domingo, 5 de agosto de 2012

A Escravatura do século XXI

Olhando de relance a história da humanidade encontramos, quase permanentemente, a presença da escravatura nas relações económicas e sociais, com todo o seu cortejo de manifestações de violência, de exploração e de desumanidade. Também, ao longo da história, encontramos sempre relatos de protesto, de insubmissão e de revolta contra este tipo de aproveitamento do ser humano em proveito daqueles a quem coube o sortilégio de se situarem nos escalões mais elevados da escala social. Nos períodos seguintes às duas guerras mundiais do século passado, a corrente humanista que teve alguma importância no mundo conseguiu fazer aprovar a Convenção sobre a Escravatura em 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura … e Práticas Análogas à Escravatura em 1956, nas quais os Estados assumiram compromissos de nunca mais autorizarem determinadas práticas desumanas nas relações entre as pessoas e as instituições. Tais compromissos foram sucessivamente alargados e aprofundados em muitos instrumentos jurídicos internacionais das Nações Unidas, da Conselho da Europa, da União Europeia, da Organização Internacional do Trabalho, etc… E o que vemos neste início do século XXI? Será que os princípios subjacentes a estes referenciais jurídicos estão a ser respeitados? Infelizmente a resposta é negativa. O modelo de sociedade que hoje prepondera assenta em novas formas de escravatura e desumanidade que torna urgente a reflexão sobre a injustiça de uns viverem desafogadamente à custa do sofrimento e da míngua de recursos de muitos seres humanos. O desemprego, o trabalho precário, a prática de baixos salários, os horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, a substituição do direito ao trabalho pelo direito à rescisão do contrato de trabalho, são situações censuráveis que não encontram respaldo nas grandes orientações que devem balizar a convivência humana. Por outro lado, assiste-se ao reforço da exploração económica dos assalariados com a prática de preços nos serviços públicos essenciais (habitação, água, electricidade, transportes públicos, etc…), que cerceiam o seu acesso a quem somente dispõe de recursos escassos, tornando, por exemplo, quem tem rendimentos próximos do salário mínimo em carenciados sem condições de vida digna. Esta situação social, que caracteriza este início do século XXI, coloca-nos em presença de novas formas de escravatura e de relações sociais desumanas, sendo urgente lançar um repto a todos aqueles que se encontram a viver desafogadamente no sentido de examinarem a sua consciência, reflectindo sobre se não os incomoda viver num mundo tão desigual e desumano. Ainda por cima quando o seu viver desafogado assenta, por exemplo, em ter empregadas domésticas desmotivadas, em ter o lixo recolhido por lixeiros de baixa remuneração, em ter as suas cartas entregues por carteiros insatisfeitos, e, cúmulo das contradições deste modelo de sociedade, em poder ter sangue disponível para quando precisar, dado, gratuitamente, em esmagadora maioria pelos mais pobres e necessitados. Já pensaram no poder de que dispõem as empregadas domésticas, os lixeiros, os carteiros e os dadores de sangue? E quando estas pessoas, e outras com o mesmo perfil, decidirem usar o seu poder? Acontecerá o mesmo que aconteceu na história sempre que os escravos se revoltam? Temos de rapidamente inverter este modelo assente em novas formas de escravatura e de práticas desumanas nas relações entre pessoas. A corrente que hoje domina, obsessivamente assente em primados economicistas de défices, dívida pública, competitividade e saque dos bens públicos, tem de dar lugar a uma nova ordem política, económica, social e cultural em que o ser humano seja efectivamente portador duma dignidade por todos reconhecida.