, quando aplicada reiteradamente, a
determinar a análise da situação do aluno em conselho de turma, podendo
conduzir à aplicação de medida disciplinar sancionatória.”
Não se está a confundir o conceito de falta com o de
expulsão da sala de aula?
9 - No 3º parágrafo da pág. 5 estabelece-se “Com a presente proposta de lei visa-se,
ainda, reforçar a competência disciplinar do diretor, permitindo-se a aplicação
de medida disciplinar sancionatória de suspensão até três dias úteis por
recurso a procedimento sumário, alargar para 12 dias úteis o prazo máximo da
medida disciplinar sancionatória de suspensão da escola, introduzir a medida
disciplinar sancionatória de expulsão da escola, aplicável aos alunos maiores
de 18 anos, que se traduz na retenção imediata do aluno no ano de escolaridade
que frequenta e na proibição de acesso ao espaço escolar até ao final daquele
ano escolar e nos dois anos escolares imediatamente seguintes, bem como
mecanismos que promovem uma maior celeridade da atuação disciplinar,
estabelecendo-se a possibilidade de não instauração do procedimento disciplinar
aquando da assunção da responsabilidade pelo aluno em audiência consciente e
livre, quando maior de 12 anos. “
Estamos perante uma introdução profunda de desrespeito
da exigência patente na CDC de que qualquer sanção só pode ser aplicada por uma
autoridade isenta, competente e independente. Reúne o diretor duma escola tais
requisitos?
10 - No artº 8º, ponto 5 estipula-se “Não
podem ser eleitos ou continuar a representar os alunos nos órgãos ou estruturas
da escola aqueles a quem seja ou tenha sido aplicada, nos últimos dois anos
escolares, medida disciplinar sancionatória superior à de repreensão registada
ou sejam, ou tenham sido nos últimos dois anos escolares, excluídos da
frequência de qualquer disciplina ou retidos em qualquer ano de escolaridade
por excesso grave de faltas, nos termos do presente Estatuto.”
Este impedimento contraria o princípio geral de que
após o cumprimento de qualquer sanção, nenhuma outra deve ser aplicada para a
mesma infração. Este impedimento prejudica ainda a reinserção da criança e
contraria as orientações da CDC.
11 - A alínea f) do artº 10º estipula: f)Respeitar a autoridade e as instruções dos
professores e do pessoal não docente;
Deve ser acrescentado: “desde que não colidam com os seus direitos”. O princípio geral é o
de que é legítima a desobediência a instruções que violem direitos consagrados.
12 - O ponto 3 do artº 24ºao consagrar “As medidas disciplinares sancionatórias, tendo em
conta a especial relevância do dever violado e a gravidade da infração
praticada, prosseguem igualmente finalidades punitivas.” contraria as
recomendações de estudos modernos que abordam os objectivos punitivos das
sanções, subvertendo o espírito subjacente ao nº 1 do artº 26º que não
configura finalidades punitivas.
13 - No ponto 2 do artº 25º deve-se acrescentar “…e a existência de outros responsáveis (colegas, professores ou
funcionários, ou outros membros da comunidade educativa) que, por ação ou
omissão, participaram no conflito que originou a infração disciplinar”.
14 - O ponto 5 do artº 26º ao
estipular “A ordem de
saída da sala de aula e demais locais onde se desenvolva o trabalho escolar é
da exclusiva competência do professor respetivo e implica a marcação de falta
injustificada ao aluno e a permanência do aluno na escola.” consagra três punições para a mesma infração (saída da sala de aula, falta
injustificada e impossibilidade de permanência no recinto da escola) o que
contraria qualquer modelo atualmente aceite de regimes sancionatórios.
15 - O ponto 8 do artº 26º desrespeita os normativos que regulam a figura
com responsabilidades de aplicações de penas, incluindo a CDC, que estipulam
que as sanções só podem ser aplicadas por entidades competentes, isentas e
imparciais, o que, de todo, pode não ser o caso da figura do diretor da escola,
nomeadamente no caso da isenção e da imparcialidade, já que, na maioria dos
casos o diretor é colega dos professores.
16 - O ponto 2 do artº 27º ao não definir limite de tempo “ O cumprimento das medidas corretivas
realiza-se em período suplementar ao horário letivo, no espaço escolar ou fora
dele, neste caso com acompanhamento dos pais ou encarregados de educação ou de
entidade local ou localmente instalada idónea e que assuma coresponsabilizar-se,
nos termos a definir em protocolo escrito celebrado nos termos previstos no
regulamento interno da escola” pode dar origem a situações que desrespeitam
o direito ao descanso, aos tempos livres e a outras actividades previstas na
CDC.
17 - As sanções previstas nos pontos 4, 5, 6 e 12 do artº 28º desrespeitam,
igualmente, os normativos que regulam a figura com responsabilidades de
aplicações de penas, incluindo a CDC, que estipulam que as sanções só podem ser
aplicadas por entidades competentes, isentas e imparciais, o que, de todo, pode
não ser o caso da figura do diretor da escola, nomeadamente no caso da isenção
e da imparcialidade, já que, na maioria dos casos o diretor é colega dos
professores.
18 - O artº 29º
está ao arrepio dos princípios jurídicos comummente aceites da não cumulação de
penas pelo mesmo delito.
19 - O nº 2 do artº 30º ao obrigar que o instrutor
seja um professor da escola pode afetar a independência e imparcialidade do
processo.
20 - O nº 9 do artº 30º deve conter uma alínea
com “As circunstâncias em que ocorreu o
incidente disciplinar, outros intervenientes e responsáveis (colegas,
professores e outros)”.
21 - Na alínea b) do nº2 do artº 31º deve ser dada a faculdade do aluno
indicar outra pessoa e não obrigatoriamente um professor.
22 - O nº2 do artº 32º tem um tempo de duração excessivo, maior do que
aquele que é aplicado aos adultos (48 horas para ser presente a um juiz), pelo
que um tempo superior a este deve ter de ser aplicado por uma entidade
competente, imparcial e isenta.
23 - O ponto 4 do artº 42º ao conferir proteção especial aos professores
não fundamenta esta proteção no quadro alargado da sociedade e dos referenciais
jurídicos de direitos humanos.
24 - As contraordenações previstas no artº 45º podem violar a CDC na medida
em que podem afetar as condições materiais necessárias ao desenvolvimento
harmonioso da criança.
25 - O ponto 8 deste artigo ao considerar como receita das escolas o
produto das coimas não revela grande sentido ético.
Senhoras Deputadas e Senhores Deputados
As questões que atrás colocamos visam adequar a proposta de lei em análise
com os normativos de direitos humanos já reconhecidos para as crianças. Devemos
ter em conta que as crianças nunca podem ter um estatuto inferior, mais
punitivo e mais proibitivo que quaisquer outros elementos da sociedade.
Esperando que este contributo possa merecer o acolhimento de V. Exªs.,
apresentamos as nossas cordiais saudações.
Amnistia Internacional Portugal
Cogrupo sobre os Direitos das Crianças
O Coordenador
Manuel Almeida dos Santos
(Intervenção na
Assembleia Geral Ordinária de 09 -12-2017)
Caras e caros
membros da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional.
Meus amigos e
amigas
Termino hoje mais
um mandato nos órgãos sociais da AISP, a que pertenço desde 1985. Agradeço,
sensibilizado, a confiança dos que me elegeram e procurei desempenhar as
funções durante este triénio da mesma forma do que em mandatos anteriores:
promover a defesa, aprofundamento e promoção dos direitos humanos a que nos
comprometemos enquanto membros da AI., com as condicionantes de discrição e
limitações nas intervenções políticas enquanto Presidente da Mesa da Assembleia
Geral.
Como em todos os
mandatos, tivemos de enfrentar dificuldades e procurar os caminhos para as
superar. Neste triénio em particular, fizemos a revisão dos normativos
jurídicos que regulam a vida da secção, que já foram todos aprovados pela
assembleia geral e pelo conselho geral, apesar de haver ainda alguns aspetos
formais a clarificar com o notário, mas cujas atas aprovadas permitem a sua
superação e não põem em causa a vida da secção. O nosso diretor executivo,
Pedro Neto, disponibilizou-se para tal tarefa e estou certo que a levará a bom
porto.
Devido à minha
idade e estado de saúde este terá sido o último mandato em que me candidatei
aos órgãos sociais da A.I. Quero deixar claro que tenho orgulho em partilhar
convosco o capital de prestígio que a organização granjeou. Tem sido uma
colaboração cívica que tem tentado melhorar o mundo.
Infelizmente,
tenho sentido que a nossa capacidade de luta não está a conseguir refrear o
crescente aumento de violações de direitos humanos. Há cerca de três anos, uns
meses antes de iniciar este último mandato, escrevi um livro que foi editado
pela Leya, (ONGs: Passado e Presente – Uma experiência pessoal) em que fiz uma
apreciação do trabalho das ONGs em que tenho participado ao longo da vida. E a
perspetiva que tinha, e que hoje mantenho com agravamento, não era positiva.
Sinto que estamos a perder terreno no trabalho para a observância dos direitos
humanos, apesar de termos mais membros, mais apoiantes, mais dinheiro e mais
funcionários.
A AI não pode ser
uma organização integrada no sistema político de cariz governamental. A AI não se
deve envolver com organizações que fazem dos direitos humanos um negócio, a
coberto dum altruísmo interesseiro.
A AI tem de ser
rebelde, inconformista, temerária, líder. Não pode ser uma organização
colaboracionista com o poder político e suas organizações satélites, não se
deve conformar com alegadas dificuldades de respeito pelos direitos humanos
consagrados nos referenciais jurídicos vinculativos para os Estados, não deve
ter medo de defender os direitos humanos mesmo correndo o risco de retaliações,
deve ser líder no aprofundamento do respeito pelos direitos humanos e não ir a reboque, por arrastamento, das
violações de direitos humanos. Não devemos ir atrás das ações dos violadores
dos direitos humanos mas estes é que têm de ir atrás das ações promovidas pela
AI.
Os membros devem
ser os principais ativistas das ações desencadeadas pela AI, com o apoio dos
secretariados das secções providenciando-lhes as informações e os meios. Tem
havido um acréscimo de centralismo na AI que deve ser alterado, se ainda formos
a tempo.
Admito
sinceramente que quem está na AI tente dar o seu melhor. O que entendo é que é
necessário um redireccionamento estratégico. Temos de ser mais incisivos nas
prioridades internacionais e nacionais, de que destaco a pobreza, a exclusão
social, o direito à própria defesa, as prisões e as crianças. Temos de combater
a escravatura moderna com a precariedade e os baixos salários.
Há um retrocesso numa
cultura de liberdade já que as formas de intimidação e repressão são cada vez
mais assustadoras, impondo às pessoas posturas de medo e cobardia inibidoras
duma vivência em liberdade. Quem se assume livremente quando a necessidade de
ganhar dinheiro obriga à aceitação de salários e condições de precariedade
típicas dos regimes de escravatura?
Há um retrocesso numa
cultura de tolerância já que se assiste a uma não aceitação do outro com a sua
identidade que deve ser respeitada. Veja-se o que se passa com a dificuldade da
integração dos jovens em que a escola e a entrada no mundo do trabalho são cada
vez mais obstáculos de monta, não se reconhecendo às crianças e aos jovens que
são portadores de grandes valias a quem os adultos devem abrir portas e não
criar problemas acrescidos.
Há um retrocesso numa
cultura de fraternidade com um exemplo bem patente no fosso escandaloso entre
pobres e ricos, provocando situações de marginalidade e exclusão social
indignas duma sociedade humana. Isto potencia a criminalidade social o que leva
à destruição da estrutura familiar e às prisões (instituições medievais
impróprias duma sociedade do século XXI).
Há um retrocesso numa
cultura de paz já que se há característica bem marcante dos dias de hoje é a
agressividade entre as pessoas, entre as instituições e entre os Estados. São
cada vez mais os desajustamentos familiares com os divórcios consequentes
(processos dolorosos nomeadamente quando os filhos inocentes são os que mais
sofrem), são cada vez mais os processos judiciais com as penhoras e execuções
sempre lamentáveis, são cada vez mais frequentes as insultuosas trocas de piropos
entre os partidos políticos (que deviam ser a fonte do exemplo), existindo
espalhadas pelo mundo guerras e conflitos entre Estados e organizações que
provocam vítimas e ódios difíceis de esquecer (Afeganistão; Iraque; Síria,
Egipto, Congo; Chechénia; País Basco; Catalunha, Palestina; etc…).
Já não é com
surpresa que se assiste a um incremento das relações promíscuas entre muitas ONGs
e entidades do poder político/económico. O estreitamento dos vínculos faz com que já se tenha perdido o temor e o
respeito que as ONGs detiveram até um passado recente. Temor pela denúncia dos
atropelos aos direitos dos cidadãos, que obtinha cobertura relevante nos órgãos
de comunicação social, e respeito pelo carácter íntegro das organizações e seus
dirigentes. Quase se pode dizer que se inverteu a relação de temor, parecendo
que, hoje, são as ONGs que têm medo de ofender o poder
político-económico-financeiro.
À vulnerabilidade que
atitudes deste tipo arrastam para as ONGs acrescem os privilégios que lhes têm
vindo a ser atribuídos pelo poder político, nomeadamente de natureza fiscal e
de benefícios específicos de natureza material e pessoal, afetando a
independência que devia ser a bandeira dessas organizações e dos seus dirigentes
e associados. Disto são exemplo as múltiplas formas de subsídios para
parcerias, ações de formação e estágios profissionais, e os apoios para a
realização de ações que visam colmatar insuficiências na sua área de
intervenção, revelando um oportunismo pouco consentâneo com a elevada postura
ética exigível a organizações que se querem credíveis, ações estas difíceis de
denunciar politicamente já que são tratadas de forma abonatória pela opinião
pública.
Aliás, muitas destas
ONGs já estão a ser orientadas e dirigidas por esses lobbies em muitas das suas
posições. Para este facto muito contribui a dependência destas ONGs dos apoios
institucionais que obtêm, quer seja de natureza económica, do recurso ao
trabalho voluntário ou do próprio marketing da sua promoção. O poder dos
lobbies na vida da ONGs leva já à participação de grandes multinacionais nas
suas actividades, gerando um pântano que já ganhou direito a denominação
atrativa como são as políticas ditas de responsabilidade social. Para promover
este pântano constituem-se entidades, como são a BCSD Portugal e a GRACE
Portugal, agrupando grupos económicos poderosos, que, sob a capa do altruísmo,
albergam empresas frequentemente alvo de denúncias de comportamento censurável.
Basta consultar os sítios na Internet destas entidades para termos conhecimento
de quem quer fazer passar a mensagem de que pratica políticas de
responsabilidade social, ao mesmo tempo que praticam dumping social, trabalho
precário, salários de miséria, marketing pouco ético, etc….
A evolução desta
estratégia dos lobbies leva a que o próprio poder político acabe por ficar
refém e, até, interessado nesta conjugação de interesses entre os lobbies e as
ONGs, colocando estas como entidades credibilizadoras do sistema político
vigente.
Como exemplo
refira-se a insuficiente importância que a problemática dos direitos humanos
das crianças tem nos programas nacionais e no calendário dalgumas organizações
de direitos humanos, como a AI, comparativamente com as causas em que lobbies
poderosos estão instalados nessas organizações.
De repente, parece que
tudo o que se construiu de nada vale. Nos últimos anos assiste-se a um
retrocesso preocupante nas declarações de compromisso anteriormente feitas de
aprofundamento do já consignado, assim como à posta em causa de princípios até
há pouco considerados intocáveis. São as intenções de buscas domiciliárias, de
dia e de noite, por parte das forças de segurança sem mandado judicial; é o
acesso indiscriminado às agendas telefónicas dos cidadãos com o arquivamento do
registo de todas as chamadas telefónicas; é o possível não conhecimento,
injustificado, do executado da penhora de bens por solicitadores judiciais; é o
cruzamento de bases de dados das mais diversas instituições com prejuízo do
direito de salvaguarda da vida privada; é a criação de figuras jurídicas
aberrantes para permitirem a detenção e o tratamento degradante de presumíveis
terroristas com a cobertura duma Convenção contra o Terrorismo que é uma
afronta aos direitos humanos (muitos dos detidos acabam por serem libertados
sem acusação, após anos de detenção!); é a constatação da ineficácia e
inutilidade do sistema prisional, apesar do crescente aumento do número de
condenados, de prisões, de juízes e de tribunais, com os custos inerentes que
começam a ser insuportáveis, quando o caminho deveria ser o da busca das vias
para a diminuição da criminalidade; etc… . E já não se fala na crise social com
a precariedade no trabalho (ou a certeza do desemprego), no agravamento do
fosso entre pobres e ricos, na passividade (ou com declarações de
circunstância) perante o dumping social que a globalização está a criar com o
alargar da miséria e da exploração humana em todo o mundo, e, por aí fora.
Implanta-se um outro medo: o medo de viver.
É, enfim, a consumação
do 1984 de George Orwell.
Uma das mais
significativas alterações no quotidiano das ONGs centra-se no deslocar do
enfoque das motivações nos ideais para a nova palavra na moda que é a
governança. Esta preocupação pelas novas técnicas de gestão utilizadas nas
instâncias do poder económico-financeiro aproxima, também aqui, as ONGs dessas
instâncias, fazendo-as dedicar parte significativa dos seus recursos à
governança, fragilizando a sua dedicação prioritária às causas que foram a sua
génese. A prova encontra-se nos recursos humanos dedicados a este modelo de
gestão e nos meios que lhe são postos à disposição, assim como na consideração
que é dada à angariação de fundos e aplicação dos meios financeiros, retirando
capacidade ao trabalho da causa que deveria ser a sua principal motivação.
Este enfoque da
governança em detrimento do objeto que deveria ser a razão de ser da
existência, é mais um fator de afastamento dos associados, já que o excessivo
tempo e energia que se despende afeta a mobilização e a participação dos
associados, sendo mais uma machadada na democracia que devia imperar no seu
quotidiano.
Uma das
consequências deste primado da governança reflete-se no peso crescente das
despesas de estrutura nos custos de funcionamento das ONGs, diminuindo cada vez
mais a quota parte das disponibilidades financeiras para as ações que são a
razão de ser da sua existência. As próprias ações de angariação de fundos, com
um poder de sedução resultante duma formação dos angariadores assente nas mais
eficientes técnicas de marketing, acabam por se traduzir num peso financeiro
elevado que consome uma parte significativa dos fundos angariados.
Numa apreciação
simplista sinto que a AI não pode tornar-se numa multinacional de direitos
humanos em bases semelhantes às multinacionais do sector económico-financeiro.
As pessoas envolvidas na AI (membros, dirigentes e secretariado) têm de estar
ligadas por uma mística de solidariedade fraterna em que em que o carreirismo
tecnocrático e político têm de estar ausentes.
Entidades
relevantes, como, por exemplo, o bispo da Igreja Católica D. Carlos Azevedo,
declaram que se estão a tapar os pobres com a vitória dos ricos e que uma
mudança profunda só será possível com uma revolução de mentalidades dos
gestores e agentes políticos, perguntando quem nos liberta desta força que nos
leva à morte e deste modelo de desenvolvimento que nos sequestro o futuro, em
que a obsessão securitária e a repressão triunfam sobre a liberdade e a paz.
A importância
económica de muitas ONGs está a torná-las, em muitos casos, verdadeiras
“empresas” muito semelhantes na gestão às empresas com fins lucrativos,
tonando-as apetentes para o poder político no sentido de as colocar na sua
órbitra de influência. Por isso se assiste ao namoro sub-reptício a que são
sujeitas pelo poder político-económico-financeiro.
Ainda não há muitos
anos as ONGs caracterizavam-se por serem organizações que viviam das quotas dos
seus associados e do voluntarismo dos seus dirigentes, dedicando-se
exclusivamente à causa para que foram criadas, com um secretariado reduzido ao
mínimo tendo em conta que uma grande parte do trabalho era efetuado
graciosamente pelos seus dirigentes. A importância da gestão económica não era
prioritária e a área financeira quase só se limitava às receitas e despesas
correntes (Quando muito faziam-se algumas aplicações em depósitos a prazo, de
curto prazo, mas sem peso significativo na dimensão global da associação). Na
atualidade, não só os dirigentes quase deixaram de trabalhar na vida quotidiana
das associações, agora servidas por secretariados profissionais com alguma
dimensão, como passaram a exigir volumosos meios financeiros cuja gestão segue
o modelo que privilegia as aplicações de capitais, mesmo que tal redunde em
diminuição das ações em prol da razão de ser da entidade.
Em síntese, podemos
afirmar que existem ONGs cuja dimensão económico-financeira as coloca no campo
das grandes organizações da economia com fins lucrativos, exigindo dirigentes e
secretariados com competências técnicas de gestão que não necessariamente do
domínio para que foram criadas, restringindo o ativismo e a perceção da vida da
entidade.
