terça-feira, 5 de maio de 2009

O Exemplo de S. Martinho


Dois aspectos principais se associam a este santo: O magusto que tem o seu ponto alto no dia de S. Martinho (11 de Novembro) e a lenda a que se encontra ligado.
O magusto é definido por ser uma festa popular de celebração comunitária em que pessoas unidas por laços afectivos se juntam comendo castanhas em espírito de partilha e de fraternidade.
A lenda de S. Martinho transporta-nos para o sublime acto de partilha e caridade demonstrado pelo santo, quando, num dia de mau tempo, dividiu ao meio a sua capa com um pobre tiritando de frio que encontrou no seu caminho, acto após o qual se deu o milagre da transformação do frio e chuva desse dia numa temperatura estival de céu soalheiro e quente (O chamado verão de S. Martinho). Esta lenda colocou a cidade francesa de Tours, onde o santo foi sepultado, num ponto alto de peregrinação religiosa em tempos ainda recentes, a seguir a Roma e Jerusalém (S. Tiago de Compostela é posterior a Tours como cidade de grandes peregrinações).
Portanto, a comemoração do S. Martinho tem como grandes valores de base os sentimentos de partilha e fraternidade.
E aqui encontramos profunda identificação com os valores que deviam nortear a nossa acção de cidadãos, sendo uma boa oportunidade para reflectirmos sobre o que podemos fazer com os necessitados que connosco se cruzam no nosso caminho. Perguntou o santo ao mendigo se ele já tinha procurado trabalho? Perguntou o santo ao mendigo se ele aplicava bem as esmolas que lhe davam? Perguntou o santo ao mendigo se ele não tinha família ou amigos que o ajudassem? Não. Perante alguém que precisava de ajuda partilhou aquilo que possuía, sem perguntas que lhe dessem a desculpa de seguir em frente passando a responsabilidade para o mendigo que estava naquela condição por sua própria culpa.
E o que vemos nos dias de hoje? Não é confrangedor assistirmos ao bradar constante das organizações que apoiam os necessitados de que não estamos no bom caminho? Ainda no fim de ano passado a organização ecuménica Comissão Nacional Justiça e Paz exortou a sociedade a fomentar uma cultura de «aversão a desigualdades», denunciando preconceitos como os que consideram os pobres preguiçosos, incompetentes, dependentes, responsáveis pela sua situação, não credíveis e perigosos. É que a maioria dos pobres trabalha, tem um emprego pesado, longo e mal pago, além dos muitos que estão desempregados (há por ex: em Portugal 60.000 desempregados licenciados) e sem apoios de qualquer natureza, já que na maioria dos casos as próprias famílias são carenciadas. Neste encontro, que contou com a presença de altos responsáveis do Estado foi perguntado pela presidente da CNJP Dra. Manuela Silva: Quem aceita estes preconceitos associados aos pobres consegue viver, de forma diga, com 370 euros por mês?” (Indicador para Portugal do limiar de pobreza).
A realidade que ninguém contesta de que há um agravar do fosso entre abastados e necessitados tem de nos chocar. Quando comemorarmos o magusto de S. Martinho olhemos como ele olhou para o caminho e certamente encontraremos muitos com quem poderemos partilhar o que temos, com aqueles que pouco ou nada têm. É que lembremo-nos que por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros.
Ainda não há muito tempo um insigne cidadão da cidade do Porto, Engº Francisco de Almeida e Sousa, assumia na sua coluna periódica no Jornal de Notícias que, na dúvida, prefiria dar a quem não precisa do que não dar a quem precisa. Cá temos um bom seguidor de S. Martinho. Porque não o imitamos?

segunda-feira, 27 de abril de 2009

A construção duma Sociedade Preversa

Assustadoramente, assistimos nesta transição de século a novas e preocupantes facetas nas relações entre os cidadãos e entre estes e a organização social, parecendo que se está a construir um novo modelo ao arrepio daquilo que era apontado como os melhores suportes da estrutura social.

