Desde finais do século passado, tenho vindo
a defender a criação de uma nova ordem política, económica, social e cultural.
A situação que actualmente vivemos, provocada
pela doença Covid-19 (vírus SARS-CoV-2), está a ter consequências que podem vir
a conduzir a essa nova ordem. Tal constatação é reforçada pela visualização do
comportamento da maioria dos cidadãos perante a declaração do Estado de
Emergência em vários países.
Admito que, face ao clima de medo criado na
opinião pública, o poder instituído não tinha alternativa às medidas que tomou.
É um facto que
estamos perante uma pandemia. O que temos de ver é a melhor forma de a
enfrentarmos. As paranóias nunca foram a melhor solução. Temos de ponderar as
consequências de cada solução e os seus pressupostos. A solução adotada por
muitos governos, Portugal incluído, tem o pressuposto de achatar a curva de
evolução da doença e vai-se prolongar por vários meses.
No entanto, não estou de acordo, em
princípio, com algumas dessas medidas, já que infringem direitos fundamentais
consignados nos referenciais jurídicos internacionais de direitos humanos, de
que são exemplos a limitação à liberdade de circulação, direito à greve e
direito de resistência. Uma coisa é o comportamento cívico voluntário dos
cidadãos. Outra coisa é a acção coerciva do Estado. Além de que se está a
assistir à desarticulação da construção económico-social em que o mundo
assentava.
A solução em curso, além de outras implicações, afeta a
liberdade individual e cria graves problemas sociais, nomeadamente aos mais
pobres. Não tem qualquer estudo comparativo com as consequências de outras
soluções, nomeadamente nos efeitos sobre o desemprego, o agravamento da pobreza
e da exclusão social e o tipo de vítimas e mortes que todas as possíveis
soluções poderão provocar.
Os responsáveis políticos têm tido comportamentos flutuantes
desde o início da doença. Temos de ser céticos e firmes quanto ao não cedermos
ao Estado o poder de se substituir às decisões sobre a vida de cada indivíduo.
O mesmo estado que andou anos a delapidar o SNS e agora obriga os cidadãos a se
confinarem para não sobrecarregarem os hospitais.
A solução em curso
agrava a nova escravatura. Os novos escravos (os que têm de continuar a
trabalhar) só podem trabalhar mas não se podem deslocar para fora do itinerário
trabalho-casa É
espantoso verificar como a maioria das pessoas aceita, e aplaude, as limitações
à liberdade individual, com o argumento da preservação dum bem maior que é a
saúde pública, restringindo a capacidade de cada um avaliar o melhor
comportamento na sua relação com os demais. É o presumível interesse colectivo
a esmagar a liberdade individual. É o retorno à velha ideologia
soviética/maoista de triste memória. E não se argumente que a liberdade
individual pode causar prejuízos na saúde dos outros, pois, então, teríamos que
colocar em confinamento domiciliário todos os fumadores. E o argumento de que a
liberdade de circulação pode acarretar um maior recurso a cuidados hospitalares
leva, paralelamente, a ter de se limitar a quantidade de comida a muitas
pessoas pois torna-as obesas e carenciadas de maiores cuidados clínicos.
A opção entre liberdade e segurança/saúde é um erro. Estamos
a optar pela pulsão securitária à pala da saúde. Será que queremos cair no colo
de paranóicos que exigem a nossa liberdade, como referiu Henrique Raposo no
Expresso de 28/03/2020? Como interpretar a exigência de responsáveis de acções musculadas (força, violência) para impedir
deslocações? Há um fundamentalismo presunçoso e autoritário em muitos dos que
defendem a permanência em casa, que já vai na denúncia pidesca de quem age de
forma diferente.
Os Estados de Emergência são a delícia dos regimes
autoritários e ditatoriais. Os governantes estão-se a tornar entidades divinas,
que até muitos ateus veneram. O ministro Augusto Cabrita faz-me lembrar os
ministros do interior do anterior regime (os estudantes contestatários e os
comunistas agiam prejudicando os interesses do povo, pelo que tinham de ser detidos
e condenados).
Por
outro lado, importa ver se as consequências deste Estado de Emergência não
provoca mais danos e vítimas que as que se argumenta poderem resultar sem essa
instauração, de que o aumento da pobreza e exclusão social que se seguirá são
exemplos. Os adiamentos de actividades programadas que se estão a verificar nos
hospitais e centros de saúde (consultas, cirurgias e outras actividades), irão
trazer mais mortes evitáveis e mais custos no sistema de saúde. Evidentemente
que as consequências que se seguem irão recair, com maior gravidade, nos mais
pobres e desfavorecidos e, como se sabe, estes não ocupam parangonas nos órgãos
de comunicação social e só são necessários para exercerem as funções de que as
elites e a burguesia necessitam.