Na atualidade, as ONGs
passam tempo excessivo nas negociações nos corredores do poder, perdendo
capacidade e autoridade moral para uma postura firme e interventiva. As ONGs
estão a ser engolidas pelo neoliberalismo dominante que se está a mostrar nada
democrático, tendo razão de ser a caracterização dos sistemas políticos
vigentes na maioria dos países ocidentais como ditaduras assentes em
parlamentos pluripartidários, que se limitam a avalizar como pretensamente
democrático aquilo que não passa de sistemas autoritários, resguardados em
forças de segurança cada vez mais numerosas com pretensões de dissuasão de
protestos inflamados. O medo e o autoritarismo são cada vez mais caraterísticas
do atual modelo de sociedade.
O estar por dentro das
ONGs permite constatar o aumento da sua ineficácia, ainda que por vezes
apareçam com posições de interesse público, ficando o seu papel reduzido à
defesa dos interesses da burguesia que dentro delas se instala ou que a elas se
mantém ligada na mira da defesa dos seus interesses corporativos, sem que isto
implique algo mais que o pagamento da quota e participação nalguma manifestação
ou greve pontual, mas de forma a que o poder político não se sinta muito
incomodado nem obrigado a mudar de política (as manifestações passaram a ser
meros atos de “folclore” sem qualquer efeito prático).
Resta saber quantos
são aqueles que estão dispostos a pagar o preço do incómodo de pertencer a uma
organização com posturas discordantes, já que se está a perder a esperança de
que se processe qualquer inflexão na sua conduta.
Importa, contudo, ter
presente o que já Agostinho da Silva dizia: “A mais eficaz de todas as ações é
estar”. Mas temos de estar na liderança
da defesa e aprofundamento dos direitos humanos, pois como disse Peter Benenson “A experiência mostra-nos que os
governos agem apenas na direção a que a opinião pública os conduz”.
Ao ver recentemente
uma reportagem televisiva questionei-me: o que dirão de nós, daqui por alguns
anos, quem assistir, nessa altura, a um eventual programa de televisão com
retratos da situação social neste ano de 2017? O que dirão de nós por
assistirmos quase passivamente à existência, só em Portugal, de mais de 400.000
pessoas sem qualquer fonte de rendimento? O que dirão de nós que sabemos que
muitas dezenas de milhar de crianças vão para a escola sem terem feito os
trabalhos de casa por não disporem de luz em suas casas (cortada por falta de
dinheiro para a pagar)? O que dirão de nós que sabemos que essas mesmas
crianças já pouco têm que comer e beber em casa (a água também foi cortada pela
mesma razão de ausência de rendimento)? O que dirão de nós que sabemos pela
comunicação social da morte de idosos abandonados, sem nada mudarmos nas nossas
relações com os pais ou avós? O que dirão de nós que sabemos da existência duma
mendicidade institucionalizada e dum número crescente de sem abrigo? O que
dirão de nós que sabemos do despejo de famílias que deixaram de poder pagar as
prestações das suas casas, ficando estas vazias anos e anos após o despejo? O
que dirão de nós que exultamos com o bom negócio que fazemos ao arrematarmos
por tuta-e-meia, em leilões concorridos, os bens penhorados a quem deixou de os
poder pagar? O que dirão de nós que sabemos que esta pobreza coabita com ricos,
podres de ricos, e governantes bem instalados na vida? O que dirão de nós que
sabemos que esta pobreza convive com situações escandalosas de corrupção,
confisco, nepotismo e compadrio? O que dirão de nós que continuamos a mandar
para prisões medievais os desafortunados da vida? O que dirão de nós que
criamos um sistema dito democrático mas que só tem agravado a injustiça e as assimetrias
sociais? O que dirão de nós que criamos organizações de direitos humanos, de
consumidores, de rotários, de obediências maçónicas, de confissões religiosas,
etc., que deviam impedir que isto acontecesse mas que parece que se auto
comprazem com pouco mais do que a sua mera existência, já quase não restando
esperança de que estas organizações possam protagonizar alguma dinâmica de
resistência ao retrocesso civilizacional em curso?
Muitos dos
responsáveis de há setenta anos, da II guerra mundial, alegaram que
desconheciam a situação. Nós não vamos poder apresentar a mesma desculpa. Como
disse a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen "Vemos, ouvimos e lemos,
não podemos ignorar".
E não temos vergonha
de estarmos a ter este comportamento cúmplice e comprometedor? Não temos
vergonha do que vão dizer de nós no futuro?
Que raio de sociedade
esta em que vivemos!
Queridas amigas e
queridos amigos
A Secção
Portuguesa tem, no seu seio, membros e conhecimentos suficientes para
participar no movimento internacional em grau superior. Não é uma secção menor.
Aliás, durante muitos anos o Secretariado Internacional delegou na secção
portuguesa o acompanhamento de secções em países latino-americanos e nos PLPs .
Tem membros que participaram em muitos ICM`s e em organismos internacionais da
AI, de que a AUE, o Programa de Língua Portuguesa e a EDAI foram exemplos.
Agradeço-vos todo
o conhecimento que tenho adquirido no vosso seio. Desejo as maiores felicidades
aos membros agora eleitos. Manifesto disponibilidade para continuar aquilo que
comecei há mais de 30 anos como membro da AI. Tenho um grande amor pela AI e
continuarei a querer mantê-lo. Com a minha idade e o fim da vida a
aproximar-se, quero acompanhar a filosofia que impregnou o nascimento da AI até
à minha morte.
Lisboa, 9 de
Dezembro de 2017
Manuel Hipólito
Almeida dos Santos
4 - DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor
Na década iniciada em 1970 do século passado assistia-se em Portugal a um crescimento de ativismo social, ainda que com muito atraso ao que já se passava em muitos países da europa central e ocidental. Tal ativismo tinha expressão nas associações existentes (cuja criação era dificultada pelo regime vigente) e nalguns órgãos de comunicação social (jornais República, Diário de Lisboa, Expresso e Jornal do Fundão, eram exemplos). Uma área em que se notava a necessidade de maior intervenção era a defesa do consumidor e, em Lisboa, constituiu-se a DECO, a 12 de Fevereiro de 1974, a partir da Associação para o Desenvolvimento Económico e Social, a despeito dos entraves criados para a sua legalização.
A
notícia da criação da DECO circulou nalguma imprensa nacional e despertou em
mim curiosidade e interesse em tornar-me associado, apesar de habitar em Aveiro
o que, naquele tempo, dificultava a ação fora do pequeno círculo geográfico em
que estávamos inseridos, já que os contactos eram, quase exclusivamente, por
via postal (A maioria dos portugueses ainda não dispunha de automóvel nem de
telefone domiciliário). Tal adesão veio a acontecer em 1974 (sou o sócio nº
720) e passei a acompanhar ativamente o seu trabalho.
Inicialmente,
o trabalho da DECO tinha Lisboa como único ponto de dinamização e ação, quer
através dos órgãos de comunicação social, quer da revista Proteste. Com o
crescimento do número de associados em todo o País, começou a gerar-se
interesse na criação de polos regionais. Como, entretanto, tinha mudado a
residência para V.N.Gaia, contactei alguns associados da zona do Porto, no
sentido da criação de uma delegação nesta cidade. Desses contactos resultou a
constituição de um grupo dinamizador constituído por mim próprio e por Dra.
Isabel Afonso, Sr. Manuel Claro, Dr. Delfim Loureiro e Dr. Paulo Vilarinho,
grupo este que encetou reuniões com os órgãos dirigentes nacionais com o
objetivo da constituição da Delegação Norte da DECO. Tal veio a verificar-se no
ano de 1990, tendo, nos anos seguintes, pessoalmente exercido diversos cargos
na Delegação Norte, como Presidente da Assembleia Geral e Presidente da
Direção. De entre as múltiplas ações de imediato desenvolvidas destacaram-se,
além do apoio aos consumidores no plano informativo e jurídico, entrevistas com
vários órgãos de comunicação social e a realização de protocolos com autarquias
vizinhas, assim como o envolvimento na criação do CICAP-Centro de Informação,
Consumo e Arbitragem do Porto-Tribunal Arbitral de Consumo, entidade esta de
extrema relevância na resolução de conflitos de pequena dimensão económica
entre consumidores e agentes económicos que não tinham resposta adequada no
sistema de justiça tradicional. Aspeto relevante na lei que foi criada para o
enquadramento institucional destas estruturas foi a introdução de equidade, a
par do direito, como base para a solução dos conflitos de consumo em que
intervinham. Este conceito da consideração da equidade e do direito em plano de
igualdade levantou muitas objeções das estruturas da magistratura e dos agentes
judiciários, incluindo a Ordem dos Advogados. Isto, associado à gratuitidade de
acesso a estes Tribunais Arbitrais de Consumo e à não exigência de patrocínio
por advogado em qualquer causa (os juristas do CICAP prestavam o apoio jurídico
necessário enquanto funcionários do CICAP), foi uma revolução no sistema
judicial, cujo êxito tem vindo a ser comprovado pelo tempo e pela sua extensão
a todo o País aonde foram implantadas estruturas do mesmo tipo. Nos primeiros
dezoito anos de vida do CICAP desempenhei sempre funções nos seus órgãos
sociais, tendo sido várias vezes eleito para presidente do conselho de
administração e presidente da mesa da assembleia geral, sendo de relevar as
excelentes relações de cordialidade com outros representantes das estruturas
dirigentes da instituição, nomeadamente o Sr. Dr. Mário Frota representante da
Câmara Municipal do Porto e o Sr.
António Ferraz representante da Associação de Comerciantes do Porto.
O êxito
na atividade da Deco pela criação da Delegação do Norte levou a que se desenvolvessem
iniciativas noutras regiões do País, tendo-se constituído delegações em
Coimbra, Santarém, Évora, Faro e Viana do Castelo. No caso concreto da
implantação a norte do País, desenvolvi, no mandato em que fui presidente da
direção da Delegação Norte, reuniões com associados em Braga, Viana do Castelo
e Vila Real no sentido de criação de delegações nessas regiões. Mas, apenas, em
Viana do Castelo se conseguiu a criação de comissão instaladora, sob a
coordenação da Dra. Glória Felgueiras (ela, também, membro da direção da
Delegação Norte), que formalizou a criação da Delegação de Viana do Castelo em
1998, tendo alguns anos mais tarde alargado o seu âmbito à região do Minho,
adotando a designação de Delegação Regional do Minho da DECO, abarcando os
distritos de Braga e Viana do Castelo e representando a DECO junto das
instâncias de resolução de conflitos de consumo (TRIAVE e CIAB) sediadas na
região. Nessa Delegação Regional do Minho exerci, durante vários mandatos, a
presidência da mesa da assembleia geral, que ainda exerço, com participação nas
reuniões nacionais da Conselho de Delegações da DECO.
Ao
longo destes quase cinquenta anos de associado e dirigente da DECO, vários
aspetos importantes para a vida dos consumidores forem sendo por mim acompanhados,
os quais constam dos relatórios anuais da associação. Pela sua particularidade
mencionarei dois deles (além da criação do CICAP atrás referida): dispositivo
eletrónico de pagamento de portagens e criação da EDIDECO (atual DECO Proteste),
ambos nascidos nos finais do século passado.
Relativamente ao dispositivo eletrónico de
pagamento de portagens, a DECO foi solicitada a emitir parecer sobre a sua
criação, já que, até essa altura, os utilizadores de auto-estradas pagavam o
respetivo valor nos terminais de portagem aos funcionários que se encontravam
nas cabines de saída. A DECO anuiu à
concordância com o sistema, aceitando a comodidade acrescida que tal
proporcionava aos automobilistas, mas eu entendi que tal anuência deveria ser
condicionada à oferta dos dispositivos eletrónicos, já que a dispensa dos
cobradores proporcionava uma redução de custos da empresa, única, que, na
altura, operava (BRISA) e seria justo que os consumidores-automobilistas
tivessem, também, comparticipação dessa redução de custos não tendo de comprar
o equipamento. Infelizmente esta minha posição não teve vencimento, tendo eu
declarado que nunca compraria tal equipamento, o que tem levado a que faça
sempre o pagamento das portagens, em numerário, nas cabines de saída das
auto-estradas, ou na internet, via CTT, no caso das SCUTs.
Relativamente
à criação da EDIDECO, em 1990, tal resultou da dificuldade que a DECO estava a
sentir na produção da revista Proteste, tendo em conta as exigências de
redação, impressão e distribuição da revista e custos inerentes, nem sempre
conseguindo a sua produção nas datas devidas, apesar do êxito qualitativo da
revista e da sua aceitação pela comunidade em geral. Tendo em conta os
contactos havidos com associações congéneres de consumidores europeias (ex:
Test’Achats), e, mais tarde, a Euroconsumers, colocou-se a questão de cedência
da produção da revista, e respetivo nome Proteste, a uma entidade comercial portuguesa a criar
que integraria a DECO e que se designou EDIDECO (mais tarde DECO Proteste).
Esta decisão foi tomada numa assembleia geral da DECO com o meu voto contra, já
que entendi que a cedência da revista a uma entidade comercial colocaria
questões que poderiam ser controversas numa associação cívica como a DECO. A
evolução havida veio a dar-me razão, já que as relações DECO-EDIDECO-DECO Proteste,
têm sido pautadas por atritos, tendo em conta formas de atuação da editora,
nomeadamente publicidade agressiva para a angariação de assinantes e atuação em
campos onde a DECO não intervém, que são, muitas vezes, do desagrado dos
consumidores, apesar da qualidade técnica das temáticas abordadas nas revistas.
A minha
continuidade em funções dirigentes na DECO deve-se muito a uma sensação de
pertença fraterna na defesa dos consumidores, apesar de sentir algum desagrado
perante a diminuição do papel descentralizador das delegações regionais com a
assunção da gestão central a partir da sede em Lisboa, assim como o
esvaziamento das funções das delegações regionais, além do caráter
anti-democrático do processo eleitoral, ao exigir às listas candidatas
opositoras à lista de continuidade, apresentada pela Direção em funções, condições mais difíceis
de apresentação de candidatura (as listas opositoras têm de ser subscritas por
1% dos associados, enquanto a lista de continuidade dos órgãos sociais em
funções não tem de cumprir essa exigência) .
Pelo
seu interesse histórico (associação constituída antes do 25 de Abril de 1974) a
seguir encontra-se a escritura de constituição da DECO.
5 – O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos
Entrei para a instituição em 2003, através do vicentino e companheiro
rotário Luís Nunes (Rotary Club de S. Mamede de Infesta), tendo sido presidente
de 2004 a 2010 e de 2016 a 2022, passando a exercer voluntariado nas prisões da
diocese do Porto, apesar de já estar sensível para a temática prisional aquando
do trabalho que desenvolvi na A.I. e de uma ação de voluntariado com uma
reclusa equatoriana detida na prisão de Custóias no ano de 2000.
Comecei as visitas às prisões, enquadrado na O.V.A.R., no Estabelecimento
Prisional de Paços de Ferreira, após o que, tendo em conta as funções de
presidente da instituição, visitei frequentemente os outros estabelecimentos
prisionais da diocese (Custóias, S.C.Bispo – Masc. e Femin., Vale do Sousa e
P.J.).
Tendo-se conseguido sensibilizar novas pessoas para este tipo de
voluntariado, o que permitiu a constituição de grupos nos estabelecimentos
prisionais, dediquei-me com mais assiduidade ao Estabelecimento Prisional
Masculino de Santa Cruz do Bispo.
Com as ações em que tenho estado envolvido adquiri um grande enriquecimento
humano, com a perceção das fragilidades humanas e dos condicionalismos que
levam as pessoas para a prática de atos anti-sociais (vulgarmente designados
crimes), o que me leva a considerar as prisões obsoletas (violentas, arcaicas,
medievais, retrógradas, medonhas e desumanas), pelo que a sua abolição tem de
ser um objetivo a considerar no mais curto espaço de tempo possível.
Uma história do que tem sido a O.V.A.R. ao longo dos mais dos 50 anos da
sua existência (criada em 1969), consta de uma publicação editada em 2019, por
ocasião das comemorações do 50º aniversário.
Uma síntese do meu entendimento sobre o sistema prisional pode ser vista na
intervenção que produzi na audição parlamentar que decorreu na Assembleia da
República em 17/06/2020.
“
Audição Pública – Assembleia da República
Senhoras
deputadas e senhores deputados
Agradecendo
o convite para esta audição parlamentar, felicito V. Exªs. pela iniciativa,
trazendo para a ordem do dia um tema para o qual a sociedade olha com incómodo.
A
O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, mantem, na colaboração dos
seus membros com os reclusos do sistema prisional, o seu cariz vicentino de
ajuda concreta imediata, nomeadamente aos mais pobres e necessitados,
complementada com a abertura de condições para a sua saída da condição de
pobreza e exclusão social, não nos limitando ao apoio, ainda que positivo, que
não ambiciona alterar a situação causadora da condenação. A desumanidade e as
violações de direitos humanos vividas nas prisões portuguesas não se
compadecem, apenas, com ações de remedeio. É necessária a ajuda, mas tem de se
alterar a situação que a motiva.
Tal
como temos vindo a alertar, desde há alguns anos, o sistema prisional português
tem características evidentes de desumanidade e incongruência, violadoras dos
referenciais jurídicos nacionais e internacionais, situação esta reconhecida
por entidades como a Provedoria de Justiça e os Comités das Nações Unidas e do
Conselho da Europa para as questões da tortura e dos direitos humanos. O
exposto a seguir não esgota a panóplia daquilo que é necessário mudar no sistema
prisional, já que o modelo civilizacional construído, em muitos países, na
segunda metade do século XX, aponta para a abolição das prisões como instituições retrógradas, arcaicas, medievais,
desumanas, medonhas e violentas.
Façamos
um périplo pelo interior das prisões e das causas que levam à prisão,
considerando que o retrato difere de estabelecimento prisional para
estabelecimento prisional e do ambiente que neles vigora, pelo que:
- É
importante a criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa
via formativa e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão),
relevando o respeito pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade
e partilha, permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a
rendimentos lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social.
- É
urgente terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua,
proibida constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de
segurança aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objetivamente, o disposto no
Código Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições
da Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da
promessa do seu levantamento pelo atual diretor-geral da DGRSP, ainda não é
conhecida.
-
Deve-se terminar rapidamente com a violação do Direito Internacional no que
toca à garantia do
direito generalizado à própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, tendo
este sido, até, acusado pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos
particularmente injustiçados com tal situação, independentemente da necessidade
de grande melhoria do apoio judiciário que se tem revelado frágil e inadequado.
- É
necessária uma modificação profunda na abordagem da política sobre drogas
(responsável pela maioria esmagadora da população prisional, pois a obtenção de
dinheiro para a compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes
contra as pessoas, contra o património e contra a sociedade), encarando a não
criminalização de todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco,
do álcool e do jogo) e promovendo uma campanha alargada de sensibilização para
as consequências de todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma
guerra, que já dura há dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo
contrário, quedando-nos a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo
positivo dado da descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o
falhanço da estratégia para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e
da repressão. Mais, estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que
não têm interesse no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de
negócio. Quer a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos,
Michelle Bachelet, quer M. Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de
Drogas, declararam, em Maio de 2019, na 26ª Conferência sobre a Redução de
Danos, que a guerra às drogas fracassou, sendo favoráveis à legalização das
drogas, mesmo das mais pesadas.
- Há
que ter em consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de
informação e comunicação devem ser
acessíveis aos reclusos, incluindo o uso alargado dos equipamentos (telemóveis e
computadores), permitindo uma efetiva praxis para a ressocialização e
acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de
prisão efetiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de
circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os
cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor Geral
da DGRSP no jornal Público -
11/06/2019 – Um novo paradigma para o uso de telefone e privação da liberdade).
É positivo o aumento de períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda
que este passo não vai impedir a continuação da entrada clandestina de
telemóveis nas prisões, já que as potencialidades destes equipamentos não são
supríveis com as comunicações telefónicas tradicionais (estas não permitem as
novas tecnologias de comunicação e não possibilitam os contactos quando os
reclusos estão fechados nas celas).
-
Relativamente à política de fomento da valorização académica dos reclusos e de
contactos com o exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a
Universidade Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as
condições para a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos.
- Tendo
o crime de condução de veículos automóveis, sem carta de condução,
significativa expressão, deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por
este crime, a possibilidade de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra
em cumprimento de pena.
- É
urgente a admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos
humanos dos funcionários prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos
humanos para as áreas de apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes
sociais, etc…).
- É
necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das
condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das
prisões, nomeadamente o CEPMPL (este código prevê apoio social e económico aos
reclusos mas tal não se verifica na prática), acabando com a ideia de que o
Estado de Direito fica à porta das prisões. As instituições nacionais e
internacionais de direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas,
Provedoria de Justiça, etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e
perplexidade com a situação existente.