Mas é inquestionável que a solidez de todas as construções está intrinsecamente ligada à boa resistência e harmonia dos seus pilares, nos quais se apoia a malha envolvente que explicita a estética idealizada. Sem pilares sólidos toda a construção é vulnerável, tornando-se efémera e de pouca confiança.

Assim, também, se passa na construção das relações humanas que, para ser sólida e harmoniosa, necessita de pilares consistentes e bem construídos, desempenhando papel mestre os pilares da ética e da cidadania.
Para a sua execução é imprescindível que todos os obreiros sejam exímios nos domínios do bem, de que se destacam a verdade, a honra, a vergonha, o brio, a solidariedade e a tolerância. Sem a observância destes domínios, a construção das relações humanas não resistirá à mais pequena brisa.
A sua concepção e manutenção têm de integrar a força, a beleza e a sabedoria, colunas mestras estas sempre necessárias a toda a obra que aspira à perfeição. A força da vontade, a beleza dos olhos nos olhos e a sabedoria do conhecimento certo.
A ética e a cidadania são pilares em que tem de assentar toda a construção das relações humanas, sendo obrigatório que a liberdade, a igualdade e a fraternidade, sejam o cimento que os solidifica. A liberdade do respeito pela diferença, sem imposições do lobby e da ditadura da maioria ou da sabotagem da minoria; a igualdade tal como ela é proclamada no artº 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”; a fraternidade da partilha, bem expressa no lema “Por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros”.
Todavia, outros materiais tentadores e, porventura, mais fáceis, são colocados à nossa disposição: a inveja, a vingança, a ingratidão, o egoísmo, a intolerância, a demagogia, a ambição desmedida, o ódio, etc..., são elementos que poderão edificar ilusoriamente uma construção faustosa mas que ruirá, mais tarde ou mais cedo, deixando a quem nela se abrigou o relento da frustração, se ainda não tiver sido bloqueado o domínio do seu livre pensamento.
E quando isto acontece, quando a consciência fica obliterada, quando a escuridão ameaça tapar a luz, meditemos no que disse o poeta e filósofo francês do século XVI, Etienne de la Botie, no seu livro Discurso Sobre a Servidão Voluntária: “Dignos de dó são aqueles que vivem com a canga no pescoço. Devem ser desculpados e perdoados, pois, nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém nunca lha tendo mostrado, não sabem como é mau serem escravos. Há países em que o sol aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados: depois de brilhar durante seis meses seguidos, deixa-os ficar mergulhados na escuridão, nunca os visitando durante meio ano; se os que nasceram durante essa longa noite nunca tivessem ouvido falar do dia, seria de espantar que eles se habituassem à treva em que nasceram e nunca desejassem a luz?”

Na convicção de que a felicidade humana está ligada, umbilicalmente, à existência em paz duma consciência esclarecida, importa intervir para que o trilhar do caminho da vida seja feito sobre pilares de ética e cidadania, construídos com o esquadro, o nível e o fio de prumo, instrumentos indispensáveis à edificação de construções sólidas e duradouras de rectidão e justiça.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Uma visão humana das prisões

