quinta-feira, 26 de março de 2020

A Covid 19 e a Nova Ordem


Desde finais do século passado, tenho vindo a defender a criação de uma nova ordem política, económica, social e cultural. A situação que actualmente vivemos,  provocada pela doença Covid-19 (vírus SARS-CoV-2), está a ter consequências que podem vir a conduzir a essa nova ordem. Tal constatação é reforçada pela visualização do comportamento da maioria dos cidadãos perante a declaração do Estado de Emergência em vários países.
Admito que, face ao clima de medo criado na opinião pública, o poder instituído não tinha alternativa às medidas que tomou. É um facto que estamos perante uma pandemia. O que temos de ver é a melhor forma de a enfrentarmos. As paranóias nunca foram a melhor solução. Temos de ponderar as consequências de cada solução e os seus pressupostos. A solução adotada por muitos governos, Portugal incluído, tem o pressuposto de achatar a curva de evolução da doença e vai-se prolongar por vários meses.
No entanto, não estou de acordo, em princípio, com algumas dessas medidas, já que infringem direitos fundamentais consignados nos referenciais jurídicos internacionais de direitos humanos, de que são exemplos a limitação à liberdade de circulação, direito à greve e direito de resistência. Uma coisa é o comportamento cívico voluntário dos cidadãos. Outra coisa é a acção coerciva do Estado. Além de que se está a assistir à desarticulação da construção económico-social em que o mundo assentava.
A solução em curso, além de outras implicações, afeta a liberdade individual e cria graves problemas sociais, nomeadamente aos mais pobres. Não tem qualquer estudo comparativo com as consequências de outras soluções, nomeadamente nos efeitos sobre o desemprego, o agravamento da pobreza e da exclusão social e o tipo de vítimas e mortes que todas as possíveis soluções poderão provocar.
Os responsáveis políticos têm tido comportamentos flutuantes desde o início da doença. Temos de ser céticos e firmes quanto ao não cedermos ao Estado o poder de se substituir às decisões sobre a vida de cada indivíduo. O mesmo estado que andou anos a delapidar o SNS e agora obriga os cidadãos a se confinarem para não sobrecarregarem os hospitais.
 A solução em curso agrava a nova escravatura. Os novos escravos (os que têm de continuar a trabalhar) só podem trabalhar mas não se podem deslocar para fora do itinerário trabalho-casa É espantoso verificar como a maioria das pessoas aceita, e aplaude, as limitações à liberdade individual, com o argumento da preservação dum bem maior que é a saúde pública, restringindo a capacidade de cada um avaliar o melhor comportamento na sua relação com os demais. É o presumível interesse colectivo a esmagar a liberdade individual. É o retorno à velha ideologia soviética/maoista de triste memória. E não se argumente que a liberdade individual pode causar prejuízos na saúde dos outros, pois, então, teríamos que colocar em confinamento domiciliário todos os fumadores. E o argumento de que a liberdade de circulação pode acarretar um maior recurso a cuidados hospitalares leva, paralelamente, a ter de se limitar a quantidade de comida a muitas pessoas pois torna-as obesas e carenciadas de maiores cuidados clínicos.
A opção entre liberdade e segurança/saúde é um erro. Estamos a optar pela pulsão securitária à pala da saúde. Será que queremos cair no colo de paranóicos que exigem a nossa liberdade, como referiu Henrique Raposo no Expresso de 28/03/2020? Como interpretar a exigência de responsáveis de acções musculadas (força, violência) para impedir deslocações? Há um fundamentalismo presunçoso e autoritário em muitos dos que defendem a permanência em casa, que já vai na denúncia pidesca de quem age de forma diferente.
Os Estados de Emergência são a delícia dos regimes autoritários e ditatoriais. Os governantes estão-se a tornar entidades divinas, que até muitos ateus veneram. O ministro Augusto Cabrita faz-me lembrar os ministros do interior do anterior regime (os estudantes contestatários e os comunistas agiam prejudicando os interesses do povo, pelo que tinham de ser detidos e condenados).
 Por outro lado, importa ver se as consequências deste Estado de Emergência não provoca mais danos e vítimas que as que se argumenta poderem resultar sem essa instauração, de que o aumento da pobreza e exclusão social que se seguirá são exemplos. Os adiamentos de actividades programadas que se estão a verificar nos hospitais e centros de saúde (consultas, cirurgias e outras actividades), irão trazer mais mortes evitáveis e mais custos no sistema de saúde. Evidentemente que as consequências que se seguem irão recair, com maior gravidade, nos mais pobres e desfavorecidos e, como se sabe, estes não ocupam parangonas nos órgãos de comunicação social e só são necessários para exercerem as funções de que as elites e a burguesia necessitam.