- As
prisões devem ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do
recluso à sua área de residência, promovendo uma política de transferências de
reclusos para tal, assim como evitando instalações de dimensão elevada que
introduzam grandes aglomerados de reclusos, dificultando a humanização da vida
prisional, assim como combatendo a existência de grupos de liderança que
praticam a extorsão e a violência nas prisões.
- Para
análise individual de cada estabelecimento prisional, o relatório de
actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria incluir o relatório
pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo do que foi feito até
ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o conhecimento da vida
interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria.
- Sendo
Portugal frequentemente visado pelas organizações internacionais de direitos
humanos de que faz parte, nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da
Europa, os relatórios produzidos por estas instituições só podem ser divulgados
depois da autorização do governo português, o que não abona a favor da
transparência e da boa fé. Torna-se necessário que Portugal prescinda desta
prerrogativa e retire a restrição à divulgação desses relatórios logo que as
instituições os produzem.
- As
dotações orçamentais para os serviços prisionais e de reinserção têm-se
revelado insuficientes para uma vivência de qualidade adequada nas prisões.
-
Deve-se ter em consideração que Portugal tem o tempo médio de cumprimento de
pena mais elevado da União Europeia. É injustificada a persistência nas penas mais longas da União
Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é cerca do quádruplo
da média da U.E.),
pelo que reduzindo este tempo não precisamos de mais prisões nem de mais
recursos humanos. Precisamos é de reduzir o tempo médio de cumprimento de pena,
que levará à redução da população prisional, com a óbvia e consequente economia
de meios financeiros, humanos e materiais. A aprovação duma amnistia
contribuirá para este objetivo, corporizando, além do mais, os pilares cristãos
do perdão e da misericórdia que fazem parte da matriz social portuguesa. O
poder político não tem de ter medo da reação dos portugueses a este respeito e uma
amnistia, assim justificada, será apoiada pela opinião pública.
- Há que considerar a aplicação das Regras de Bangkok de 2010 (Regras
das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas
de liberdade para mulheres infratoras) às reclusas com filhos, abolindo a participação no
cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento, cumprem as crianças
inocentes.
- Há
que tomar medidas de prevenção de represálias sobre os reclusos, para os
condicionar na sua forma de ser e estar, represálias estas que consistem em
pareceres injustos para a concessão de licenças jurisdicionais, na atribuição
de tarefas ocupacionais remuneradas e enquadramento no Regime Aberto, no caso
de reclusos reivindicativos dos seus direitos.
- Os tribunais de execução
de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças
jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do
recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma
licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter
consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do
desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a
presença física dos reclusos e seus advogados em todas as reuniões que apreciam
o seu caso, assim como de ser-lhes fornecida cópia dos relatórios e pareceres
que lhes dizem respeito, com a sua inclusão no respetivo processo individual
existente no estabelecimento prisional.
- Continua a
retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o
imperativo constitucional do direito de propriedade, com o argumento da
constituição dum fundo de reserva. Tal só deveria ser feito com a concordância
do recluso. Por outro lado, o trabalho nas
prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos
por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo, além de que os bens
produzidos pelos reclusos, ao serem vendidos, configuram concorrência desleal
com as entidades que produzem o mesmo tipo de bens tendo de suportar salários e
encargos legais.
- Assiste-se, no
interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens,
homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as
famílias, autoritarismo e prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar.
-
A assistência espiritual e religiosa é feita com grandes limitações de tempo de
contacto com os reclusos, agravada com a sua impossibilidade no caso das greves
dos guardas prisionais (A assistência espiritual e religiosa deve fazer parte
dos serviços mínimos).
-
A dinâmica de reinserção social em muitas prisões, a partir do início do
cumprimento de pena, é claramente insuficiente, para não dizer quase
inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo
da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias,
quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos
seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada
pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
-
Os serviços de saúde são objeto de grandes limitações, em recursos materiais e
humanos, como, por exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e
oculares, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
-
É imperioso que se dê andamento à implementação de protocolos com autarquias
visando a criação de “casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde
os reclusos podem recorrer quando não dispõem duma morada no exterior,
permitindo a sua ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais
do crime e da reincidência.
-
A alimentação é manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade,
bastando constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições,
fornecidas por entidades com fins lucrativos, é inferior a € 4,00.
Em
acréscimo a estas questões, importa ter em conta o que temos vindo a declarar
nas sucessivas intervenções em que nos envolvemos.
Em Abril de 2019
fomos homenageados com o prémio “Terra Justa – Causas e Valores da Humanidade”
(Fafe - 04/04/2019) pelo nosso contributo para a humanização do sistema
prisional, onde proferimos a seguinte declaração:
(…)
“Permitam-me
um prólogo à intervenção protocolar nesta cerimónia de homenagem à O.V.A.R. –
Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, promovida pela Câmara Municipal de Fafe
no “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade – Terra Justa” do
ano de 2019.
Já que
estamos em momento de homenagens, quero homenagear e solidarizar-me com todas
as vítimas de atos anti-sociais, e homenagear e solidarizar-me, também, com
alguns perpetradores de atos socialmente censuráveis de quem tenho tido o
privilégio de contactar e conhecer, na prossecução duma sociedade sem crimes,
sem vítimas e sem reclusos, uma sociedade de paz e liberdade, como por exemplo:
-
Recluso A – Preso há 34 anos, considerado inimputável, manifesta a sua revolta
e indignação pela renovação das medidas de segurança, de 2 em 2 anos, no
estabelecimento prisional. Tem consciência da injustiça que lhe está a ser
feita. Mantenho com ele uma relação de grande amizade.
-
Recluso B –Um jovem, de 32 anos, depois de cumprir uma pena de 6 anos,
conseguiu arranjar trabalho como condutor dum camião de recolha de lixo e como
distribuidor de pizzas. Encontramo-nos regularmente (quer enquanto se
encontrava na prisão, quer agora em liberdade). Diz-me: “Aquilo, lá dentro, é
muito pior do que se pode imaginar.”
-
Recluso C – Encontra-se preso pela 3ª vez. Quando o encontrei a iniciar o
cumprimento da 3ª pena, perguntei-lhe: “Então você aqui outra vez? Não me tinha
dito que nunca mais voltaria para a prisão?” Respondeu-me: “Quando cheguei a
casa depois de libertado a minha mãe disse-me: “rapaz, vê lá se arranjas
trabalho pois nós somos pobres e precisamos da tua ajuda, tendo-te visitado pouco
na prisão pois não tínhamos dinheiro para lá ir.” No dia seguinte fui a
diferentes lugares oferecendo-me para trabalhar e todos me disseram para
deixar os meus
contactos, que logo que aparecesse
alguma coisa me telefonariam. No 2º dia repetiu-se o que
se passou no dia anterior.” Então o recluso perguntou-me: “O senhor acha que eu
tinha coragem de voltar para casa ao 3º dia sem dinheiro nem trabalho?”. Foi
apanhado no tráfico de droga e preso uns dias depois.
-
Recluso D – Depois de 20 anos de vida atribulada, conseguiu encontrar um rumo
para o seu futuro, concluindo a licenciatura em engenharia mecânica, enquanto
está preso, estando agora a fazer o estágio curricular e o mestrado, devendo
sair em liberdade no final do corrente ano, apesar das grandes limitações a que
está sujeito para este seu percurso académico, sem poder utilizar equipamento
de escrita e de acesso às TIC .
- Recluso
E (toxicodependente) – Como não dispunha de rendimentos para usufruir de
serviços públicos essenciais, fez uma ligação clandestina à rede pública de
água. Apanhado neste crime, foi condenado a pagar € 1.800 de multa,
convertíveis em 300 dias de prisão. Como não tinha os € 1.800 para pagar a
multa, está a cumprir os 300 dias de prisão que vão custar ao Estado cerca de €
15.000, pois um recluso custa, em média, cerca de € 50 por dia. E, entretanto,
como estão a viver a esposa e o filho? Que futuro se prevê para a família?
-
Recluso F – Encontrei uma senhora a sair da visita semanal de sábado à prisão,
com ar triste, abatido e de mágoa evidente. Perguntei-lhe se necessitava de
ajuda, respondendo-me que estava preocupada com o seu filho a cumprir pena, a
que se seguiu uma conversa amiga. Relatou-me que o seu filho tem tido problemas
psiquiátricos desde criança, com manifestações de agressividade para com ela e
para com o pai, que iam aguentando tudo pois sentiam como seu dever nunca
abandonarem o filho, confiados que, um dia, ele recuperaria a razão, apesar de
serem pobres e sem meios para grandes tratamentos. Na última vez o filho
agrediu-os e obrigou-os a sair de casa, o que os forçou a chamar a polícia com
o objetivo de lhes permitir o regresso a casa e de provocar o tratamento do
filho num estabelecimento de saúde adequado. A polícia deteve o jovem,
acusando-o de violência doméstica, apesar dos pais declararem não querer
apresentar queixa mas, apenas, que o seu filho fosse tratado. No entanto, como
a violência doméstica é crime público, o jovem foi julgado e condenado a quatro
anos, sendo considerado inimputável e a pena a ser cumprida em estabelecimento
psiquiátrico prisional. E, agora, lá vão os pais, todas as semanas, visitar o
seu querido filho, com a consciência pesada pelo facto do seu filho estar na
prisão por culpa deles, já que nunca deviam ter chamado a polícia. Pensavam que
ele seria levado para tratamento hospitalar, mas nunca para a prisão. Carregam
esta cruz com tristeza e mágoa, mas com amor incondicional pelo seu filho.
Recluso
G – Encontra-se a cumprir penas sucessivas que lhe foram aplicadas num total de
51 anos e 8 meses (após reclamações do recluso foram reduzidas para um total de
38 anos e 2 meses). Está preso há 17 anos, sem ter tido qualquer licença
jurisdicional (precárias), sempre passados dentro da prisão. Muitas entidades
conhecedoras da situação consideram que esta situação, que pode conduzir à
prisão perpétua, é inaceitável e viola o disposto na Constituição da República
Portuguesa. Este caso já tem sido tratado por alguns órgãos de comunicação
social, tendo tido um programa específico na SIC, na rubrica “Vidas Suspensas”.
O atual Diretor Geral da Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais
comprometeu-se a apresentar uma proposta legislativa que solucione a situação
dentro do quadro constitucional e do Código Penal que prevê a pena máxima de 25
anos. Aguarda-se tal proposta e, enquanto isso não acontece, o recluso continua
sem saber se algum dia sairá da prisão.
A maioria
destes reclusos estão presos, ou passaram pelas prisões, devido a problemas com
drogas, problemática esta que está na origem de mais de 80% dos presos em
Portugal.
Agradecendo
a consideração pela permissão deste prólogo, não posso deixar de iniciar a
minha intervenção protocolar sem agradecer, sensibilizado, a escolha da
O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (Obra Especial do Conselho
Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo) para ser homenageada e
felicitar vivamente a organização deste evento “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, Terra Justa”,
colocando Fafe como exemplo na divulgação dos mais elevados direitos humanos,
assim como
por trazer para a consciência coletiva a necessidade de pensar sobre valores
base da convivência humana em clima fraterno e solidário, procurando alertar, provocar e
envolver as pessoas a
refletir sobre a
importância das causas e valores da humanidade, fazendo jus à muito
afamada “Justiça de Fafe”. E aqui surgem, já, duas questões: Que tempo é este em
que vivemos quando causas e valores da humanidade como a solidariedade, a
fraternidade, a caridade e o amor ao próximo, continuam a ser valores
merecedores de homenagem e não atributos correntes na prática rotineira de todos
os seres humanos? Que tipo de sociedade é esta em que vivemos que substitui
esses valores pelo hedonismo, egoísmo, vingança e ódio?
Em 10 de Dezembro de 2018, aquando da
atribuição do prémio atribuído pela Assembleia da República “Direitos Humanos
2018”, tive ocasião de referenciar, sucintamente, os atropelos à dignidade
humana vividos nas prisões portuguesas.
Permitam-me que os repita aqui, já que a gravidade de que se revestem
impõe que os tenhamos presentes, tendo em conta de que as situações referidas
diferem de um estabelecimento prisional para outro estabelecimento prisional. (…)
E poderia continuar a
acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos
humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da
Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos
nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
Ainda, em 2019, em artigo
publicado no Jornal Expresso, pelo psicólogo Mauro Paulino, foi divulgado que “a prevalência de
diagnósticos psicopatológicos entre reclusos é quatro vezes superior à da
população em geral, com destaque para perturbações da personalidade,
designadamente anti-social, estado-limite, paranóide e narcísica. (…) Os
reclusos tendem a desenvolver a denominada máscara prisional, quer a nível
emocional, quer a nível comportamental, o que pode originar uma instabilidade
emocional crónica e debilitante nas interações interpessoais com reflexo na
intervenção a realizar. A vivência destes indivíduos é, por vezes,
caracterizada por vários percursos criminais, com associação a culturas e
normas morais desviantes, que servem de base às relações de poder e de
interesses instituídas. Tomem-se como exemplos os diversos negócios que se
desenvolvem, uma vez que todos os produtos servem para a troca, para exercer
controlo, como sucede com o tráfico de droga ou a compra de tecnologias de
comunicação, que podem, inclusive, servir de meio para que o recluso continue a
intimidar as suas vítimas no exterior. A sobrelotação é outra variável a
considerar, podendo originar uma perda de controlo por parte da administração
prisional e o aumento do perigo de vida para o staff e reclusos. Ao nível dos
serviços clínicos, o excesso de pessoas por técnico representa uma real
limitação de atuação terapêutica, sem a possibilidade da implementação de um
trabalho psicoterapêutico mais efetivo, dado o rácio técnico/recluso. Neste
quadro surge, não raras vezes, a frustração entre os reclusos por terem
inevitavelmente menos possibilidade de acesso a outros serviços, incluindo as
ocupações (escola, trabalho), o que contribui para o aumento de competição e
sintomatologia diversa. Ainda que os serviços de vigilância procurem
supervisionar a violência, a verdade é que aqueles também denunciam a falta de
recursos humanos no exercício de funções e que as agressões existem e provocam
medo, podendo ocorrer a construção artesanal de instrumentos e armas que podem
provocar ferimentos graves e mesmo a morte. A isto associa-se a complexidade
dos negócios ilícitos já citados, os roubos, a própria monotonia e a manutenção
de relações de poder, tendo-se aqui em consideração variáveis como o número de
anos preso, o tempo que passou em instituições penais, o tipo de crime e a
idade da primeira detenção.”
O
que se passa hoje nas prisões portuguesas, como instituições retrógradas, medonhas, arcaicas,
medievais, desumanas e violentas, é o reflexo da sociedade em que vivemos. Já
começa a ser lugar comum caracterizar o atual modelo de sociedade como alienado,
violento, egoísta e vingativo, existindo pequenas bolsas de resistentes que
continuam a querer implementar o modelo humanista construído na segunda metade
do século passado, de que o Papa Francisco tem sido exemplo destacado.
Assiste-se nas relações sociais, em muitas famílias e em muitas escolas, à
prática dum clima de repressão, ódio, intolerância, escravatura e medo. Como
exemplo pode-se atentar nos indicadores divulgados, anualmente, pelas Comissões
de Proteção de Crianças e Jovens, que nos informam estarem a ser acompanhadas,
nestas comissões, cerca de 70.000 crianças e jovens por ano. E a sociedade
assiste, impávida e serena, a esta catástrofe! O futuro das prisões está
garantido pois muitas destas crianças e jovens têm o seu destino apontado desde
muito cedo, havendo necessidade urgente de, na área da justiça juvenil, se
repensar o processo tutelar educativo, o funcionamento dos centros educativos e
o Estatuto do Aluno e Ética Escolar que quase parece um Código de Penas para
crianças estudantes.
Por
outro lado, a dimensão escandalosa da pobreza em Portugal, resultante dos
baixos salários e pensões, assim como da precariedade crescente, constitui um
grande contributo para o número elevado da população prisional, já que a
esmagadora maioria dos reclusos são pobres, a quem a tentação do crime é mais
difícil de resistir, pois, como disse o poeta Millôr Fernandes “Ser pobre não é
crime, mas ajuda muito a chegar lá”. A pobreza existente em Portugal, país da
U.E., espaço que se diz desenvolvido, é um escândalo e gerador da prática de
atos anti-sociais.
Como
corolário desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.793
reclusos a cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70%
superiores a 3 anos de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas
a cumprir penas e medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas
nesse ano e dos cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos
nos países da U.E. com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas
punitivas. Temos de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico
psiquiatra Miguel Bombarda que, há um século atrás, declarou “A Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz
doidos.”
Com
este quadro aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre
a prevenção da criminalidade como caminho para a abolição das prisões,
invertendo a tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos
classificados como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como
exemplo, podemos atentar na problemática das drogas, que estimo em ser
responsável por mais de 80% dos crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento
de pena, tendo sido condenadas, em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões
relacionadas com drogas, além das que foram condenadas por crimes contra as
pessoas, contra o património e contra a propriedade que, na maioria dos casos,
se destina a obter meios que permitam o acesso às drogas. Tenhamos em consideração
que, ainda em meados do século passado, era inexistente, ou quase residual, a
sua figuração nos normativos penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos
aos nossos alunos de figuras famosas da literatura, das artes plásticas, da
música e do desporto, que reconhecemos como personalidades relevantes, apesar
de terem tido comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis
pela comunidade. Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da
liberdade, do consumo de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem
de se aceitar a sua produção e comercialização. Logo, há que considerar uma
nova política de drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a
produção ao consumo, simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização
para os efeitos das dependências e suas consequências, a exemplo do que já foi,
e está a ser, feito para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e
financeiros adstritos ao combate às drogas, desde as polícias às prisões e às instituições
cujo modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento,
possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização.
Excelentíssimas
entidades presentes
Minhas senhoras e
meus senhores
Celebrou-se em 10 de
Dezembro de 2018 o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Em 5 de Maio de 2019 o Conselho da Europa também celebrou igual
aniversário. Há 70 anos os nossos pais e os nossos avós definiram os grandes
valores civilizacionais que deveriam estar presentes na vida de todos nós,
tendo os nossos Governos assinado os tratados e convenções que nos obrigam a
respeitar esses valores. Setenta anos passados continuamos a assistir ao
desrespeito desse legado, pelo que deveríamos sentir vergonha pela nossa incapacidade
e indiferença. É tempo de todos nós nos
empenharmos em
praticar,
quotidianamente, o reconhecimento da dignidade estabelecido no artº 1º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerando o direito à liberdade
como valor absoluto.
Este
evento dedicado às grandes causas e valores da humanidade tem importância relevante
numa nova dinâmica para se inverter o caminho de retrocesso civilizacional que
temos vindo a viver, pelo que reforço as felicitações pela
sua realização. Temos
de reconstruir as bandeiras
que simbolizam a humanização duma sociedade com mais fraternidade e não
maior egoísmo, com mais concórdia e não mais conflitos, com mais igualdade e
não maior desigualdade, com amor e não com ódio, com mais humanidade e não
maior desumanidade.
Tenho
consciência de que o ser humano é imperfeito e, como tal, propenso a cometer
erros, mas sem que tal tenha que ter como consequência a perda da liberdade. A
prevenção da prática de atos anti-sociais (prevenção do crime) tem de ocupar
lugar de grande importância na formação do carácter das pessoas, seja nas
escolas, nas famílias, nos órgãos de comunicação social e na vida em sociedade.
Ainda
há poucos anos passou nas salas de cinema o filme “I Daniel Blake” que retrata
alguns aspetos da sociedade desumana em que estamos inseridos. Recomendo
vivamente o seu visionamento a quem ainda não o fez. Eu não quero fazer parte
de quem não vê, de quem não ouve, de quem não lê, e não quero ignorar, como nos
exortou a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen, de quem comemoramos, em 2019,
o centésimo aniversário do seu nascimento. Sendo eu um defensor da liberdade e,
como tal, da abolição das prisões, quero ter a esperança de que o caminho para
tal se concretize fruto da pressão de iniciativas como esta. (…)
O
objetivo da nossa missão de voluntariado é bem claro: semear a paz e a
esperança, permitindo o sonho dum mundo melhor que, infelizmente, está cada vez
mais arredado do modelo de sociedade que se está a implementar neste início do
século XXI. Atentemos na afirmação de Alexandre
O’Neil: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. Será um sonho não querermos os
reclusos fechados, nos vários sentidos, mas abertos e disponíveis para com
todos nos caminhos do mundo, abertos e disponíveis para com tudo que os faça
crescer entre os povos, com justiça, entreajuda fraterna e a verdadeira paz?