O testemunho sobre uma realidade como aquela que se vive nas prisões, numa perspectiva evangelizadora, não é fácil já que se tem de ter em conta os tipos de pessoas que lá se encontram e a natureza e finalidade desses espaços.
Há já alguns anos que contacto frequentemente com a realidade prisional, quer como activista de direitos humanos, quer como visitador católico. O contacto pessoal e fraterno que tenho tido com quem se encontra em situação de reclusão confirma que por detrás das grades não se encontram monstros ou seres horríveis, por muito grave que tenha sido o acto que para lá os atirou, sentindo que a responsabilidade por esses actos não se esgota no delinquente. João Paulo II na sua mensagem como Sumo Pontífice para o Jubileu nos Cárceres em 9 de Julho do ano 2000, constatava que “estamos ainda longe do momento em que a nossa consciência poderá estar certa de ter feito tudo o possível para prevenir a delinquência”.
A minha colaboração na acção evangelizadora junto dos presos nas cadeias tem-se processado nos estabelecimentos prisionais de Custóias, Paços de Ferreira e na cadeia masculina de Santa Cruz do Bispo, quer no apoio aos respectivos capelães prisionais, quer no contacto pessoal e directo com os reclusos. É uma acção de grande enriquecimento espiritual e de desenvolvimento lento ao longo do tempo. Os reclusos não se abrem facilmente, sendo poucos aqueles que estão disponíveis para os valores da fé e do espírito. No entanto, quando conseguimos ultrapassar a barreira da desconfiança e da descrença, surge um espaço de abertura que possibilita a aceitação da nossa acção evangelizadora. O ambiente pouco humano em que se desenrolam os dias nos espaços prisionais não facilita a disponibilidade de quem se encontra em reclusão para outra realidade que não seja aquela que se traduz em benefício concreto imediato. Por tal razão, a presença de reclusos nos espaços e momentos em que se desenvolvem as acções de evangelização é normalmente reduzida.
Deixem-me dizer-lhes de coração aberto. Por muito que tenhamos feito, por muito que tenhamos ajudado, não temos conseguido sequer beliscar o falido modelo de construção duma sociedade com criminosos. Não sou só eu que o digo. Têm-no dito os mais altos responsáveis a todos os níveis. Ainda não há muito tempo o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público declarou que “O actual sistema prisional está fora deste tempo e deste modelo de sociedade”. O padre Georgino Rocha, professor da Universidade Católica, disse-nos há pouco tempo que “Enquanto a situação nas prisões estiver como está não nos encontramos em vivência cristã”.
Como cristão devo ajudar sempre quem de mim precisa, independentemente das circunstâncias. Como cidadão quero dizer que temos de acabar muito rapidamente com este modelo de encarceramento de pessoas. As prisões não previnem o crime. As prisões não reparam os danos provocados às vítimas. As prisões não promovem a reinserção da maioria dos reclusos após o cumprimento da pena.
Vou referir brevemente três vivências pessoais que testemunhei.
Numa das visitas a uma reclusa encontrei na fila de entrada na prisão um homem jovem com uma criança ao colo, de 4/5 anos, com um ar triste e apagado. Por acaso voltamos a encontrar-nos na sala de visitas, lado a lado, e assisti à alegria da criança a saltar para os braços da sua mãe que se encontrava a cumprir pena de prisão, assim se mantendo agarrada durante a uma hora que dura a visita. E no final quem conseguia tirar a criança dos braços da sua mãe? Quantos gritos e choros, com a guarda prisional a insistir que a mãe tinha de regressar à cela e a criança a não querer deixá-la. Como é desumano uma criança ter de passar por tal sofrimento!
Num outro caso, durante uma campanha eleitoral um eminente político perguntava a um grupo de crianças o que é que elas iam pedir ao Pai Natal. Umas pediram bonecas, outros pistas de carrinhos. etc.., mas uma criança fez um pedido singular: só queria a mãe dela que estava presa há muito tempo. Nem bonecas, nem computadores, nem roupa nova. Só uma coisa: a sua mãe. Não é desumano que se prive uma criança da sua mãe?
Como irão comportar-se estas crianças quando adultas? Não é difícil prever quando se sabe que mais de 50% dos jovens reclusos vêm de famílias com pais de passado prisional.