Acresce a panóplia de medidas legislativas,
em catadupa, que o poder político tem vindo a decretar, o que vai alterar as
regras de funcionamento da sociedade (moratórias de pagamento, subsídios de
vários tipos, proibição de despejos, alterações aos despedimentos, novo lay
off, etc…), o que vai trazer mais burocracia e complicações no quotidiano. Este Estado de
Emergência está a criar o caos, a arbitrariedade e o abuso do poder. (O DL
10/2020 já vai na letra K, além de 13 Declarações de Retificação e inúmeros
despachos, avisos e outras decisões casuísticas, e não fica por aqui. - coitados
dos juristas e dos cidadãos). Quantas complicações se vão desencadear?
Além de que está a fazer esquecer outros dramas bem piores
que existem no mundo (Síria, Refugiados, Líbia, Palestina, Venezuela, escravatura,
sistemas prisionais, etc…).
Todo este reboliço acarreta maiores
exigências, não só aos profissionais de saúde, como, também, a todos os que
mantêm actividade laboral (lixeiros, carteiros, trabalhadores fabris,
pescadores, agricultores, etc…). Não se está a ter em conta situações parecidas do
passado (no ano de 2017, em Portugal, houve 16.000 casos de tuberculose, 32.000
mortes de doenças do sistema circulatório, 16.000 mortes de doenças
infecciosas, 28.000 mortes de cancro, 13.000 mortes de doenças do sistema
respiratório). Em 2008, a gripe H1N1 matou mais de 200.000 pessoas no mundo – Jornal
Público de 27/11/2013. A Covid 19 , até 29/03/2020, tinha provocado cerca de
34.000 mortes.
Com este Estado de Emergência, a liberdade
do exercício dos direitos fundamentais de resistência e de greve está proibida.
Relendo, por exemplo, o artº 21º da Constituição da República Portuguesa (Artigo 21.º - Direito de
resistência - Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem
que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força
qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.) facilmente se
verifica a gravidade de tal cerceamento. E não nos espantemos ao sabermos de
casos de abuso de autoridade por parte das forças de segurança. Sobre a
limitação do exercício do direito à greve, também não é difícil vislumbrar o
que tal representa para a defesa dos direitos dos trabalhadores (em alguns
países onde foi declarado o Estado de Emergência não se proibiu o direito à
greve). É preocupante esta aceitação do autoritarismo e da repressão, havendo
já quem defenda o conhecimento da identidade das pessoas infetadas infringindo
o direito à privacidade e o direito à protecção de dados tão arduamente
conquistados e violados repetidamente.
Esta situação convida a reler o ensaio sobre a cegueira de
José Saramago. Já sugeri esta leitura no início desta crise da Covid 19.
Há uma demagogia lamentável em muitos comportamentos e
slogans Como exemplo o slogan “Vai ficar tudo bem!” é falso. Como muita coisa
vai mudar, pode ficar bem para alguns mas não vai ficar bem para os pobres,
Para estes vai ficar mal.
Por outro lado, como grande consequência
das medidas decorrentes do Estado de Emergência (desarticulação da construção
económico-social em que o mundo assentava) aparece a nu a falácia em que temos
vivido sob a tutela totalitária do orçamento geral do Estado. Ainda há pouco
mais de um mês tivemos ocasião de assistir à discussão do OGE para 2020, em que
foi objecto de polémica a não aprovação da redução do IVA na energia, o aumento
de 10 euros para as pensões mais baixas, a não proibição de venda de habitações
penhoradas da habitação familiar que geram pessoas sem abrigo, etc…, com o
argumento de não haver dinheiro para mais. Pois, agora, aparece bateladas de
dinheiro para as consequências do Estado de Emergência que, se tivesse sido
aplicado na combate à pobreza e exclusão social e no serviço nacional de saúde,
teríamos pessoas mais apetrechadas para fazerem frente a doenças, minimizando
os custos que estamos a ter de suportar.
E, agora, como vai ser construído o modelo
económico-social que foi desarticulado? Quantas mortes vão ocorrer fruto da
desarticulação? Qual será o custo em termos económico-sociais?
Se não fosse o sofrimento das vítimas e o esforço dos que se
mantêm em actividade (pessoal da saúde, lixeiros, carteiros, trabalhadores
fabris, agricultores, pescadores, etc…), que muito prezo, e atendendo a que
esta crise abre a porta para uma nova ordem política, económica, social,
cultural, apetece dizer: Bendita Covid 19!