Neste sentido, continuarei a pedir a todos os que me rodeiam para refletirem no
lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, extraída do evangelho segundo
S. João: “Quem nunca errou que atire a primeira pedra”.
O arrepiar do caminho que nos está a levar
para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a
reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afetou e
deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da
conflituosidade, ao invés do que se tem passado
em que a prioridade tem sido dada aos meios
repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais
tribunais, mais magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais
guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas,
etc… não tem tido resultados. Se este
reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade
na sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A
aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma
sociedade melhor. Mesmo na atualidade, nos países em que o sistema penal é mais
repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior
taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é dissuasor
da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário; quanto maior é a
repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema “Por
um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade,
igualdade e fraternidade como centrais na nossa relação para com os outros.
Desejamos que desta audição parlamentar
possam sair fortes contributos para uma nova visão do sistema prisional em
Portugal, substituindo o castigo, o ódio e a vingança pela prevenção dos atos
anti-sociais e pela justiça restaurativa, com tradução em medidas concretas,
permitindo que o Estado de Direito viva nas prisões, enquanto não são abolidas,
e sejam respeitados os Direitos Humanos, de cujos referenciais jurídicos
Portugal é Estado-parte.
Muito
obrigado - Manuel Hipólito Almeida dos Santos - Presidente da O.V.A.R. - Obra
Vicentina de Auxílio aos Reclusos - 17/06/2020 “
Perante
este quadro, o voluntariado que tenho exercido nas prisões tem sido marcado por
uma denúncia constante da desumanidade que lá se vive.
Uma outra ação importante que desenvolvemos foi a contestação ao
Regulamento de Assistência Espiritual e Religiosa elaborado pela Direção Geral
da Reinserção e Serviços Prisionais em 2011, pelo desrespeito dos direitos dos
reclusos, contestação essa que levou à suspensão desse regulamento.
Outro momento de particular significado foi a luta desenvolvida em favor de
um recluso que estava a cumprir penas sucessivas que levariam a que ele,
provavelmente, não saísse da prisão ainda em vida, contrariando o princípio
constitucional de que ninguém pode ser condenado a prisão perpétua. Felizmente,
conseguiu-se que ele beneficiasse de um indulto no âmbito das medidas tomadas
para diminuir a população prisional, aquando da Covid19, encontrando-se, agora,
em liberdade e reinserido na sociedade. Mas a questão de fundo mantem-se,
quanto ao caráter de as penas sucessivas e as medidas de segurança aplicáveis a
inimputáveis se poderem transformar em prisão perpétua. Trata-se de uma
situação que todos ao partidos consideram que tem de ser revista mas nenhum
toma a iniciativa pois temem que as medidas a adotar, que beneficiarão os
reclusos, possam levar a perda de votos, já que a opinião pública é pouco
favorável a concessões a reclusos Esta postura da opinião pública tem de ser
revertida, passando de uma postura de castigo e punição para uma postura de
correção, perdão e misericórdia. Como tal, ressalta a pouca eficácia do trabalho que tem
vindo a ser desenvolvido nas prisões, de que a declaração de ex-ministro
Alberto Martins constatando que as prisões são o inferno da sociedade atual, em
sessão pública em 10/12/2013, é um testemunho insuspeito, além de que a Igreja
Católica não tem tido o empenho suficiente na construção duma pastoral
penitenciária em todas as dioceses, apesar de pessoalmente ter abordado esta
necessidade com vários responsáveis da Igreja Católica em Portugal. Chegou-se a
ter uma grande esperança em evoluções significativas nesta posição da Igreja
Católica, nomeadamente quando o Pe. João Gonçalves assumiu as funções de
responsável da Coordenação Nacional da Pastoral Penitenciária e o Bispo D.
Carlos Azevedo teve a tutela das questões prisionais na Conferência Episcopal
Portuguesa. Mas o falecimento do primeiro e a transferência do segundo para o
Vaticano (Comissão Pontifícia da Cultura), fez voltar a questão à quase
irrelevância no seio da Igreja em Portugal.
Durante os mais de vinte anos que levo de militância no voluntariado
prisional várias têm sido as questões relevantes com que tenho deparado, além
do que atrás refiro na audiência havida na Assembleia da República.
Uma delas relaciona-se com a tendência já instalada na sociedade portuguesa
de formatar o voluntariado, existindo, até, um quadro legal e regulamentar
estabelecido, formatação essa que não tem o meu aval. Entendo que quem quer ser
voluntário deve ser completamente livre para a sua ação e não estar
condicionado por normativos castradores nem retirar benefícios das ações que
pratica. Como exemplo, refiro a discussão havida com a Dra. Clara Albino, na
altura Diretora Geral dos Serviços Prisionais, sobre a obrigatoriedade da existência
de um seguro de risco para os voluntários, ao que me opus por considerar tal
como um privilégio incompatível com a função altruísta de um voluntário. Ainda
hoje recuso inscrever-me na Confederação Portuguesa do Voluntariado (quero ser
um voluntário anónimo), assim como recuso qualquer seguro de natureza
monetária, já que a disposição de servir não deve ter qualquer contrapartida.
Já chega a grande riqueza humana que adquirimos no contacto com os outros,
nomeadamente com os reclusos. Postura semelhante entendo que deve estar
presente nas relações com mecenas que desejam figurar com a sua identificação,
já que se pode estar presente perante publicidade encapotada, além de que
muitas dessas entidades mantêm características desumanas nas relações laborais
com os seus trabalhadores, pelo que tenho prescindido de donativos de entidades
que querem ser identificadas.
Provavelmente por estas posturas e outras semelhantes, a Assembleia da República
decidiu atribuir à O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos o prémio
Direitos Humanos em 2018, tendo produzido a intervenção atrás referida na
cerimónia oficial que decorreu no Palácio de S.Bento em 10.12.2018, com a
presença das mais altas individualidades do país. Dos contactos havidos durante
o evento, resultaram reuniões privadas com várias individualidades dos partidos
políticos e com o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Na reunião
com este havida, fomos exortados a realizar um grande evento nacional a que ele
daria cobertura e estaria presente. Após vários contactos com os serviços da
presidência, procedeu-se à organização de um simpósio para o dia 26 de junho de
2021, com a participação garantida de altas individualidades nacionais.
Inesperadamente, cerca de um mês antes do evento, a assessora do presidente da
República para esta área (Dra. Maria João Ruela) informou-nos da
impossibilidade da presença da Sr. Presidente da República por este não se
querer pronunciar, no momento, sobre questões de justiça, devido a discordâncias
com a política que estava a ser seguida nesta área governamental, pelo que o
simpósio foi cancelado.
O enriquecimento humano que tenho beneficiado nos contactos que tenho
mantidos com os reclusos tem sido gratificante. Sem querer especificar as
situações particulares, por respeito pela privacidade devida, tem sido uma
grande honra para mim a continuação das relações pessoais após o cumprimento
das penas dessas pessoas. Criaram-se amizades que têm continuidade fora do
ambiente prisional onde se iniciaram.
Conheci, ao longo destes mais de 20 anos de voluntariado específico dentro
das prisões, muitas pessoas que se encontravam em cumprimento de pena. Não
refiro os nomes dos muitos casos de amizade pessoal profunda que me ligaram, e
ligam, a pessoas condenadas a penas de privação da liberdade, quer nos
contactos pessoais, quer em cartas e objetos que me dedicaram, já que tal
poderia, como já referi, comprometer a privacidade a que têm direito. Alguns saíram
após o cumprimento da pena, outros por indulto ou em liberdade condicional,
outros, ainda, por falecimento dentro da prisão, devido, em muitos casos, às
deficientes condições de alojamento, alimentação e assistência médica e
psicológica. Um desses casos foi o de Maciel Costa (aqui refiro o nome pois,
além de já falecido, esteve praticamente abandonado pela família durante o
tempo que permaneceu na prisão), homem educado, erradamente colocado na zona da,
eufemisticamente, denominada “Clínica Prisional do E.P. de Santa Cruz do
Bispo”, dotado de uma sensibilidade artística apurada (durante alguns anos a
revista mensal do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo
publicou artigos, poemas e desenhos seus) e que faleceu vítima de tuberculose
contraída dentro da prisão, pois já há muitos anos que não lhe era permitida
qualquer licença de saída precária, mantendo-o, rotineiramente, como
inimputável em cumprimento de medidas de segurança renováveis de 2 em 2 anos. Nas
páginas seguintes encontra-se o elogio fúnebre que proferi no seu funeral.
Durante este meu voluntariado prisional tenho tido ocasião de efetuar a
denúncia das desumanas condições prisionais, por várias, vezes, em artigos
publicados nos órgãos de comunicação social (TVs, rádio e imprensa escrita), em
livros que editei, em entrevistas, em
participações públicas a convite de várias entidades, nos contactos com
responsáveis políticos, incluindo presidentes da república, ministros de
diferentes governos, deputados e autarcas, etc…, acabando, sempre, por concluir
que estes responsáveis políticos, apesar de estarem de acordo com a necessidade
de correção das situações relatadas, pouco iriam fazer por imperativo de não
arriscarem perdas de apoio eleitoral, já que a opinião pública não está sensível
à humanização do sistema prisional.
Que futuro para o sistema prisional? A meu ver só a sua abolição, como
defendo no livro que publiquei em 2020. Na sinopse para esse livro escrevi; “A vivência dentro das
prisões é geradora de sentimentos de frustração, desânimo e revolta, tendo em
conta estarmos em presença de situações cruéis, desumanas e degradantes, sem
que se vislumbre sentido útil na finalidade da sua existência, quer para os reclusos,
quer para quem lá trabalha. As prisões são fonte de conflitos sociais e
familiares, envolvendo reclusos e funcionários prisionais. As prisões não
ressocializam nem promovem a paz social. Somente alimentam o desejo de vingança
das vítimas e dalguma opinião pública, não tendo efeito relevante no
ressarcimento dos danos dos crimes. Além de que promovem o sensacionalismo
primitivista que alimenta certos órgãos de comunicação social.
A
convicção de que essa desumanidade, provocadora de penas e tratamentos cruéis,
desumanos e degradantes, proibidas por tratados e convenções internacionais,
não pode continuar a existir nem é passível de correção, aliada à ineficácia e
fracasso do modelo penitenciário existente no mundo ocidental há pouco mais de
200 anos, não tem outro caminho que não seja a sua abolição. Tal constatação é
reforçada pelo contributo retirado das bases filosóficas das maiores religiões
professadas no mundo, que assentam nos pilares do perdão e da misericórdia e
não na vingança, tendo em conta a imperfeição do ser humano e a sua condição de
potencial pecador. A alternativa passa pela assunção da prevenção da prática de
atos anti-sociais como a via exclusiva e prioritária a implementar,
complementada com o novo modelo de justiça preventiva/restaurativa que tem
vindo a ser instaurado em vários países, deixando de se aplicar penas de
privação da liberdade.
O
século XIX foi um século marcante para a abolição da escravatura
O
século XX foi um século marcante para a abolição da pena de morte.
O
século XXI tem de ser o século marcante para a abolição das prisões.
(E-mail enviado ao Presidente da Comissão de
Liberdade Religiosa)
Exmo. Senhor
Dr. Mário Soares
Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa
Rua Augusta nº 118 3º andar
1100-054 LISBOA
Telef.: 213242343 - Fax: 213242341 - E-mail: clr@clr.mj.pt
Porto, 10 de Março de 2011
Exmo. Senhor Presidente Dr. Mário Soares
Desenvolve esta instituição, através dos seus visitadores-voluntários, o
trabalho de apoio espiritual e religioso aos assistentes
religiosos da Igreja Católica, no interior dos estabelecimentos prisionais da
Diocese do Porto, desde há mais de quarenta anos.
A prática do trabalho que desenvolvemos assenta no apoio aos
reclusos e às
suas famílias, respeitando a confidencialidade da identidade dos reclusos e
de toda a problemática relacionada com a sua vida
pessoal e comunitária de
que nos apercebemos.
Recentemente foi-nos dado a conhecer pela Direção Geral dos Serviços Prisionais
o Manual de Procedimentos para a Prestação da Assistência
Espiritual e Religiosa nos Estabelecimentos Prisionais
(Operacionalização
do Dec. Lei 252/09), que passará a regular a atividade do apoio espiritual
e religioso nos estabelecimentos prisionais. Tal
Manual introduz novos procedimentos que alteram aquilo que tem sido o nosso
trabalho, nomeadamente com a elaboração sistemática de listas de nomes de
reclusos e a identificação da sua confissão religiosa, assim
como na elaboração de indicadores estatísticos que, a nossos ver, contrariam os
referenciais jurídicos nacionais e internacionais aplicáveis à
proteção de dados e da confidencialidade da liberdade das práticas religiosas.
Neste sentido, decidiu esta instituição, em reunião de Direcção de
04/03/2011, solicitar a V.Exªs. a informação se este Manual obteve parecer
favorável dessa Comissão e, em caso negativo, se é entendimento dessa
Comissão que o Manual observa o quadro legal que lhe é aplicável, dentro do
âmbito de atribuições que incumbem a V.Exªs.
Com as nossas cordiais saudações vicentinas
Manuel Hipólito Almeida dos Santos - Presidente da Direção
O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos - Sociedade
de S. Vicente de Paulo - Porto
Rua de Santa Catarina, 769
4000-454 Porto
Anexo: Cópia do Manual de Procedimentos para a
Prestação da Assistência
Espiritual e Religiosa nos Estabelecimentos Prisionais
(Operacionalização do
Dec. Lei 252/09)
(Elogio
Fúnebre a um Recluso que Faleceu no Cumprimento de Pena)
Elogio fúnebre - Maciel Dias Costa
Conheci o Maciel há muitos anos e desde logo se criou entre nós uma empatia que se tem mantido ao longo destes anos.
E o que é têm
sido os nossos encontros semanais no estabelecimento prisional? E foram muitas
centenas de encontros, o que me permitiu conhecê-lo melhor do que quem tem
permitido o renovar das medidas de segurança a que o Maciel foi sujeito.
Sempre encontros
de amigos, amizade que se foi reforçando com o passar do tempo. Não é por acaso que a revista mensal
“Escalada” do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo
inseriu, em todos os números desde há muitos anos, as muitas poesias, desenhos
e textos que o Maciel escreveu.
É que o Maciel,
além de ser uma pessoa pacífica, foi um grande artista das artes e das letras,
com trabalhos de pintura e escultura de uma criatividade que ombreia com os
bons artistas, manifestando uma inteligência invulgar.
A doença de que
padecia, que esteve na base da sua condenação penal, é hoje considerada por
eminentes psiquiatras como tratável em liberdade, se acompanhada clinicamente e
enquadrada em condições de natureza social. Mas parte da sociedade em que vivemos
preferiu atirá-lo para a prisão, condenando-o ao invés de o ajudar e tratar,
esquecendo os princípios cristãos do perdão e da misericórdia. E o Maciel
acabou por ser mais uma vítima deste modelo de sociedade punitiva, policial,
repressiva e não cristã, como o Papa Francisco tanto tem denunciado, sendo os
reclusos componente frequente das suas intervenções pontifícias. Na mesma linha
vão os relatórios de instâncias nacionais e internacionais de direitos humanos,
mas muita da nossa sociedade prefere a vingança, a punição e o castigo em vez
do perdão e da misericórdia que são os pilares do cristianismo como raiz
antropológica dessa mesma sociedade.
Há três semanas,
durante a celebração da palavra que decorreu num sábado de manhã no
estabelecimento prisional, pedi a um seu companheiro recluso para fazer uma
oração pela recuperação do Maciel. Esse companheiro, durante largos minutos,
evocou a personalidade do Maciel, exaltando a sua disponibilidade de ajuda para
com os outros, a inexistência de qualquer conflitualidade com os restantes
companheiros e a sua dedicação aos seus gostos artísticos, à leitura e à
introspeção. E foi com emoção que vi, no final da oração, todos os reclusos
presentes na celebração, se levantarem e aplaudirem espontaneamente o que tinha
sido dito.
Durante muitos
anos o Maciel esteve sozinho numa cela, o que lhe permitia o sossego e a
privacidade que a sua personalidade necessitava. Mas no ano passado ele foi
transferido para o anexo da prisão conhecido por Casa de Santo André, compartilhando
a cela com outros reclusos. Isto deixou-o entristecido e ele que raramente se
queixava das condições do estabelecimento prisional, manifestou-me que não
gostou dessa alteração, nunca mais se dedicando ao trabalho de escultura,
apenas fazendo alguns textos para publicação na “Escalada”. E como ele ficava
contente quando eu lhe dava a revista e ele via o seu nome como autor.
Em finais do ano
passado os seus companheiros informaram-me da sua transferência para o Hospital
Magalhães Lemos. Como estávamos em tempo de restrição de visitas, em
consequência da Covid19, não pude visitá-lo nas semanas seguintes. Quando as
visitas foram retomadas, fomos informados da sua transferência para o Hospital
de Santo António, onde passei a visitá-lo. Logo que me apercebi do seu estado
fiquei indignado, por razões que não quero aqui expor. As informações clínicas
que fui obtendo não eram nada tranquilizadoras (tuberculose disseminada por
vários órgãos), até que se deu o desfecho que nos une, hoje, aqui.
Em Janeiro deste
ano, a revista “Escalada” publicou o último trabalho escrito do Maciel
Meu caro Maciel:
O Deus em que você acreditava certamente que o recebeu fraternalmente para lhe
dar o descanso que você merece.
Aqui, na Terra,
você não será esquecido. Se o merecermos, voltaremos a revê-lo na eternidade.
15.02.2022
Manuel Hipólito
Almeida dos Santos – Presidente da O.V.A.R – Obra Vicentina de Auxílio aos
Reclusos – Sociedade de S. Vicente de Paulo
(Contributos para um Caminho
Sinodal nos Estabelecimentos Prisionais)
1 - O nosso grande objetivo é partilhar,
em dinâmica sinodal, a vivência cristã dentro das prisões, no plano social,
jurídico e religioso, envolvendo reclusos, guardas prisionais e todo o corpo
técnico dos EPs, relacionando-nos com todos em espírito de fraternidade, dando
os passos recomendados pela doutrina social da Igreja e incluindo-os na formação
académica das instituições de ensino de inspiração cristã, introduzindo, nos
currículos dos cursos, lá ministrados, essa Doutrina Social da Igreja,
nomeadamente nas áreas da Economia (O Papa Francisco tem dito que esta economia
mata), Direito (O atual sistema penal é vingativo e punitivo, tendo o perdão e
a misericórdia de serem eixos centrais, havendo reclusos internados nos EPs há
mais de 30 anos), Educação (A educação deve basear-se na fraternidade e não na
competição) e Segurança Social (As instituições sociais devem ser de base
caritativa e não economicista).
O sistema prisional não pode ser arcaico,
medieval, retrógrado, cruel, violento, medonho e desumano. O Estado de Direito,
e o respeito pelos direitos humanos consagrados nos referenciais jurídicos
aplicados a quem se encontra privado de liberdade, não pode ficar à porta das
prisões. A abolição das prisões, ainda
vista como utopia, tem de ser um objetivo de grande alcance social.
2 – Como vicentinos, devemos ter
sempre presente as bem aventuranças, enfatizando a passagem evangélica “Vinde benditos de meu Pai,
possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque
tive fome, e destes-me de comer; (…) estive na prisão, e foste-me ver. Então os
justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos
de comer? (…) e quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E,
respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um
destes meus irmãos que mais sofrem, a mim o fizestes.”
O
caminho sinodal com os reclusos passa por, além de “visitar os presos”, termos
mais tempo para conviver com eles, indo além das celebrações eucarísticas,
encarando como prioridade o estabelecimento de pastorais prisionais diocesanas,
envolvendo toda a Igreja na humanização do sistema prisional, até à abolição
das prisões.
3
– Na nossa ação de voluntariado prisional temos tido a graça de conviver com os
reclusos em situação de particular vulnerabilidade (inimputáveis e com doença
mental), escutando os seus lamentos e esperança de serem objeto de tratamento,
recuperação e reinserção social em ambiente hospitalar e não em ambiente
prisional.
4
– A participação sinodal com os reclusos mais jovens tem-nos permitido
auscultar o seu anseio de comungar a dinâmica esperada das Jornadas Mundiais da
Juventude em 2023, implorando que o perdão e misericórdia que esperam da
sociedade se possa traduzir numa graça, recebendo um perdão de pena ou a
antecipação da liberdade condicional, que lhes permita participar nessas
jornadas em liberdade plena.
Porto,
2 de Maio de 2022 – Manuel Hipólito Almeida dos Santos
6 – Rotary International
Entrei para o movimento rotário em 1985, no Rotary Club do Porto-Oeste, sob o apadrinhamento do meu amigo Prof. Escultor Laureano Ribatua (consultor artístico da minha empresa Cerâmica do Douro e antigo colega consultor da empresa de cerâmica Jerónimo Pereira Campos na Meadela-Viana do Castelo), onde permaneci até 2012, tendo sido presidente durante o mandato 1997/1998 e desempenhado funções de diretor do protocolo, diretor das avenidas de serviços à comunidade e de serviços profissionais, entre outras.