Um outro caso ainda de há uma semana atrás. Um recluso ainda jovem (35 anos), que anda pelos estabelecimentos prisionais há quase 15 anos, por furto, tráfico de droga e assalto à mão armada, disse-me há oito dias: A vida nunca me deu oportunidade de me encontrar comigo mesmo. Não deveria ser necessário entrar na via do crime para nos descobrirmos interiormente. Assumo a responsabilidade por aquilo que fiz mas a contribuição para a construção do caminho que trilhei é mais alargada. Estou a perder aqui dentro uma fase importante da minha vida.
Não podemos continuar a viver numa sociedade de grandes injustiças em que as prisões são o lugar para muitos deserdados da fortuna que os levou, ou obrigou, a praticar actos que para lá os atiraram.
Esta realidade tem de ser mudada. Como todos os estudiosos da matéria nos têm dito, a experiência dos últimos 200 anos em que vigora este modelo penal mostra-nos o seu fracasso.
No passado mês de Janeiro, D. Carlos Azevedo, bispo com a responsabilidade na Conferência Episcopal pela pastoral prisional declarou no Encontro Nacional de Capelães e visitadores prisionais: Não só os que estão dentro das grades necessitam da conversão do olhar. Toda a sociedade necessita.
O exemplo de Cristo perante a mulher adúltera que queriam condenar como era uso no tempo deve ser o caminho a seguir. O que disse Jesus Cristo? Aquele que nunca errou que atire a primeira pedra. Como todos se retiraram Cristo disse à mulher: Também eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar.
É neste comportamento de Cristo que temos de nos converter. Prevenir o pecado, reparar as suas consequências e perdoar quem errou. Não é isso que dizemos no Pai Nosso? (…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…).
É isto que temos de fazer com aqueles que por vicissitudes da vida erram. Dar-lhes a oportunidade de não voltar a errar sem o ferrete da prisão, abrindo-lhes os caminhos que muitas vezes fomos nós que fechamos.
Assim sendo, a acção evangélica nas prisões é fundamental para que a vivência cristã não fique do lado de fora dos muros. Com os reclusos ouvindo-os e ajudando-os a abrir os caminhos da esperança. Com as suas famílias auxiliando-as nas necessidades evidentes que a prisão de um dos seus membros sempre acarreta, no objectivo de evitar que esta situação provoque a desestruturação da família, situação esta, infelizmente, muito frequente.
Termino, citando uma intervenção do capelão prisional do E.P. de Paços de Ferreira, Padre António Correia: A cadeia, tal como hoje a conhecemos, não foi inventada para curar ou reabilitar, mas para excluir, segregar ou marginalizar. E reconheça-se que o tem conseguido! O fim reabilitador da cadeia é um acrescento recente, mais ideológico que real, quando já não se podia suportar mais a sua crueldade inútil. A cadeia não reabilita porque não pode reabilitar! Ela não foi inventada para isso. Por isso, este tipo de cadeia só pode estar condenado a desaparecer. É óbvio que dá menos trabalho e despesa manter a situação como está. Sobretudo porque, diferentemente do hospital, quase só os que vivem nos porões da escala social, os que não têm relevo e peso social, vão parar à cadeia. E não são esses que decidem ou influenciam as mudanças…
Eu e os visitadores vicentinos tentamos possibilitar a presença de Jesus Cristo na cadeia. Contudo sabemos que não levamos Cristo à cadeia, pois quando chegamos para a visita, Cristo já lá está na pessoa do preso. Mesmo do preso que não aparece à nossa visita, que não vai à missa ou não conhece a Cristo. Não vamos lá salvar ninguém nem converter ninguém, a não ser nós próprios, talvez! É por isso que, em relação a nós, vamos aceitando tudo, silenciando vexames, injustiças, anomalias… Já em relação aos reclusos, a desatenção, os maus tratos, a negligência institucional e o incumprimento da lei e do regulamento penitenciário não deviam permitir que nos mantivéssemos calados. E por vezes fazemo-lo porque pesa mais a defesa da nossa presença nas cadeias do que os direitos dos reclusos.

Os reclusos e reclusas, todos os que se encontram dentro dos muros das prisões são nossos irmãos em Cristo. Temos de estar com eles.