Acresce a panóplia de medidas legislativas, em catadupa, que o poder político tem vindo a decretar, o que vai alterar as regras de funcionamento da sociedade (moratórias de pagamento, subsídios de vários tipos, proibição de despejos, alterações aos despedimentos, novo lay off, etc…), o que vai trazer mais burocracia e complicações no quotidiano. Este Estado de Emergência está a criar o caos, a arbitrariedade e o abuso do poder. (O DL 10/2020 já vai na letra K, além de 13 Declarações de Retificação e inúmeros despachos, avisos e outras decisões casuísticas, e não fica por aqui. - coitados dos juristas e dos cidadãos). Quantas complicações se vão desencadear?
Além de que está a fazer esquecer outros dramas bem piores que existem no mundo (Síria, Refugiados, Líbia, Palestina, Venezuela, escravatura, sistemas prisionais, etc…).
Todo este reboliço acarreta maiores exigências, não só aos profissionais de saúde, como, também, a todos os que mantêm actividade laboral (lixeiros, carteiros, trabalhadores fabris, pescadores, agricultores, etc…). Não se está a ter em conta situações parecidas do passado (no ano de 2017, em Portugal, houve 16.000 casos de tuberculose, 32.000 mortes de doenças do sistema circulatório, 16.000 mortes de doenças infecciosas, 28.000 mortes de cancro, 13.000 mortes de doenças do sistema respiratório). Em 2008, a gripe H1N1 matou mais de 200.000 pessoas no mundo – Jornal Público de 27/11/2013. A Covid 19 , até 29/03/2020, tinha provocado cerca de 34.000 mortes.
Com este Estado de Emergência, a liberdade do exercício dos direitos fundamentais de resistência e de greve está proibida. Relendo, por exemplo, o artº 21º da Constituição da República Portuguesa (Artigo 21.º -  Direito de resistência - Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.) facilmente se verifica a gravidade de tal cerceamento. E não nos espantemos ao sabermos de casos de abuso de autoridade por parte das forças de segurança. Sobre a limitação do exercício do direito à greve, também não é difícil vislumbrar o que tal representa para a defesa dos direitos dos trabalhadores (em alguns países onde foi declarado o Estado de Emergência não se proibiu o direito à greve). É preocupante esta aceitação do autoritarismo e da repressão, havendo já quem defenda o conhecimento da identidade das pessoas infetadas infringindo o direito à privacidade e o direito à protecção de dados tão arduamente conquistados e violados repetidamente.
Esta situação convida a reler o ensaio sobre a cegueira de José Saramago. Já sugeri esta leitura no início desta crise da Covid 19.
Há uma demagogia lamentável em muitos comportamentos e slogans Como exemplo o slogan “Vai ficar tudo bem!” é falso. Como muita coisa vai mudar, pode ficar bem para alguns mas não vai ficar bem para os pobres, Para estes vai ficar mal.
Por outro lado, como grande consequência das medidas decorrentes do Estado de Emergência (desarticulação da construção económico-social em que o mundo assentava) aparece a nu a falácia em que temos vivido sob a tutela totalitária do orçamento geral do Estado. Ainda há pouco mais de um mês tivemos ocasião de assistir à discussão do OGE para 2020, em que foi objecto de polémica a não aprovação da redução do IVA na energia, o aumento de 10 euros para as pensões mais baixas, a não proibição de venda de habitações penhoradas da habitação familiar que geram pessoas sem abrigo, etc…, com o argumento de não haver dinheiro para mais. Pois, agora, aparece bateladas de dinheiro para as consequências do Estado de Emergência que, se tivesse sido aplicado na combate à pobreza e exclusão social e no serviço nacional de saúde, teríamos pessoas mais apetrechadas para fazerem frente a doenças, minimizando os custos que estamos a ter de suportar.
E, agora, como vai ser construído o modelo económico-social que foi desarticulado? Quantas mortes vão ocorrer fruto da desarticulação? Qual será o custo em termos económico-sociais?

Se não fosse o sofrimento das vítimas e o esforço dos que se mantêm em actividade (pessoal da saúde, lixeiros, carteiros, trabalhadores fabris, agricultores, pescadores, etc…), que muito prezo, e atendendo a que esta crise abre a porta para uma nova ordem política, económica, social, cultural, apetece dizer: Bendita Covid 19!