O movimento rotário, agindo sob a instituição “Rotary
International”, caracteriza-se por ser formado por profissionais qualificados
dos mais variados sectores de atividade, fomentando o companheirismo entre os
seus membros e desenvolvendo ações de serviço à comunidade em cariz de
voluntariado. Durante os 17 anos como companheiro rotário tive ocasião de
vivenciar múltiplas ações onde a fraternidade e a ajuda ao próximo estiveram
presentes, apresentando várias palestras, sobre temas de áreas das quais tenho
experiência, e beneficiado do conhecimento adquirido com as palestras
frequentes de outros companheiros e entidades convidadas (muitas vezes mais de
um vez, por semana), no clube a que pertenci e noutros clubes (todos os rotários têm o direito de assistir às sessões
de qualquer outro clube rotário, em qualquer parte do mundo). Fui proponente e
padrinho de vários outros rotários e da primeira mulher rotária a frequentar
este clube onde chegou a ser presidente (Dra. Glória Felgueiras – diretora
fabril da Cerâmica do Douro).
Como base importante para a ação dos clubes rotários,
destaca-se a relevância que se dá ao facto de os clubes reunirem em locais
privilegiados das localidades onde estão sediados (ex: hotéis de gama alta), de
forma a que possam convidar personalidades relevantes, que estejam em posição
de contribuir para as ações rotárias, sem se sentirem melindradas por estarem
presentes em lugares menos destacados.
A presença frequente nas sessões, as reuniões em
lugares caros e as doações para as ações de serviço à comunidade, fazem com que
seja necessário pagar quotas mensais de valor significativo, o que afasta
muitas pessoas que, apesar de concordarem com o caráter meritório do trabalho
efetuado, não dispõem de condições económicas para pertencerem a um clube
rotário.
Como momentos altos salienta-se o envolvimento pessoal
na concessão de bolsas a alunos carenciados, que me permitiu, por exemplo, uma
visita de grande significado ao lar de acolhimento de jovens femininas da
ACISJF em Ramalde-Porto, assim como a participação permanente na campanha para
a abolição da poliomielite em todo o mundo, tendo-me sido concedido o galardão
“Companheiro Paul Harris” pelo contributo monetário que doei para esta causa -
mil dólares (Paul Harris foi o principal fundador de Rotary International).
Infelizmente, o movimento rotário tem vindo a perder
dinâmica e influência no progresso social da sociedade, o que contribuiu para a
desmotivação que levou à minha demissão do clube no final de 2012.
(Uma das Palestras
apresentadas no Rotary Clube do Porto-Oeste)
O Exemplo de S.
Martinho
Dois aspetos principais se associam a este santo:
O magusto que tem o seu ponto alto no dia de S. Martinho (11 de Novembro) e a
lenda a que se encontra ligado.
O magusto é definido por ser uma festa popular de celebração comunitária em que
pessoas unidas por laços afetivos se juntam comendo castanhas em espírito de
partilha e de fraternidade.
A lenda de S. Martinho transporta-nos para o
sublime ato de partilha e caridade demonstrado pelo santo, quando, num dia de
mau tempo, dividiu ao meio a sua capa com um pobre tiritando de frio que
encontrou no seu caminho, ato após o qual se deu o milagre da transformação do
frio e chuva desse dia numa temperatura estival de céu soalheiro e quente (O
chamado verão de S. Martinho).
Esta lenda colocou a cidade francesa de Tours,
onde o santo foi sepultado, num ponto alto de peregrinação religiosa em tempos
ainda recentes, a seguir a Roma e Jerusalém (S. Tiago de Compostela é posterior
a Tours como cidade de grandes peregrinações).
Portanto, a comemoração do S. Martinho tem como grandes valores de base os
sentimentos de partilha e fraternidade.
E aqui encontramos profunda identificação com os
valores que deviam nortear a nossa ação de cidadãos, sendo uma boa oportunidade
para refletirmos sobre o que podemos fazer com os necessitados que connosco se
cruzam no nosso caminho. Perguntou o santo ao mendigo se ele já tinha procurado
trabalho? Perguntou o santo ao mendigo se ele aplicava bem as esmolas que lhe davam?
Perguntou o santo ao mendigo se ele não tinha família ou amigos que o
ajudassem? Não. Perante alguém que precisava de ajuda partilhou aquilo que
possuía, sem perguntas que lhe dessem a desculpa de seguir em frente passando a
responsabilidade para o mendigo que estava naquela condição por sua própria
culpa.
E o que vemos nos dias de hoje? Não é
confrangedor assistirmos ao bradar constante das organizações que apoiam os
necessitados de que não estamos no bom caminho? Ainda no fim de ano passado a
organização ecuménica Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP) exortou a
sociedade a fomentar uma cultura de «aversão a desigualdades», denunciando
preconceitos como os que consideram os pobres preguiçosos, incompetentes,
dependentes, responsáveis pela sua situação, não credíveis e perigosos. É que a
maioria dos pobres trabalha, tem um emprego pesado, longo e mal pago, além dos
muitos que estão desempregados (há por ex: em Portugal 60.000 desempregados
licenciados) e sem apoios de qualquer natureza, já que na maioria dos casos as
próprias famílias são carenciadas. Neste encontro, que contou com a presença de
altos responsáveis do Estado foi perguntado pela presidente da CNJP Dra.
Manuela Silva: “Quem aceita estes preconceitos associados aos pobres consegue
viver, de forma diga, com 370 euros por mês?” (Indicador para Portugal do
limiar de pobreza).
A realidade, que ninguém contesta, de que há um
agravar do fosso entre abastados e necessitados tem de nos chocar.
Quando comemoramos o magusto de S. Martinho
olhemos como ele olhou para o caminho e certamente encontraremos muitos com
quem poderemos partilhar o que temos, com aqueles que pouco ou nada têm. É que
lembremo-nos que por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os
outros.
Ainda não há muito tempo um insigne cidadão da
cidade do Porto, Engº Francisco de Almeida e Sousa, assumia na sua coluna
periódica no Jornal de Notícias que, na dúvida, preferia dar a quem não precisa
do que não dar a quem precisa. Cá temos um bom seguidor de S. Martinho. Porque
não o imitamos?
Maio – 2009
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
(Rotary
Clube do Porto-Oeste)
Supressão ou Atenuação das Assimetrias e Desigualdades
É de saudar a iniciativa dos Governadores
Rotários dos Distritos 1960 e 1970 de colocar à discussão no movimento rotário
o tema em epígrafe. Em primeiro lugar, pela assunção de que o objetivo
subjacente ao tema tem pleno cabimento no ideal e na prática rotária, sem
melindres pela componente política associada. Por outro lado, pelo exemplo que
é dado aos clubes rotários da extensão que pode ter a sua ação, indo além da
faceta redutora do carácter caritativo e assistencial com que, muitas vezes, é
conotado o movimento rotário.
É bom recordar a definição de Rotary, aprovada
pelo Conselho Director de Rotary Internacional em 1976: “Rotary é uma
organização de líderes de negócios e profissionais, unidos no mundo inteiro,
que prestam serviços humanitários, fomentam um elevado padrão de ética em todas
as profissões e ajudam a estabelecer a paz e a boa vontade no mundo”. A
consecução deste objetivo tem sido feita, além de muitas outras ações, pelos
programas regulares de Rotary Internacional integrados nas actividades de
desenvolvimento humano, desenvolvimento comunitário, de proteção do meio
ambiente e de parceria no servir. Exemplos destas actividades são os programas
de combate à pobreza, ao uso de drogas e álcool, de alfabetização, de
erradicação da poliomielite, da saúde, da fome, da humanidade, etc...,
etc...,etc...
E como é que os rotários podem contribuir para a
paz e compreensão entre os povos, para o combate ao analfabetismo, à fome, à
pobreza e à doença, se não atuarem na supressão ou atenuação das assimetrias e
desigualdades?
Pois bem, companheiros: É como nos é proposto que
façamos. Analisando as causas e consequências e propondo as correções
necessárias. O aliciante do tema certamente fará com que muitos rotários
contribuam com as suas comunicações qualificadas, em várias vertentes.
Esta minha contribuição pretende, apenas, dar um
contributo em duas das vertentes do tema. Por um lado, na pertinência de os
rotários sobre ele se debruçarem, tal como atrás é exposto. Por outro lado,
enfatizando a educação para a cidadania como elemento chave para a resolução de
questões deste tipo.
Costumo dizer que a forma melhor de atacar um
problema é evitar que ele exista. E assim, a melhor forma de suprimir ou
atenuar as assimetrias e desigualdades sociais é evitar que elas existam.
Parece a verdade do “Sr. de la Palisse” mas, infelizmente, assistimos ao seu
esquecimento frequente, mesmo em responsáveis ao mais alto nível. Pegando em
exemplo recente na sociedade portuguesa, não é que para lidar com os atrasos
nos tribunais se vão atropelar garantias de defesa, criar mais juízes, mais
oficiais de diligências, mais tribunais e mais prisões? E porque é que não se
privilegia a diminuição da criminalidade com um esforço claro na educação para
a cidadania? E porque é que se diminui a carga de humanidades nos programas
curriculares do sistema educativo, substituindo-as pelas tecnologias? Mas,
afinal, o que é que queremos dos estudantes, dos nossos filhos e netos?
Melhores pessoas que agentes produtivos, ou melhores agentes produtivos que
pessoas?
Meus caros companheiros: Sem uma boa formação
humanista nunca conseguiremos ter uma boa prática de solidariedade, de
tolerância, de civismo, e de todo um conjunto de valores tão caros ao movimento
rotário. Sem uma boa formação humanista nunca conseguiremos suprimir ou atenuar
as assimetrias e desigualdades. E para quando a garantia concreta da
aplicabilidade do preceituado na Declaração Universal dos Direitos Humanos,
proclamada pelas Nações Unidas há mais de cinquenta anos? Os direitos à saúde,
à habitação, ao emprego, à educação, à liberdade, à dignidade, etc..., estão lá
expressos como inalienáveis. Quanto mais tempo temos de esperar pela sua
consagração prática? Como poderemos querer suprimir ou atenuar as desigualdades
sem garantir emprego, saúde, habitação, educação, etc... a todos os cidadãos? E
será que dirigentes formados sem uma componente humanista influente poderão, no
exercício das suas funções, ser sensíveis a todo este conjunto de valores? Ou
serão fortemente influenciados pelas correntes do individualismo, do salve-se
quem puder? Esquecem-se que se parte da sociedade for marginalizada terá
comportamentos anti-sociais, que se manifestam na delinquência, no vandalismo,
no oportunismo, na vadiagem, etc.., etc..., etc... . E depois queixam-se dos
assaltos, das falsas baixas médicas, das fraudes nos acessos aos benefícios
sociais, dos arrumadores, e de todo um rol de males que, infelizmente,
conhecemos. É certo que esses dirigentes formados sem uma componente humanista
influente são, eles próprios, maus exemplos para a sociedade, já que, no
exercício das suas funções, dão campo largo ao compadrio, à corrupção, ao
tráfico de interesses e influências, à criação de benesses e privilégios em
proveito próprio, à promoção de situações que só agravam as assimetrias e
desigualdades, ao arrepio do objetivo que agora nos move.
Como disse, tenho a convicção de que muitos
outros aspetos vão ser exaustivamente abordados por companheiros que,
certamente, vão corresponder ao apelo dos nossos governadores distritais. Quis,
apenas, deixar a minha contribuição de que a educação para a cidadania, que
passa pelo reforço da componente humanista no sistema educativo e na prática
social, contribuirá seguramente para o objetivo em discussão. Os remédios só
são necessários enquanto não conseguirmos erradicar as doenças. Mas os rotários
têm dado mostras do seu empenho na erradicação de doenças terríveis. Já
contribuíram para a erradicação da varíola. Estão a contribuir para a
erradicação da poliomielite.
Pois continuemos companheiros. É este o melhor
caminho.
(Comunicação
para o Fórum de Rotary - Distritos 1960 e 1970 – Porto 25/03/2000)
Manuel
Hipólito Almeida dos Santos
(Homenagem dos Clubes Rotários do Porto ao Engº
Almeida e Sousa)
- Companheiro presidente do Rotary Clube do Porto Oeste
- Sr. Engº
Almeida e Sousa e distinta esposa
- Companheiro
governador do Distrito Rotário 1970
- Ilustres
convidadas e convidados
-
Companheiros dos clubes rotários presentes
É com grande alegria, enorme respeito e muita emoção
que cumpro esta tarefa rotária de apresentar o grande cidadão que hoje nos dá o
privilégio de estar connosco, cidadão este que dá pelo nome de Engº Francisco
de Almeida e Sousa.
Saiba V.Exª, Sr. Engº, que os que aqui estamos somos
só uma amostra de quantos gostariam de cá estar o que só razões de
operacionalidade não permitiram.
Há já muitos anos que as colunas do Jornal de Notícias
me deram a conhecer V.Exª, Sr. Engº. E sei que, como eu, muitos outros o
conhecem, já que a sua dedicação às causas justas ultrapassou os limites dos círculos
pequenos. O respeito e a admiração pela sua personalidade não têm medida e,
acreditem todos os presentes, o seu exemplo tem influenciado a minha própria
postura na vida. A sua coluna semanal, desde há muitos anos, no Jornal de
Notícias, dá-nos o retrato daquilo que todos devíamos ser e não conseguimos,
mas que V.Exª. consegue, e é.
Meus caros amigos:
A relevância que hoje aqui damos a este insigne
cidadão tem de merecer da nossa parte uma reflexão profunda. O que fazemos no
Mundo? Que valores devem nortear a nossa fugaz passagem por esta vida terrena?
Que medida temos para os princípios, aceites por todas as religiões e
filosofias, de solidariedade, fraternidade, compreensão e paz? Que prática
fazemos dos nossos ideais rotários de justiça, verdade, boa vontade e de bem
que nos aponta a prova quádrupla?
O Sr. Engº Almeida e Sousa tem-nos dado estas
respostas não só com a teoria, nos seus artigos do JN, mas com a sua prática,
quer seja no Barredo ou no Lar N.Sra. do Livramento, quer seja no combate político,
na sua casa da Rua do Campo Alegre e em muitos outros lugares.
É que o Sr. Engº Almeida e Sousa além de profissional de grande relevo, cujos dados
biográficos o JN há dias divulgou, a ele se devendo uma parte significativa do
desenvolvimento industrial do Norte, nomeadamente no sector da fundição e nos
aproveitamentos hidro-elétricos (A própria Associação Industrial Portuense não
seria o que é hoje se não fosse o seu empenho), tem dedicado a sua vida a
responder, e de que maneira, a todas estas questões. Abre a porta da sua casa a
qualquer hora do dia ou da noite seja a quem for (os mais humildes sabem disso
e passam palavra), junta-se em fraternidade aos excluídos (Que o digam os
companheiros de Emaús na sua ceia de Natal na estação de S.Bento), recolhe os
deserdados e deserdadas da vida nas instituições por ele patrocinadas ou noutras
a quem vai pedir ajuda, arranja livros para as
suas crianças de forma
a que não seja por falta deles que não possam estudar. Clama contra a desigualdade da gestão pública
pelo poder político, não se cansando de mostrar os dados que provam que o Norte
merece ser melhor tratado. Bateu-se contra o encerramento de parte da linha
ferroviária do Douro e continua a dizer que esse erro tem de ser emendado,
continuando-se a linha até Espanha. Foi pioneiro na defesa da navegabilidade do
Douro. Continua a defender o incremento nas grandes infraestruturas do Norte,
nomeadamente do porto de Leixões e do aeroporto de Pedras Rubras. Etc...,
Etc..., Etc...
Poderia ficar aqui muito tempo a relatar o pouco que
sei do muito que tem feito este nosso concidadão. Vou pedir-lhes que me deixem
relatar-lhes dois exemplos. Um deles contou-o na palestra que fez no nosso
clube em Setembro de 1997. O outro faz parte dos que eu conheço.
Vamos ao primeiro.
No início dos anos oitenta foi o Sr. Engº Almeida e
Sousa presidente da Assembleia Municipal do Porto. Um dia de Inverno à noite,
saindo do Teatro Rivoli depois de uma
sessão oficial, viu dois mendigos abrigados num portal da Rua Rodrigues Sampaio
todos molhados e transidos de frio. Pensou o Engº Almeida e Sousa: Eu sou o
presidente da Assembleia Municipal e como a Câmara está ali tão perto porque é
que estes dois seres humanos não poderão estar lá abrigados? Não prejudicam
nada pois todo o espaço está vazio a esta hora. Assim pensou e disse aos
mendigos: venham comigo. Chegado à Câmara bateu à porta das traseiras e logo o
porteiro reconhecendo-o lhe abriu a porta. Entra o Sr.Engº seguido pelos
mendigos. Quando isto viu o porteiro logo expulsou todos não se importando que
o Sr.Engº lhe dissesse que era o presidente da Assembleia Municipal e que tinha
autoridade para entrar na Câmara com quem quisesse. Na reunião seguinte da
Assembleia Municipal o Sr. Engº perguntou: Mas afinal o presidente da
Assembleia Municipal que poder é que tem? Que prejuízo causariam os mendigos se
pudessem estar abrigados nas instalações da Câmara que estavam vazias àquela
hora?
Pergunto eu: Qual de nós seria capaz de tais atitudes?
O segundo exemplo: Noutro dia de inverno (o inverno
agrava sempre tudo) às três horas da madrugada batem à porta da casa do Sr.Engº.
Diz-lhe a esposa: Francisco não vás abrir que pode ser alguém com maus
pensamentos. Resposta do Sr.Engº: Mulher, se alguém me bate à porta a esta hora
é porque precisa de mim. E foi abrir. Era uma pobre mulher com a sua filha
pequenina a pedir ajuda para o seu drama familiar. Ela sabia que às três horas
da manhã o Sr. Engº lhe abriria a porta. Provavelmente a única porta da cidade
aonde encontraria ajuda aquela hora.
Pergunto eu: Qual de nós estaria disponível para
ajudar uma pobre desconhecida às três horas da manhã? A resposta a esta
pergunta foi dada pela pobre mãe: só o Sr. Engº Almeida e Sousa.
Têm sido estas atitudes no campo social, político,
profissional e económico, de desassombro, de verticalidade, de firmeza, de
cabeça levantada, que fazem do Sr.Engº Almeida e Sousa um homem admirável mas,
também, para quem exerce o poder , seja em que área for, um homem incómodo. E
alguns responsáveis já mo têm dito, havendo quem gostasse que o Sr. Engº não
entrasse nas áreas que lhes tocam. Mas ele entra porque tem uma integridade que
não depende dos interesses em jogo. Aplica a prova quádrupla em toda a
extensão. É verdade? É justo? É ético? É benéfico? Então vamos para a frente.
Se incomodar que incomode. Enquanto não me demonstrarem que não tenho razão não
me calam, diz-me ele muitas vezes.
Afonso Botelho no seu livro “Origem e Actualidade do
Civismo” reflete: “...A política atual dos povos europeus perdeu as categorias
de pensamento do saber político e a noção da cidade clássica. O civismo, que
ainda se pratica em alguns países, tem sua origem nas virtudes e hábitos do
povo, quantas vezes, contrariados pelo sistema de governo e, de um modo geral,
sem apoio nem estímulo deste.(...) Está fora de toda a realidade supor que se
obedece ao povo exclusivamente porque se cumpre a sua vontade manifestada no
sufrágio.(...) não se restabelece o civismo sem conhecer as grandes verdades
que um povo vai exprimindo, quer imediatamente, quer através dos seus maiores
pensadores, poetas, filósofos, músicos e artistas que pertencem, e na primeira
linha, a esse mesmo povo.”
O Sr. Engº Almeida e Sousa está nessa primeira linha
de combate por uma elevada postura cívica.
É assim que procede o Sr.Engº Almeida e Sousa.
No Sábado passado, o jornalista Miguel Sousa Tavares
escreveu, a respeito da atribuição do prémio Camões a sua mãe Sophia de Melo
Breyner Andresen: “A mim ela ensinou-me a olhar para as coisas e para as
pessoas, ensinou-me a olhar para o tempo, para a noite, para as manhãs.
Ensinou-me a abrir os olhos no mar, debaixo de água, para perceber a
consistência das rochas, das algas, da areia, de cada gota de água. Ensinou-me
a olhar longamente, eternamente, cada pedra da Piazza Navona em Roma, sentados
num café, escutando o silêncio da passagem do tempo. Fez-me mergulhador e
viajante, ensinou-me que só o olhar não mente e que todo o real é verdadeiro.”
Também V.Exª. Sr. Engº Almeida e Sousa nos tem
ensinado a olhar. Não só a olhar para o real, que é verdadeiro. Mas a olhar,
também, para os seus sonhos, que transformamos nos nossos sonhos. Em Junho do
ano passado o Sr. Engº usou a sua coluna no JN para nos transmitir um grande
sonho.
Ouçamos: (E passo a citar)
“Também a mim me perguntaram o que é que eu esperava
de o Porto vir a ser, em 2001, Capital da Cultura. Quem mo perguntou não foram
certamente os jornais, nem foi a televisão, que não tenho categoria para isso,
foram os meus garotos. De "motu proprio" também não acredito que
tivesse sido, mas levados pelo que terão lido nos jornais, ou visto na
televisão. A pergunta até ma fizeram correta: o que é que eu esperava?
A eles, por todas as razões, não nego resposta alguma,
por difícil que possa ser. Muito menos as borilo ou escamoteio, que isso nem
seria digno de mim nem eles mo aceitariam. É a verdade toda, tal como a penso.
Para que eles se habituem a só aceitar a verdade. Por isso, aqui vai a minha
verdade toda. Só que, vasta que teria que ser a resposta, já que grandes são os
meus anseios, tive que a reduzir ao que me pareceu essencial. Disse-lhes que
esperava muita coisa, muitas mais do que eles pensariam, mas que, de longe, o
que mais me agradaria acontecesse, pois dependeria deles próprios. Porque o que
mais quereria sem dúvida, mil vezes mais do que tudo o resto, é que a Cultura
os impregnasse a eles e aos outros como eles, que fossem eles e os seus colegas
os grandes beneficiários da Capital da Cultura que vem vir. Desculpem-me se não
exponho aqui desígnios mais altos, mas esta é a minha verdade e o meu grande
sonho.
Afinal o que quero, ou o que sonho? Que eles, depois
do evento, fiquem a saber mais, apreciem mais o que é belo, escalonem melhor os
valores da sua vida. Que gostem mais de saber, que tenham interesses, no
limite, que tudo os interesse, é o meu grande e maior sonho, se quiserem, a
minha maior utopia. Mas, que querem? Não desisto de que um dia venha a ser
assim. Por que não quanto antes? Só por eles, acredito que não sejam capazes e
nós devemos ter em conta que o não são. E não temos na nossa frente três anos
para lho ensinar? Se o não conseguirmos, pois a responsabilidade não será
deles, será nossa.
Que querem? Não quereria que, depois de 2001, nenhum
deles me voltasse a dizer de cima do ombro: "Não gosto da escola! Não
quero ir mais à escola! Quero ir mas é trabalhar!" Quererá? E isto com
incidência sobretudo na 5.ª ou 6.ª classes, 11, 12 ou 13 anos, quando quase não
sabem o que é a escola. E menos ainda sabem o que é saber.
Quanto a mim, desculpem-me opinião tão pessoal, é o
grande desafio da nossa Cultura. Poderemos promover as manifestações mais assombrosas,
grandes festas de Alta Cultura exigindo "smokings" e casacas, coisas
maravilhosas de arte ou mesmo de ciência, tudo, poderemos embasbacar os mais
altos estrangeiros que nos visitem, poderemos ir até ao fim seja no que for,
que, se não conseguirmos que estes garotos, os portugueses de amanhã, tenham
interesses, gostem de saber, apreciem o que é de apreciar, pois pobre Capital
da Cultura que nunca passará de uma balofa estátua de Nabucodonosor, corpo belo
e valioso, de ouro se for preciso, mas de pés de barro, sem consistência nem
futuro, pronto tudo a cair por terra, ao pó que tudo esconde.
É um pouco isto que, bem contrariado, aqui queria vir
dizer. Vamos gastar muito dinheiro com certeza, e não serei eu que o chorarei,
mas as migalhas, meus senhores, as migalhas pois que sirvam para modificar a
visão de futuro que poderemos dar já nem diria à maioria, mas a esta parte
significativa dos portugueses. Como? Pois essencialmente pensando neles.
Pequenos que são, pensemos neles.” (Acabei de citar)
Quem de nós, caros amigos, quer transformar em
realidade este sonho do Engº Almeida e Sousa?
Aprendamos a transformar os sonhos em realidade como
ele o faz.
Etienne de la Botie, poeta e filósofo francês do
século XVI, refere no seu livro Discurso Sobre a Servidão Voluntária: “Dignos
de dó são aqueles que vivem com a canga no pescoço. Devem ser desculpados e
perdoados, pois, nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém nunca
lha tendo mostrado, não sabem como é mau serem escravos. Há países em que o sol
aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados: depois de brilhar
durante seis meses seguidos, deixa-os ficar mergulhados na escuridão, nunca os
visitando durante meio ano; se os que nasceram durante essa longa noite nunca
tivessem ouvido falar do dia, seria de espantar que eles se habituassem à treva
em que nasceram e nunca desejassem a luz?”
Sigamos o exemplo do Sr. Engº Almeida e Sousa de
mostrar a luz a quem, por força do destino, vive nas trevas.
Olhem para o Sr. Engº Almeida e Sousa. Vejam a sua
grandeza, a sua verticalidade, a sua honradez, a sua fé e esperança em melhorar
o mundo. Esta postura dá-lhe um grande crédito de felicidade.
É que, meus caros amigos, a felicidade existe quando
gostamos dos outros e os outros gostam de nós. E no Sr. Engº Almeida e Sousa há
um capital de amor inesgotável.
Costumo dizer que não há maior prazer do que o prazer
de dar. E, também, digo que por pouco que se tenha deve chegar sempre para
ajudar os outros. Aprendi isto com o exemplo do Sr. Engº Almeida e Sousa. Já
uma vez tive ocasião de lhe manifestar a minha gratidão pessoalmente. E sabem
como? Já lá vão quase dez anos e tinha iniciado o meu sonho profissional de dar
continuidade à cerâmica tradicional de Porto-Gaia, criando a Cerâmica do Douro.
Pois sabem a quem ofereci a primeira peça produzida, uma jarra conventual SPM
(S.Pedro de Miragaia)? Pois ao Sr. Engº Almeida e Sousa: Fui à sua casa levá-la
numa noite de Outono, há quase dez anos, em que o frio ia chegando mas em que
era muito maior o calor do meu sentir de dar a quem o merece. Se outras razões
não houvesse, esta exemplifica como me sinto honrado e contente por estar aqui
neste momento.
Sr. Engº Almeida e Sousa:
Continue a incomodar-nos. Saiba que à segunda-feira no
Jornal de Notícias tem muitas pessoas que querem aprender com o que nos ensina.
Eu sei que nos vai dizer a seguir que não faz nada de
mais e que não merece aquilo que lhe estamos a fazer.
Não Sr. Engº. Nós é que não temos capacidade humana de
poder dar-lhe tudo o que V.Exª e as suas obras merecem.
Assim nós consigamos ser dignos de seguir o exemplo
que nos dá. Mas acredite que olhando para o Mundo e vendo o muito que V.Exª faz
para o melhorar e o pouco que conseguimos fazer, sinto um aperto no coração. Um
aperto de angústia e até de desilusão. Um aperto que lembra os compromissos que
temos para com os nossos irmãos da Terra.
Penso que posso dizer isto em nome de todos.
Continue a mostrar-nos os seus sonhos. Ensine-nos a
sonhar. Pois como dizia António Gedeão.
“Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
Entre as mãos de uma criança. “
Muito obrigado
17/06/99 – Manuel Hipólito Almeida dos Santos-Rotary Club do Porto-Oeste
7 – Fórum
Portucalense
Associação Cívica para o Desenvolvimento da
Região Norte
A
qualidade do trabalho do Fórum Portucalense, pode ser aduzida pela relevância
dada pelos órgãos de comunicação social, pelos debates e conferências
organizadas com oradores altamente credenciados sobre as temáticas abordadas,
pelas reuniões com os mais variados líderes políticos, incluindo presidentes da
república, etc… . Os livros publicados e
os artigos saídos na comunicação social sobre algumas das atividades da
associação dão uma amostra da excelência do trabalho efetuado.
Várias
personalidades políticas da região norte fizeram parte dos órgãos sociais do
Fórum Portucalense, destacando-se, além do Dr. António Vilar, líder destacado
da associação, o Engº Francisco de Almeida e Sousa (empresário, dirigente
associativo e deputado), o Prof. Vieira de Carvalho (presidente da Câmara
Municipal da Maia), o Engº Paulo Valada (presidente da Câmara Municipal do
Porto), o Engº Luís Braga da Cruz (ministro da Economia e presidente da CCRN),
o Prof. Eduardo Oliveira Fernandes (secretário de estado em dois governos),
além de muitas outras pessoas de elevado mérito. Foi uma grande fonte de
aquisição de conhecimentos para mim o ter partilhado o meu tempo com estas
entidades. Como exerci, simultaneamente, funções nesta associação e noutras entidades,
propus, e foi aceite, a concessão do galardão de profissional do ano ao Dr.
António Vilar pelo Rotary Clube do Porto-Oeste, assim como intervim nas
homenagens ao Engº Francisco de Almeida e Sousa pelos clubes rotários do Porto
e, mais tarde, por diversas entidades da cidade do Porto sob a liderança do
Fórum Portucalense (Câmara Municipal do Porto, Associação Comercial do Porto,
Associação Empresarial de Portugal, Governo Civil do Porto e Jornal de
Notícias). Alguns anos depois, por diligências do Fórum Portucalense, o
Presidente da República Cavaco Silva atribuiu a comenda da Ordem do Infante ao
Engº Francisco de Almeida e Sousa.
A
importância que o Fórum Portucalense adquiriu na sociedade teve implicações a
nível nacional e internacional, com variadas intervenções de altos responsáveis
portugueses e mundiais nas iniciativas da associação. Uma das entidades que
veiculou as suas posições políticas através do Fórum Portucalense foi a UNITA
(uma das organizações políticas de Angola), tendo sido várias as iniciativas de
cariz político e económico da UNITA em Portugal desencadeadas através do Fórum
Portucalense e de alguns dos seus dirigentes e associados. Como refiro no
capítulo deste livro sobre a Amnistia Internacional, o Fórum Portucalense
permitiu-me o contacto com a Dra Fátima Roque, dirigente da UNITA, no sentido
de levar a cabo a ação humanitária de libertar uma pessoa que estava retida no
território controlado pela organização.
Com o
enfraquecimento do processo da regionalização, assistiu-se também, a uma menor
dinâmica no Fórum Portucalense e a algum desânimo dos seus dirigentes, que se
traduziu na intenção de extinguir a associação. Mas tal intenção não teve
concretização, já que alguns associados presentes na última assembleia geral,
havida em 2016, decidiram, por proposta minha, apenas suspender a atividade,
mantendo a confiança no Dr. António Vilar como presidente, até que possam
surgir condições para a retoma das atividades.
8 –
Maçonaria
Decorria o ano de 1987 quando fui sondado por um amigo (não digo nomes neste capítulo pois na maçonaria, como em muita outras associações, nunca se deve divulgar a identificação de outros associados. O próprio, se assim o entender, assume publicamente a pertença) sobre se gostaria de entrar para uma obediência maçónica. Como, na altura, eu desempenhava as funções de presidente da secção portuguesa da Amnistia Internacional (A.I.), como voluntário (na A.I. o exercício de cargos dirigentes não é remunerado), agradeci o convite mas referi a impossibilidade da sua aceitação, pois é recomendado que o exercício de funções dirigentes na AI não seja feito por pessoas que pertençam ou exerçam cargos relevantes em instituições que possam comprometer a imagem de isenção, independência e imparcialidade que é apanágio da A.I.
Em
2001, já não exercendo funções dirigentes na A.I., fui novamente contactado
para ser iniciado na obediência maçónica Grande Loja Regular de Portugal (GLRP),
num das lojas do Porto. Aceitei o convite, fui iniciado como aprendiz nesse ano,
passei a companheiro em 2002 e a mestre maçon em 2003. Foi uma experiência
agradável e tive grandes exemplos de amizade, companheirismo e solidariedade.
Vi, de forma concreta, a concretização da divisa maçónica de liberdade,
igualdade e fraternidade, independentemente das diferenças de opinião e
comportamento de todos os seres humanos. Participei em todas as sessões
quinzenais da loja do Porto e em várias reuniões nacionais da Grande Loja em
Lisboa. Como esta obediência tinha resultado de uma cisão com outra obediência
nacional, estava-se, ainda, em processo de consolidação com pontos de vista
muito diferenciados. Em consequência disto, poucos anos após, assistiu-se a uma
saída significativa de maçons da GLRP para outras obediências ou para
“adormecimento” (termo usado para quem deixa de ser maçom ativo), na qual eu me
incluí.
Em 2009
fui, novamente, convidado para ingressar numa das lojas do Grande Oriente
Lusitano (GOL), a que acedi e onde passei a ter participação ativa. A exemplo
do que já tinha acontecido na GLRP, tenho testemunhado a vivência dos grandes
referenciais humanistas que norteiam o GOL, quer nas sessões rituais de loja,
quer na vida profana. O enriquecimento humano que se adquire nas atividades que
se desenvolvem é de uma enorme valia, fruto das relações pessoais fraternas e,
também, das comunicações de vários irmãos em quase todas as sessões, versando,
fundamentalmente, a trilogia da divisa maçónica: liberdade, igualdade e
fraternidade. Nessas comunicações abordam-se temáticas sempre no sentido do
aperfeiçoamento pessoal e da comunidade. Tenho desempenhado várias funções na
orgânica da loja, beneficiando da filosofia de um grande espírito de tolerância
para com os erros e omissões que vou cometendo.
Um dos
aspetos que tenho aprofundado trata-se da compatibilização da pertença
simultânea à maçonaria e a outras entidades, nomeadamente confissões
religiosas, tendo em conta o passado conflituoso entre muitas destas entidades.
Desde há muitos anos, ainda antes de entrar para a maçonaria, entendo que a
liberdade de associação não deve estar condicionada à pertença a outras
associações. A experiência que tenho adquirido confirma, até, o contrário.
Quanto mais rica é a nossa experiência mais úteis podemos ser aos outros, desde
que os objetivos não sejam contraditórios (por exemplo, não se pode ser racista
e anti-racista ao mesmo tempo). Abaixo encontra-se uma das comunicações que fiz
em sessão de loja, abordando o tema, que alguns teimam em que seja controverso,
da pertença simultânea à Maçonaria e à Igreja Católica neste início do século
XXI, tendo em conta alguma animosidade existente em tempos passados e que, por
ignorância, alguns teimam em manter no presente.
Não
desenvolvo em pormenor muito do que se tem passado nas sessões em que tenho
participado, já que o ritual maçónico estipula que não se deve trazer para o
exterior o que se passa nas sessões internas das lojas (isto não é nada de novo
na vida das instituições, pois a confidencialidade das relações pessoais e
institucionais é praticada de forma alargada na vida em sociedade). Tenho
participado em muitas atividades de âmbito nacional e internacional, em que,
nalgumas delas, é permitida a presença de pessoas que não fazem parte da
maçonaria, incluindo personalidades de outras obediências maçónicas e de
variadas confissões religiosas, incluindo dignatários da Igreja Católica.
Também
faço parte de uma associação de cariz maçónico (Clube Porto 50), com
ramificações internacionais, onde convivem maçons de várias obediências da
maçonaria, cujas reuniões mensais se destinam a aperfeiçoar o conhecimento das
múltiplas questões do mundo em que vivemos, com a apresentação e aprofundamento
de um tema, em cada uma das reuniões, por um especialista nessa área.
Uma
questão que tem vindo a adquirir relevância crescente nos últimos anos
prende-se com a obrigatoriedade, nalgumas obediências, de as lojas serem
constituídas, apenas, por pessoas do mesmo sexo. Sobre esta questão defendo o
princípio da igualdade entre todas as pessoas, pelo que não concordo com a
proibição de as lojas poderem ter pessoas de sexos diferentes, pensando que, a
curto prazo, tal limitação se extinguirá. Abaixo encontra-se uma comunicação
pública que proferi sobre o assunto.
(Prancha
Apresentada numa Sessão da R:.L:. Estrela do Norte)
Contributo para as Relações entre a Maçonaria e a Igreja
Católica
Em tempo de aproximação ao equinócio de outono, passando-se a assistir, durante os próximos seis meses, no hemisfério norte, à predominância da duração da noite sobre o dia, é oportuno acrescentar luz a um tema que alguns teimam em manter em conflito, agarrados a comportamentos de séculos e ignorando os caminhos que se têm vindo a abrir, acabando definitivamente com a cegueira que impede de ver que a paz e a tolerância são desejos maiores da humanidade.
De tempos a tempos, vêm a público tomadas de
posição relativamente à pertença simultânea à Maçonaria e à Igreja Católica,
quer defendendo à liberdade de participação em ambas as instituições, quer
considerando a impossibilidade de tal participação simultânea.
Sou de opinião que esta questão tem, atualmente,
um enquadramento claro e uma leitura que deve nortear o relacionamento entre as
duas instituições. Tal assenta nos referenciais jurídicos em vigor e em
orientações políticas dos seus máximos dirigentes.
Para a Maçonaria, as Constituições de Anderson de
1723, são claras na definição da postura que os maçons devem ter para com as
religiões.
“I – O que se refere a Deus e à Religião
O maçon está obrigado, por vocação, a praticar a
moral; e se compreender seus deveres, nunca se converterá num ateu
estúpido nem num libertino irreligioso. Apesar de nos tempos antigos os maçons
estarem obrigados a praticar a religião que
se observava nos países em que habitavam, hoje crê-se mais conveniente não
lhes impor outra religião senão aquela que todos os homens aceitam e dar-lhes
completa liberdade com referência às suas opiniões particulares. Esta
religião consiste em serem homens bons e leais, quer dizer, homens
honrados e justos, seja qual for a diferença de nome ou de convicções.
Deste modo a Maçonaria se converterá num centro de união e é o
meio de estabelecer relações amistosas entre pessoas que, fora dela, teriam
permanecido separadas (ou não se conheceriam). (…)”
Também, a Constituição do Grande Oriente Lusitano
– Maçonaria Portuguesa expressa:
“Título I – Da Maçonaria e Seus Princípios
Artigo 1º
A Maçonaria é uma Ordem universal, filosófica e
progressista, fundada na tradição iniciática, obedecendo aos princípios da
Fraternidade e da Tolerância e constituindo uma aliança de homens livres e de
bons costumes, de todas as raças, nacionalidades e crenças.
Artigo 2º
A forma da Maçonaria é ritualista.
Artigo 3º
A maçonaria tem por fim a aperfeiçoamento da
Humanidade através da elevação moral e espiritual do indivíduo. Não aceita
dogmas e combate todas as formas de opressão sobre o homem, luta contra o
terror, a miséria, o sectarismo e a ignorância, combate a corrupção e enaltece
o mérito.
Artigo 4º
A Maçonaria procura a conciliação dos conflitos,
unindo os homens na prática de uma Moral Universal, no respeito da
personalidade de cada um e condena as regalias injustas.
Artigo 5º
A Maçonaria adota como divisa a Liberdade, a
Igualdade e a Fraternidade e como lema a Justiça, a Verdade, a Honra e o
Progresso.
Artigo 6º
A Maçonaria considera o Trabalho um direito e um
dever essencial do Homem, honrando igualmente o trabalho intelectual e o
trabalho manual.
Artigo 7º
Os Maçons reconhecem-se como irmãos e obrigam-se
a uma permanente ajuda e assistência mútua. Exige-se-lhes o máximo altruísmo, o
sacrifício de quaisquer interesses ao bem-estar dos seus semelhantes e a
propaganda pelo exemplo, sob reserva da observância do sigilo maçónico.
Artigo 8º
Os Maçons, recusando-se a assumir nessa qualidade
quaisquer posições de natureza partidária, integram-se no espírito das
Constituições de Anderson e respeitam as leis e as autoridades legítimas do
país onde vivem e livremente se reúnem.” (…)
Destes dois referenciais ressalta, com clareza o
propósito da Maçonaria e a sua aceitação de todas as crenças e não
crenças. A Maçonaria assenta em princípios humanitários, filosóficos e de
moral. Tem como base a tolerância e releva a justiça e o espírito de
entreajuda, auxiliando os necessitados e promovendo o amor ao próximo. A Maçonaria
dá liberdade a todos os seus membros pela escolha e a responsabilidade da
expressão de opiniões religiosas e pratica um respeito absoluto para todas as
religiões e crenças, ou não crenças. Mantém-se equidistante das diferentes
correntes políticas e exorta os seus membros para o cumprimento dos deveres de
lealdade cívica. Algumas obediências maçónicas estipulam, como princípio, a
crença numa entidade divina. Outras obediências admitem todas as posições
perante a crença, ou não, em qualquer religião.
Ao longo de sua história, e até tempos recentes,
a Igreja Católica condenou e desaconselhou aos seus fiéis a pertença a
associações que se declaravam ateias e contra a religião, ou que poderiam
colocar em perigo a fé. Entre essas associações encontrava-se a Maçonaria,
apesar de as Constituições de Anderson, atrás referidas, nada terem de negativo
perante a questão religiosa.
A Igreja Católica manteve, até ao Concílio
Vaticano II, esta posição de afastamento de outras crenças e instituições de
natureza espiritual ou ateia, tendo tais posições começado a ser matizadas pelo
Papa João XXIII e no Concílio Vaticano II. Essas posições tinham expressão
concreta no Código de Direito Canónico de
1917, cujo cânone 2335 postulava: «Quem se inscreve na seita maçónica
ou noutras associações do mesmo género que tramam contra a Igreja ou as
legítimas autoridades civis, incorre “ipso facto” na excomunhão reservada
“simpliciter” à Santa Sé.»
A dinâmica do Concílio Vaticano II teve tradução
na abertura ao diálogo ecuménico e com instituições até aí proscritas, tendo
o Código de Direito Canónico promulgado pelo Papa João Paulo II em 25 de
janeiro de 1983, estatuído no cânone 1374, que: "Quem ingressa
numa associação que maquina contra a Igreja deve ser castigado com uma pena
justa; quem promove ou dirige essa associação deve ser castigado com
interdito".
Esta nova redação apresenta duas novidades em
relação ao Código de 1917: a pena não é especificamente definida e não é
mencionada expressamente a Maçonaria como associação que conspire contra a
Igreja. Esta retirada da referência à Maçonaria do referencial jurídico
máximo da Igreja Católica tem de ser lida como reconhecimento específico de que
não há justificação para a sua menção.
Logo, para que seja aplicada uma pena justa (ex:
excomunhão era uma das penas aplicáveis pelo código anterior a 1983) é preciso
que se prove que uma pessoa ou associação maquina contra a Igreja. Depois de
1983 não se conhece a aplicação de qualquer pena a maçons, ao abrigo deste
cânone.
Esta nova postura da Igreja Católica, consagrada
no seu máximo referencial jurídico que é o Código de Direito Canónico,
independentemente de posições pessoais e de cartas apostólicas avulsas que
valem como opinião (ex: Declaração sobre a Maçonaria do, então, cardeal Ratzinger
– futuro Papa Bento XVI) e não como norma jurídica que se sobreponha ao Código,
tem tido expressão concreta num sem número de ações e manifestações que
constroem este novo rumo. É certo que, também, continuam a ver-se posições,
cada vez mais isoladas, de quem quer continuar agarrado ao passado e que, na
verdade, ainda vão destabilizando a marcha do progresso. Mas esta marcha tem
contado com um apreciável apoio que denota o caminho do futuro.
Entre as ações e posições públicas, podemos
destacar algumas realizadas na região do Porto, onde resido, nomeadamente as
iniciativas apoiadas pela Universidade Católica do Porto, onde se tem destacado
como personalidade de relevo o Pe. Arnaldo Pinho, assim como as declarações de
bispos, cardeais e outras figuras eminentes da Igreja Católica, sendo o Papa
Francisco um grande paladino da abertura da Igreja a toda a sociedade.
Das iniciativas da Universidade Católica do Porto
teve particular destaque a semana de estudos organizada pela sua Faculdade de
Teologia, em Fevereiro de 1994, onde esteve em análise o tema “Maçonaria,
Igreja e Liberalismo”. Nela participaram vários académicos, leigos e
sacerdotes, tendo o Bispo do Porto da altura, D. Júlio Tavares Rebimbas,
expressado:
(…)
“Não estamos inocentemente aqui a abordar
problemas fáceis de Maçonaria, Igreja e Liberalismo, cuja vastidão e
complexidade é evidente e com tempos diversos de expressão e altos e baixos de
relação. Mas somos a mesma humanidade, as mesmas pessoas, a mesma paz e a mesma
guerra. Estamos civilizadamente à procura do que nos une, desfazendo
principalmente aquelas coisas que costumamos engendrar, e que são quase de
relações humanas, e temos tendências de dogmatizar. O que cria paredes difíceis
de vencer, obstáculos multiplicadores de inviabilidades. Não estamos aqui para
converter maçons, nem para laicizar cristãos, nem para aclarar tudo que é
problemática séria do liberalismo. Mas, também, não estamos aqui para quatro
dias de inutilidades, mais ou menos brilhantes. Estamos aqui nos caminhos da procura
da verdade que todos têm. Porque a verdade total será noutra instância, é
noutra onda e mesmo assim leva muito tempo para chegar lá.”
Um outro interveniente nesta semana de estudos,
Pedro Alvarez Lázaro, Professor da Universidade Pontifícia de Comillas,
constatou: “Poucas instituições despertaram tanta curiosidade ao longo
do tempo como a ordem francmasónica, mas, por sua vez, poucas têm sido tão
historiograficamente maltratadas.” Por sua vez, o Pe. Arnaldo Pinho,
na altura director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica do Porto,
na introdução ao livro “Igreja e Maçonaria – Textos para um diálogo” (que
dedica “À memória do Prof. Embaixador José Augusto Seabra, saudoso amigo,
católico e mação” e “Ao prezado amigo, Dr. António Arnaut, ex-Grão Mestre da
Maçonaria e homem de boa vontade”), refere: “(…) O choque da nova
mundividência para a fé foi indiscutível. Perdidos os absolutos religiosos como
fundamento, segundo a palavra de Gusdorf, a subjetividade avançou para novos
campos e a ciência, em grande parte no século XIX, foi sinónimo do triunfo da
razão, contra a tutela da Revelação, ou como se dizia dos “dogmas”. O
enfrentamento entre a Apologética e o Racionalismo, que hoje aparecem como
alternativas abstratas, gerou polémicas gloriosas, mas vistas hoje,
simplesmente confrangedoras. (…) A sabedoria parece pois ter tomado o seu
lugar. Faltaria ainda, (…), a fraternidade, reveladora da unidade na
totalidade. Sem irmos até ao fim, seria muito esperar da simples inteligência,
aberta à revisão do passado, que se deixasse de vez de brandir palavras
últimas? – Porto Março de 2012”
Dos muitos outros eventos sobre as relações entre
a Maçonaria e a Igreja Católica, pode-se referir o Colóquio
Internacional – Gnose e Gnosticismo – Genealogias, Emergências», Porto, 14
e 15 de Novembro de 2008, realizado no Ateneu Comercial do Porto, que teve como
promotores o Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) o Centro de Estudos do
Pensamento Português da Universidade Católica do Porto, o Grande Oriente Lusitano
– Maçonaria Portuguesa (GOL) e o Instituto Onvestigación sobre Liberalismo
Krausismo y Masonería, da Universidade Pontifícia de Comillas – Madrid, onde
personalidades destacadas da Maçonaria e da Igreja Católica intervieram
reforçando pontes de aproximação em construção.
Também, em 25 de Abril de 2018, a loja Estrela do
Norte do Grande Oriente Lusitano, promoveu uma conferência, no Porto,
subordinada ao título “ A Fraternidade na
Europa das Religiões do séc XXI” em que, além do Sheik David
Munir, Imã da Mesquita Central de Lisboa, e do Rabino Elisha Salas, Rabino da Comunidade de Belmonte, participou, também, o Padre Jorge Duarte, Pároco de Mafamude, Assistente Religioso
do Centro de Produção do Porto da Rádio Renascença e Director do Secretariado
Diocesano das Comunicações Sociais, tendo ficado patente a inexistência de
quaisquer obstáculos a colaboração fraterna das organizações presentes.
Uma outra entidade do topo da hierarquia da
Igreja Católica, o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura no Vaticano,
manifestou-se nos seguintes termos (In "Il Sole 24 Ore",
14.2.2016): “Igreja e maçonaria: O diálogo para além da
incompatibilidade - «Caros irmãos
maçónicos» - (…) Deve-se, além disso, superar a atitude de certos ambientes
integralistas católicos que – para atingirem alguns expoentes inclusive
hierárquicos da Igreja que a eles desagradam – recorrem à arma da acusação
apodítica de uma sua pertença maçónica. Em conclusão, como escreviam já os
bispos da Alemanha, é preciso ir além da hostilidade, ultrajes, preconceitos
recíprocos, porque em relação aos séculos passados melhoraram e mudaram o tom,
o nível e o modo de manifestar as diferenças que ainda continuam a existir
claramente.”
Que há diferenças entre a Igreja Católica e a
maçonaria ninguém contesta. Ainda bem que as há, senão não se tratariam de duas
entidades distintas. Aliás, mesmo dentro da Igreja Católica há estruturas com tal diversidade filosófica e
comportamental que os certos ambientes integristas católicos, se
calhar, olham de lado para aqueles que não são os que onde estão
inseridos. Basta considerar os
exemplos da Opus Dei, do Movimento “Nós Somos Igreja”, da Sociedade de S.
Vicente de Paulo, da Fraternidade S.Pio X, da Companhia de Jesus (Jesuítas),
etc…, para vermos a heterogeneidade reinante no seio da Igreja Católica.
Mas estas diferenças não têm
sido obstáculo ao aprofundamento das pontes entre todos. Neste sentido, merece
particular realce a iniciativa “Átrio dos
Gentios” fórum de iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura do Vaticano, iniciado em 2012, que promove o diálogo entre
cristãos e não-crentes em áreas de interesse comum a ambos os grupos. Foi
idealizado pelo Papa Bento XVI com o objetivo de estreitar os espaços entre
pessoas de diferentes culturas e promover, através do diálogo, experiências
conjuntas no intuito de responder às questões do tempo presente.
O atual Papa Francisco tem tido, desde que
assumiu as funções de responsável máximo da Igreja Católica, posições muito
claras de abertura a todas as instituições e pessoas religiosas e não
religiosas. Foi muito notada a sua ênfase do sentimento popular de que mais
vale ser ateu do que católico hipócrita, declarada na missa celebrada a 23
de fevereiro de 2017, em Santa Marta.
Esta abertura do Papa Francisco motivou que
o Sereníssimo Grande Mestre da Grande Loja da Itália U.m.s.o.i. (Unione
Massonica Stretta Osservanza Iniziatica), Gian Franco Pilloni, lhe tenha
dirigido uma carta em Outubro de 2013 em que declara: (…) “Com extrema comoção e infinita alegria, me dirijo
a Vossa Santidade, para fazer um humilde pedido com o fim de que se trabalhe
para pôr fim às divisões que atingem as relações entre a Igreja Católica e a
Maçonaria, com a esperança de que finalmente possa reinar a justa serenidade
entre as duas partes, colocando fim às divergências que ainda hoje elevam um
muro entre as relações.(...) Não somos um componente adversário da Igreja
Católica por Vós dignamente representada, mas antes, pelo contrário, as nossas
estradas são paralelas, de facto, e pensamos como Vós quanto à totalidade dos
problemas que afligem a sociedade contemporânea. Como Vós, nós trabalhamos para
um mundo de paz e pelo respeito ao ser humano sem distinção alguma e pelo
respeito absoluto por todas as religiões”. (…)
Que a Maçonaria e a Igreja Católica têm um
passado de graves erros é um facto insofismável. Basta lembrar o
anticlericalismo e os ataques à Igreja Católica por parte da Maçonaria, nos
finais do século XIX e início do século XX, assim como o passado de passividade
do Vaticano, e da maioria da hierarquia da Igreja Católica, perante certos
regimes ditatoriais, nomeadamente a operação Condor em
países da América latina (Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai,
Brasil), para não falar da tenebrosa Inquisição e do papel dúbio na II guerra
mundial.
Que há maçons e crentes que se comportam ao
arrepio dos valores das instituições a que pertencem é um facto indesmentível,
mas tais comportamentos não podem conotar as instituições no seu todo nem os
seus restantes membros. O perdão, a misericórdia e a redenção, pilares da
Igreja Católica, assim como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que são
a divisa da Maçonaria, têm de continuar a ser a via para se lidar com as
imperfeições do ser humano.
Em conclusão: o direito à
opinião é livre e deve ser, salutarmente, respeitado. As opiniões que continuam
a defender a impossibilidade de pertença simultânea à Maçonaria e à Igreja
Católica são, a meu ver, uma visão desatualizada do atual quadro
normativo-jurídico e da dinâmica em curso visando a eliminação dos
constrangimentos à liberdade de associação e pertença às mais variadas
instituições. Mas são opiniões que têm de ser confrontadas com a nova realidade
e com os novos ventos da história.
É cada vez maior o número de
crentes que ingressam nos quadros da Maçonaria, assim como se nota um
considerável número de não crentes que se convertem em crentes, sem se
desvincularem das entidades donde provêm, pois não encontram incompatibilidades
mas, sim, complementaridades, já que, em consciência, assim o entendem. Antero
de Quental, maçon e de educação católica, no seu poema “A Ideia” proclama:
(…) A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência; Só se revela aos homens e
às nações; No céu incorruptível da Consciência!”
Desejamos (Deus queira) que
todas as confissões religiosas, de que a Igreja Católica é parte, e todas as
obediências maçónicas continuem, em consciência, a trilhar a via que leva à
convivência pacífica e ao respeito mútuo, sem exclusões nem excomunhões.
Que a luz triunfe sobre as
trevas!
Setembro – 2018
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Igualdade
de Género
A Igualdade de Género no Rito Moderno /Rito Francês
A igualdade de género tem sido objeto de alargado
aprofundamento, podendo ter como definição as linhas gerais já consensualizadas
no seio da comunidade internacional, como colocando os géneros humanos, homens
e mulheres, em planos do mesmo nível, eliminando as diferentes formas de
desigualdade desenvolvidas, desde a antiguidade, de patamares com flutuações
diversas ao longo do tempo. Trata-se, agora, de estabelecer uma verdadeira
equivalência social estendida a todo o espectro da identidade dos seres
humanos, incluindo a identidade sexual. Deve-se ter em conta que a identidade
natural (sexo), a orientação sexual e a identidade de género são conceitos
diferentes.
Maria Luísa Ribeiro Ferreira, professora
catedrática de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem
estado ligada às questões da Filosofia do Género, constatando que o termo género é frequentemente utilizado
como uma categoria de análise nas filosofias feministas. Trata-se de um
conceito que começou por ser perspetivado na sua oposição ao sexo. Este
tinha a ver com o biológico e, até meados do século XX, consideravam-se
distintamente dois sexos no universo humano – mulheres e homens. Hoje, as
mutações sociais e culturais, bem como o desenvolvimento da biologia e da
medicina, introduziram alterações nessa fronteira, surgindo novas categorias
que a abalaram – os homossexuais, as lésbicas, os transsexuais, entraram no
discurso quotidiano e no universo científico, originando uma imensidade de
escritos relativos às suas diferenças, à sua situação e aos seus direitos.
Na visão dicotómica sexo/género, dominante nos
primeiros anos dos Women Studies, o
termo sexo aplicava-se ao biológico enquanto o género dizia respeito a uma
construção intelectual.
O contributo que nesta prancha apresento é,
apenas, uma achega para a discussão em curso na sociedade, não esgotando todos
os casos e situações em que verifica a desigualdade de género.
A igualdade de género encontra-se consagrada em
vários referenciais de direitos humanos, como sejam a Declaração Universal dos
Direitos Humanos (Artº 1º - Todos os seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos), a Constituição da República Portuguesa (Artº 13º - Todos
os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei), assim
como a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação da Mulher de 1979 (Artº 10º - Os Estados Partes tomam todas as
medidas apropriadas (…) com o fim de (…) assegurar: (…) a eliminação de
qualquer conceção estereotipada dos papéis dos homens e das mulheres a todos os
níveis e em todas as formas de ensino (…), em particular revendo os livros e
programas escolares (…).
No Grande Oriente Lusitano, a sua Constituição
estatui no seu artigo 1º que “A Maçonaria
é uma Ordem universal, filosófica e progressiva, fundada na Tradição
iniciática, obedecendo aos princípios de Fraternidade e da Tolerância,
constituindo uma aliança de homens livres e de bons costumes, de todas as
raças, nacionalidades e crenças. Todos os restantes artigos estão
redigidos na mesma terminologia masculina, tendo-se de interpretar tal redação
como referindo-se a seres humanos.
A iniciação de mulheres no Grande Oriente
Lusitano, com base na linha dos referenciais de direitos humanos referidos, é
uma questão de urgente clarificação. Tal clarificação já foi vivenciada pelo
Rotary International, que, até 1987, apenas permitia que homens fossem membros
dos Rotary Clubs. Esta alteração, permitindo a entrada de mulheres, deveu-se a
uma decisão do Supremo Tribunal Federal dos USA no sentido de que os clubes rotários
não podiam impedir a admissão de mulheres desde que estas cumprissem os mesmos
requisitos de admissão para a admissão de homens. Atualmente, a maioria
esmagadora dos clubes rotários incluem mulheres no seu quadro social, cabendo
aos sócios dos clubes a decisão de admissão de qualquer sócio mas não podendo
ser critério de não admissão o facto de se tratar de uma mulher.
A integração das mulheres em todas as esferas de
ação no mundo atual é uma questão consensual, restando, caso a caso, aceitar a
constituição de organizações de composição mista ou de estruturas separadas de
homens e mulheres sob a égide da mesma instituição. Como exemplos, entre
muitos, de organizações de composição mista podem-se citar as ONG´s de direitos
humanos, de defesa do consumidor e de solidariedade social, tendo estruturas
separadas de homens e mulheres, por exemplo, os clubes desportivos, que têm
equipas distintas de cada sexo. O que já é assumido, por todas as organizações,
quer sejam mistas, quer sejam de estruturas separadas, é a igualdade na
dignidade de homens e mulheres.
A questão da igualdade de género tem tido, nos
últimos anos, uma grande dimensão em áreas diversas, sem colocar em causa o
princípio da igualdade na dignidade, quer seja na discriminação na admissão
para o exercício de determinadas funções, nas carreiras profissionais e sua
remuneração, na consideração da maternidade como fator de penalização das
mulheres em determinadas circunstâncias e, como atrás é considerado exemplo de
desigualdade, a possibilidade de constituição de equipas mistas nas competições
desportivas.
Uma das formas que tem vindo a ser implementada
para contornar a desigualdade no acesso de mulheres ao exercício de
determinadas funções é a obrigatoriedade de quotas no preenchimento das listas estabelecidas
para o acesso. Trata-se duma medida que tem aumentado a percentagem de mulheres
nessas funções e nos lugares de topo da hierarquia. Na minha opinião é uma
medida prática mas difícil de sustentar no plano dos princípios, já que o
principal critério para o acesso a determinadas funções deve ser a competência
e não o ser-se homem ou mulher. A aplicar-se tal método a todo o universo de
funções e actividades, as áreas onde as mulheres têm presença determinante
(professorado, estudantes do ensino superior, enfermagem, etc…) poderão,
também, ser questionadas pelos homens reivindicando o estabelecimento de
quotas. Urge aprofundar o estudo da validade deste modelo de quotas como método
de promoção da igualdade de género.
Tendo em conta a evolução histórica verificada,
que levou à consagração jurídica da igualdade de género, sem reservas ou
discriminações, importa questionar a pertinência, na atualidade, de
referenciais jurídicos separados para homens e mulheres, já que a sua
existência pode ser considerada como legitimação da desigualdade de género. Mas
tem de se ter em consideração a caracterização de situações particulares, de
que são portadores alguns seres humanos, que exigem proteção específica, como,
por exemplo, a gravidez nas mulheres, a especial vulnerabilidade e imaturidade
das crianças ou a situação das pessoas portadoras de deficiência,
independentemente de serem homens ou mulheres.
Já à questão da remuneração diferenciada para
homens e mulheres, deve-se aplicar o princípio, há muito aceite, de que para
trabalho igual salário igual, pelo que nada há que justifique carreiras
separadas para o exercício das mesmas funções.
Relativamente ao facto da maternidade poder
constituir fator de penalização para as mulheres, trata-se duma grave assunção,
já que a maternidade tem de ser vista como um nobre contributo para a sociedade
e, como tal, deve ser merecedora de grande consideração, tendo, ao invés, de
ser objeto de apoios que permitam que as mulheres não sofram qualquer tipo de
prejuízo pela sua decisão de enveredarem pela maternidade. Aqui, ainda é
necessário corrigir situações penalizantes, no pré e no pós parto, na afetação
da carreira profissional pela ausência durante a maternidade, na compensação
pela maior solicitação dos bebés durante os primeiros tempos de vida,
etc…
Questão diferente é a da existência de equipas
mistas nas competições desportivas, em que está vedada a pertença de homens nas
equipas femininas e de mulheres nas equipas masculinas. Aplicando os
referenciais jurídicos atrás mencionados, tais impedimentos poderão vir a ter o
mesmo tratamento entendido pelo Supremo Tribunal Federal dos USA na admissão de
mulheres em Rotary. As associações são livres na definição dos critérios para
admissão dos seus associados e praticantes das suas atividades, mas esses
critérios não poderão conter o género dos praticantes como condição para a
inscrição como associado e exercício da prática das actividades a que se dedica
a associação, não podendo ser proibido que uma mulher ou um homem se inscreva numa
equipa com pessoas do outro género se dispuser dos requisitos técnicos e de
qualidade performativa exigidos.
Uma outra área em que se assiste a grande
polémica na consideração da igualdade de género é no seio de algumas confissões
religiosas, nomeadamente da Igreja Católica. A questão da admissão das mulheres
ao exercício de funções clericais está na ordem do dia e a própria hierarquia
da Igreja não apresenta fundamentos consistentes para o impedimento do acesso
das mulheres ao sacerdócio.
Esta questão de igualdade de género tem de ser
vista sem recurso a fundamentalismos históricos, religiosos, culturais ou
outros. Tem-se visto, quer do lado da quem apoia a igualdade, quer do lado de
quem quer a desigualdade, posições destituídas do mais elementar bom senso.
Quer o lobby LGBTI+, quer as correntes conservadoras de algumas religiões, por
exemplo, têm de ser mais respeitosos na consideração de quem se encontra em
campos diferentes, procurando espaços de sã convivência e não de confronto. A
moda atual da consideração de exigência da linguagem inclusiva em todas as
formulações é excessiva e desnecessária.
Em suma, importa, sempre, ver se a imposição da
igualdade absoluta pode colidir com a liberdade de associação. Todas as pessoas
devem ser livres de se associarem com quem entenderem, tendo a liberdade de
admitirem homens ou mulheres no seu relacionamento, não podendo serem impedidas
de tal. As associações também são livres de estabelecerem as condições para o
recrutamento dos seus associados mas não podem considerar discriminar o género
como elemento para a pertença.
Na consideração da igualdade de género
deve-se respeitar as formas de representação de cada género e as relações
entre os géneros devem-se pautar pela liberdade do seu exercício, tendo que considerar-se
o respeito pela moral social, pelo que, por exemplo, o exercício da identidade
sexual deve ser respeitado desde que em privado, entre adultos e com mútuo
consentimento, com sentido de responsabilidade e de consciência para com as
consequências.
Tendo em conta esta reflexão, o Grande Oriente
Lusitano tem de considerar rever os seus normativos, substituindo a expressão
homens por seres humanos, possibilitando a admissão de mulheres e deixando à
decisão das lojas o recrutamento de membros para o seu quadro, homens ou
mulheres, sem obrigatoriedade de admissão, sem quotas e sem critérios que
possam excluir qualquer dos géneros. Tais princípios deveriam, também, ser
observados por outras Obediências e Grandes Lojas, masculinas ou femininas.
Maio – 2019
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
9 –
Outras associações e atividades
-
Atividade estudantil – membro ativo da Comissão de Sebentas do Instituto
Industrial do Porto e da Associação de Estudantes da Universidade de Aveiro.
-
Atividade sindical – associado e militante do Sindicato dos Eletricistas do
Norte, Sindicato dos Bancários do Norte e Sindicato dos Engenheiro Técnicos do
Norte (de que fui dirigente).
-
Atividade empresarial – sócio-gerente da Cerâmica do Douro e sócio-gerente das
Porcelanas da Maia, cujas empresas foram associadas das associações empresariais
“Associação Portuguesa de Cerâmica” e da “Associação Industrial Portuense”,
tendo participado em várias reuniões e assembleias.
-
Atividade docente – Professor do ensino superior na Escola Superior Artística
do Porto, professor do ensino secundário em entidades diversas e avaliador
externo do Ministério da Educação (Programa Novas Oportunidades), com várias intervenções
relacionadas com a docência, a ética e a cidadania.
- Atividade
social no exercício de atividades laborais, por conta de outrem, na CHENOP
(Companhia Hidro-Elétrica do Norte de Portugal). Banco Borges e Irmão,
Instituto de Emprego e Formação Profissional, Texas Instruments e Fábrica de
Porcelanas da Vista Alegre (nesta empresa, fui membro da comissão de
trabalhadores e participante, em sua representação, no Congresso da
Intersindical de 1975 e, ainda, presidente do conselho fiscal do Sporting da Vista
Alegre e dirigente da cooperativa de consumo da Vista Alegre)
- Atividade
social no exercício das funções de consultor técnico na unidade fabril da
Meadela da Fábrica Jerónimo Pereira Campos e consultor técnico da empresa
Cart-Export pertencente ao grupo empresarial Calves-Sociedade de Investimentos.
-
Dirigente das Associações de Pais da Escola Primária da Vera Cruz (Aveiro), do
Colégio do Sagrado Coração de Maria (Aveiro) e da Escola Secundária Almeida
Garrett (V.N.Gaia);
– Outra
atividade associativa: Automóvel Club de Portugal - Lisboa; Associação de
Moradores da Quinta das Rosas (fundador) – V.N.Gaia; APRIL - Porto; Tertúlia “Os
Morcões”(Um dos fundadores) - Porto;
Associação Porto-Bristol (dirigente) - Porto; Bristol-Oporto Association
- Bristol; Montepio Geral – Associação Mutualista - Lisboa; Fórum Justiça e
Liberdades - Lisboa; Civitas - Porto;
Confraria Queirosiana – V.N.Gaia;
Associação cultural de reflexão filosófica “A Demanda” (Presidente da
Assembleia Geral) - Porto; Ateneu Comercial do Porto; Clube Universitário da
Universidade Católica do Porto - Porto; Santa Casa da Misericórdia de V.N.Gaia;
Observatório para as Questões de Ética e Cidadania (fundador) – V.N.Gaia;
Fundação Cerâmica do Douro (fundador) – V.N.Gaia; ADAS -Associação de
Desenvolvimento e Apoio Social - Fonte da Solidariedade (presidente do conselho
consultivo) - Penafiel.
10 –
Ideias-chave para uma Política de Base Social
Vive-se um tempo complexo e indefinido relativamente ao futuro das relações sociais, assistindo-se a uma atomização dos seres humanos, com a quebra consequente na construção de uma sociedade fraterna e solidária. A própria disponibilidade de servir está em retração acentuada, concretizada na diminuição do voluntariado genuíno e crescimento do voluntariado gratificado e da profissionalização do que, até há pouco tempo, era realizado de forma altruísta e de serviço à comunidade.
Tendo
em conta o meu ceticismo relativamente à evolução positiva do modelo de
sociedade vigente no mundo em geral, e de Portugal em particular, entendi
partilhar, nas redes sociais, no início de 2022, aquando das eleições
legislativas portuguesas, as minhas ideias chave que devem presidir a uma
sociedade de base humanista (texto abaixo inserido), assente nos grandes
referenciais de direitos humanos universalmente consagrados nos tratados,
convenções e protocolos aprovados na Organização das Nações Unidas e no
Conselho da Europa.
Eleições legislativas 2022 em Portugal - Vinte
questões relevantes
- Há desinteresse, desencanto e descrença pelo atual modelo de sistema
eleitoral, produtor de oligarquias, refletido no valor da abstenção (>50%),
colocando em causa o seu caráter democrático, pelo que urge a sua alteração
profunda, incluindo modificações à universalidade de voto nalgumas eleições;
- Os partidos políticos devem deixar de ter o monopólio da representação
parlamentar, alargando-a a entidades relevantes da sociedade, e a classe
política, assim como os partidos políticos, devem ter um estatuto semelhante a
todos os outros cidadãos e associações, sem privilégios próprios;
- Deve ser implementado o princípio da subsidiariedade em todo o processo
de gestão política, sendo de rever a perda de soberania com a adesão a
organismos internacionais;
- O sistema fiscal deve ser profundamente revisto (por exemplo, revendo a
tributação sobre o trabalho e onerando a tributação sobre o consumo não
essencial), e os serviços públicos essenciais devem ter isenção de IVA;
- É necessária total transparência na gestão pública, devendo ser
publicados, sem reserva, todos os contratos, relatórios e outros atos em que o
Estado seja parte ou responsável;
- A paz social (versus conflitos, e sentimentos de ódio e vingança) deve
ser um valor preponderante e os valores dos direitos humanos da liberdade,
igualdade e fraternidade devem ser iguais, universais, indivisíveis,
interrelacionados e interdependentes, com o aprofundamento das questões de
ética e cidadania nos currículos escolares e na sociedade em geral;
- Deve ser reforçada a componente humanista no sistema educativo,
tornando as escolas num espaço fraterno e atrativas para toda a comunidade
escolar;
- É necessária uma política de fomento da produção nacional (vinho, fruta e
outros produtos agrícolas, pesca, energias renováveis, ensino, turismo
cultural, indústria (ex: cerâmica) e outras atividades de alto valor
acrescentado) que permita uma economia sólida, amiga do ambiente e sustentável
(A atual estrutura produtiva conduziu a valores em dívida de impostos e
segurança social que ultrapassam os 30.000.000.000 de euros e a incentivos
fiscais escandalosos);
- As exportações têm de assentar em produtos e serviços de alto valor
acrescentado, substituindo a ilusão dos valores da Galp e da Auto-Europa que
sendo as maiores exportadoras são também as maiores importadoras;
- A cessação de incentivos fiscais e subvenções a grandes grupos económicos
tem de ser imediata;
- O Estado deve ter presença ativa em setores sensíveis da sociedade
(banca, seguros, saúde, educação, cultura, energia, justiça, segurança,
transportes e comunicações);
- O emprego deve ser estável e dignamente remunerado, acabando com a
escravatura e a exploração (ex: precários, ubers, professores contratados,
formadores, migrantes, operários, etc ...) e o salário mínimo nacional tem de
se aproximar rapidamente da média da União Europeia;
- Tem de ser invertido o aumento significativo das desigualdades, da
pobreza, exclusão social e pessoas sem abrigo, revendo o empenhamento social do
Estado;
- Tem de ser revisto o modelo da gestão dos apoios sociais, impedindo que
se torne negócio;
- Deve ser fomentada a habitação acessível, garantindo o seu usufruto como
um direito e não um bem de mercado, aumentando a oferta pública;
- Deve ser estudado o Rendimento Básico Incondicional;
- A justiça tem de ser humanizada (ex: visando a abolição das prisões),
eliminando o seu pendor tecnocrático, priorizando a diminuição da
conflituosidade, com a consequente diminuição das estruturas judiciais,
policiais e prisionais e revisão profunda do código penal (tempo médio de
cumprimento de pena, penas sucessivas e medidas de segurança), passando de
um modelo de proibição, repressivo e punitivo, para um modelo, preventivo e
formativo, não privativo da liberdade. Deve ser tida em conta a equidade a
par do direito, em todas as áreas da justiça;
- Deve ser implementado o direito à própria defesa consagrado no Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos, assim como a total aplicação da
Convenção dos Direitos da Criança;
- A educação para a saúde deve ser um desígnio nacional, permitindo a
automedicação, prevenindo, por exemplo, ações erradas como no enfrentamento da
Covid19, incluindo a prevenção e tratamento de todas as dependências (ex:
drogas) com auxílio e sem punição;
- É necessária uma cultura efetiva
dos direitos humanos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Janeiro de 2022
11 – Um exemplo de
vivência de relações sociais no trabalho
Desde muito novo fui sensível à necessidade de as relações entre todas as pessoas se pautar pelos princípios da paz, da amizade e da cordialidade, vendo, com tristeza, situações de conflito, de agressão física e verbal, de ódio, de inveja e de malquerença.
Em
todas as entidades em que tenho tido intervenção, quer de natureza
profissional, quer de voluntariado, sempre me norteei por esses valores cívicos
inscritos na filosofia de inspiração cristã e inseridos nos grandes
referenciais jurídicos de direitos humanos, de que a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, aprovada pela assembleia geral da ONU em 10 de Dezembro de
1948, continua a ser matriz que deve presidir a qualquer sociedade que se
queira justa.
Esta
minha posição tem-me granjeado muitas alegrias e permitido ter um leque muito
alargado de relações pessoais de grande valia e profundidade afetiva. Mas,
também, tenho sido penalizado quando coloco os direitos humanos acima dos
interesses de pessoas ou entidades com quem me relaciono, recusando hipotecar
os princípios por troca com benesses às quais poderia ter acesso.
Como
exemplo mais recente, refiro a vivência que existiu na última iniciativa
empresarial em que estive envolvido, a criação da Cerâmica do Douro – Fábrica
de Cerâmica Regional Lda.
Tratou-se
de uma iniciativa que nasceu da “ousadia” de querer dar continuidade à cerâmica
tradicional da região Porto-Gaia (que se tinha extinguido com o encerramento da
Fábrica do Carvalhinho em 1975), com o fundamental apoio artístico de Prof.
Escultor Laureano Ribatua, a que se associaram a Escultora Gabriela Couto, a,
então, pintora Glória Felgueiras e o modelador Domingos Gouveia, os quais
constituíram o núcleo fundador da iniciativa.
Após a
constituição jurídica da Cerâmica do Douro, em 3 de Abril de 1989, iniciei os
contactos para recrutamento e formação dos recursos humanos necessários à
laboração.
Desde
logo tive a preocupação de informar que o ambiente que queria a presidir à
fábrica-atelier fosse de natureza humanista, solidária e fraterna, no sentido
de constituirmos uma segunda família.
O
primeiro painel de azulejos produzido foi colocado à entrada das instalações da
fábrica e tem a seguinte inscrição “O trabalho mede-se, sobretudo, pelo padrão
de dignidade da pessoa que o executa”. Um outro lema que queria que fosse
interiorizado foi, também, produzido num azulejo grande com a seguinte
inscrição ”Por pouco que se tenha deve chegar, sempre, para ajudar os outros”.
Nas
entrevistas para a admissão esta questão era colocada para averiguação do
assentimento dos candidatos à adesão a tal clima laboral, o que era motivo de
alguma estranheza e surpresa, pois estavam habituados a climas de competição e individualismo.
Das mais de quarenta pessoas que passaram pela Cerâmica do Douro, não chegou a
meia dúzia aquelas que não conseguiram inserir-se em tal espírito. A Dra.
Glória Felgueiras, psicóloga e diretora fabril, teve papel relevante neste
desígnio.
A
principal característica que presidia à seleção do pessoal era a de terem bom
caráter (ser boa pessoa) mais do que ter experiência anterior ou boas
qualificações académicas, já que as boas pessoas se realizam rapidamente em
trabalhadores competentes e dedicados.
A
fábrica dedicava várias horas por semana para formação geral e profissional e
todos os trabalhadores rodavam um dia por mês pelos outros postos de trabalho,
de forma a que tivessem conhecimento de todo o processo fabril.
Em
termos concretos, a fábrica colaborava na resolução de dificuldades familiares
(financeiras, de saúde, de conciliação de horários com compromissos familiares
e estudantis, etc…). Os períodos de
férias eram estabelecidos em reunião havida no início de cada ano (férias de 3
semanas em Agosto e todo o período compreendido entre os dias 23 de Dezembro e
2 de Janeiro). Faziam-se todas as “pontes” (quando havia feriados à
quinta-feira e à terça-feira), sendo as horas do dia em que se não trabalhava
compensadas com mais uma hora diária na semana contígua e na semana do dia da
“ponte”. Durante várias vezes por ano faziam-se visitas culturais nalguns fins
de semana (visitas a museus e locais de interesse histórico, social e
turístico) e no Verão eram frequentes os convívios aos sábados em locais de veraneio,
com almoço e recreio alusivo à época, cujo pagamento era feito por um fundo
gerido pelos trabalhadores, constituído com as suas contribuições mensais e
pelos prémios obtidos com a participação no totoloto em que se apostava
semanalmente, sendo produzida uma t´shirt específica para cada convívio. No
Natal, havia um dos dias anteriores consagrado a um convívio festivo de cariz
natalício, com troca de prendas e uma visita cultural a um local adequado à
época. No dia de S. Martinho (11 de Novembro) a laboração
terminava duas horas mais cedo para permitir um magusto de convívio.
Enfim, aproveitavam-se todas as oportunidades
para estreitar as relações pessoais com vista ao reforço do espírito familiar.
Os salários eram superiores aos do contrato
coletivo de trabalho da indústria cerâmica e sempre que alguém tinha uma
necessidade financeira sabia que podia contar com a ajuda da fábrica, que
proporcionava adiantamentos a serem pagos em calendário combinado. O pagamento
dos salários era efetuado em dinheiro no último dia de mês (durante algum tempo
os salários foram pagos por transferência bancária, mas devido a, algumas vezes,
existiram atrasos dos bancos no crédito das contas, desistiu-se desta
modalidade e optou-se por pagar em notas e moedas). A fábrica tinha instalado
um sistema de difusão de música transmitida por estações de rádio e por leitura
de CDs.
E,
assim, se conseguiu construir uma relação sadia, fraterna e tranquila, em que
todos gostavam do trabalho que faziam e dos colegas com quem contactavam,
incluindo os meus familiares diretos, mulher Maria de Lurdes, filhas Alexandra e Cristina, genros Fernando
e Pedro, assim como a diretora fabril Glória Felgueiras, o consultor artístico
Laureano Ribatua e demais trabalhadores. A dedicação de todos ao trabalho era
plena e ninguém regateava esforços. Tal permitiu que, mesmo quando me ausentava
por longos períodos, devido a atividades de voluntariado na Amnistia
Internacional, a produção de peças e a gestão fabril se tenha mantido, sempre,
em níveis elevados.
Pena
foi que o projeto subjacente (recuperação da cerâmica tradicional) não tivesse
tido o apoio de continuidade ao inicialmente estabelecido, por parte de
entidades com responsabilidades na manutenção dos valores culturais da
comunidade, e a laboração acabasse por ser suspensa, situação que se mantém nos
dias de hoje (a explicação aprofundada das razões e do processo que levou à
paralisação da atividade está explicada em livro que se encontra no prelo, em
redação final, denominado “A Cerâmica do Douro e a sua História – II”. A 1ª
fase da vida da Cerâmica do Douro consta do primeiro volume de “A Cerâmica do
Douro e a sua História”, editado no ano 2000).
Se, em
vez de ter optado pelo meu envolvimento nos direitos humanos sem filiação
partidária, para poder ser imparcial, isento e independente nessa área, tivesse
aceite os convites, várias vezes formulados, para integrar hostes
político-partidárias, não estaria a ser penalizado no projeto da Cerâmica do
Douro, já que, estou certo, teria todo o apoio do poder político central e
autárquico.
As
mensagens e comentários nas redes sociais das pessoas que passaram pela
Cerâmica do Douro são um exemplo vivo do bom clima relacional que todos
construímos.
Síntese
da Atividade Académica e Profissional
1953/1961-
Frequência e conclusão do ensino primário e secundário
1961/1968
– Oficial de Centrais e Subestações na CHENOP –
Companhia Hidro-Elétrica do Norte de Portugal
1967/1973
– Frequência e conclusão do Curso de Engenharia de Eletrotecnia e Máquinas do
Instituto Industrial do Porto (atual Instituto Superior de Engenharia do Porto)
1968/1972
– Serviço militar com comissão de serviço em Timor.
1972/1972
- Oficial de Centrais e Subestações na CHENOP – Companhia Hidro-Elétrica do
Norte de Portugal
1972/1973
– Empregado bancário no Banco Borges e Irmão
1973/1973
– Técnico de Colocação no I.E.F.P.
1973/1973
– Supervisor de Produção na Texas Instruments
1973/1981
– Técnico superior na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre
1977/1979
– Frequência de Engenharia Cerâmica e do Vidro na Universidade de Aveiro
1981/1984
– Sócio-gerente da Maiaporce-Fábrica de Porcelanas da Maia
1985/1986
– Consultor da empresa cerâmica Cart-Export nas Caldas da Rainha
1987/1988
– Consultor da empresa cerâmica Fábricas Jerónimo Pereira Campos – Unidade da
Meadela (Viana do Castelo)
1988/1990
– Professor do Ensino Superior na ESAP-Escola Superior Artística do Porto
1989/…. – Sócio-gerente da Cerâmica do Douro –
Fábrica de Cerâmica Regional
1990/1991
– Frequência e conclusão do Curso de Aperfeiçoamento de Formadores em Gestão –
I.E.F.P.
2005/2009
– Professor/formador do ensino secundário
2009/2012–Avaliador
externo do Ministério da Educação -Novas Oportunidades
Publicações
do autor
- Poesia – Fragmentos (Eu)-
1985 – 100 ex. - esgotado
- A Cerâmica do Douro e a
sua história – 1999 – 500 ex. - esgotado
- O caso Susana Torres –
2000 – 100 ex. - esgotado
- Questões de ética e
cidadania – 2000 - 500 ex. - esgotado
- A Cerâmica no dia a dia –
2006 - 100 ex.- esgotado
- Prisões: Que esperança –
2007 – 100 ex. - esgotado
- ONG’s passado e presente –
Uma experiência pessoal – 2015 – ebook
- A Abolição das Prisões –
2020 – ebook
- Questões de Ética e
Cidadania II - 2021 – ebook
- Uma vida pelos direitos
humanos – 100 ex. - 2022
No
prelo - A Cerâmica do Douro e a sua história – II
Ficha
técnica
Título:
Uma Vida pelos Direitos Humanos
Autor:
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Blogue:
http://tranquilo-tranquilo-tranquilo.blogspot.pt/
Maio de 2022