segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Uma visão humana das prisões

O testemunho sobre uma realidade como aquela que se vive nas prisões, numa perspectiva evangelizadora, não é fácil já que se tem de ter em conta os tipos de pessoas que lá se encontram e a natureza e finalidade desses espaços.
Há já alguns anos que contacto frequentemente com a realidade prisional, quer como activista de direitos humanos, quer como visitador católico. O contacto pessoal e fraterno que tenho tido com quem se encontra em situação de reclusão confirma que por detrás das grades não se encontram monstros ou seres horríveis, por muito grave que tenha sido o acto que para lá os atirou, sentindo que a responsabilidade por esses actos não se esgota no delinquente. João Paulo II na sua mensagem como Sumo Pontífice para o Jubileu nos Cárceres em 9 de Julho do ano 2000, constatava que “estamos ainda longe do momento em que a nossa consciência poderá estar certa de ter feito tudo o possível para prevenir a delinquência”.
A minha colaboração na acção evangelizadora junto dos presos nas cadeias tem-se processado nos estabelecimentos prisionais de Custóias, Paços de Ferreira e na cadeia masculina de Santa Cruz do Bispo, quer no apoio aos respectivos capelães prisionais, quer no contacto pessoal e directo com os reclusos. É uma acção de grande enriquecimento espiritual e de desenvolvimento lento ao longo do tempo. Os reclusos não se abrem facilmente, sendo poucos aqueles que estão disponíveis para os valores da fé e do espírito. No entanto, quando conseguimos ultrapassar a barreira da desconfiança e da descrença, surge um espaço de abertura que possibilita a aceitação da nossa acção evangelizadora. O ambiente pouco humano em que se desenrolam os dias nos espaços prisionais não facilita a disponibilidade de quem se encontra em reclusão para outra realidade que não seja aquela que se traduz em benefício concreto imediato. Por tal razão, a presença de reclusos nos espaços e momentos em que se desenvolvem as acções de evangelização é normalmente reduzida.
Deixem-me dizer-lhes de coração aberto. Por muito que tenhamos feito, por muito que tenhamos ajudado, não temos conseguido sequer beliscar o falido modelo de construção duma sociedade com criminosos. Não sou só eu que o digo. Têm-no dito os mais altos responsáveis a todos os níveis. Ainda não há muito tempo o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público declarou que “O actual sistema prisional está fora deste tempo e deste modelo de sociedade”. O padre Georgino Rocha, professor da Universidade Católica, disse-nos há pouco tempo que “Enquanto a situação nas prisões estiver como está não nos encontramos em vivência cristã”.
Como cristão devo ajudar sempre quem de mim precisa, independentemente das circunstâncias. Como cidadão quero dizer que temos de acabar muito rapidamente com este modelo de encarceramento de pessoas. As prisões não previnem o crime. As prisões não reparam os danos provocados às vítimas. As prisões não promovem a reinserção da maioria dos reclusos após o cumprimento da pena.
Vou referir brevemente três vivências pessoais que testemunhei.
Numa das visitas a uma reclusa encontrei na fila de entrada na prisão um homem jovem com uma criança ao colo, de 4/5 anos, com um ar triste e apagado. Por acaso voltamos a encontrar-nos na sala de visitas, lado a lado, e assisti à alegria da criança a saltar para os braços da sua mãe que se encontrava a cumprir pena de prisão, assim se mantendo agarrada durante a uma hora que dura a visita. E no final quem conseguia tirar a criança dos braços da sua mãe? Quantos gritos e choros, com a guarda prisional a insistir que a mãe tinha de regressar à cela e a criança a não querer deixá-la. Como é desumano uma criança ter de passar por tal sofrimento!
Num outro caso, durante uma campanha eleitoral um eminente político perguntava a um grupo de crianças o que é que elas iam pedir ao Pai Natal. Umas pediram bonecas, outros pistas de carrinhos. etc.., mas uma criança fez um pedido singular: só queria a mãe dela que estava presa há muito tempo. Nem bonecas, nem computadores, nem roupa nova. Só uma coisa: a sua mãe. Não é desumano que se prive uma criança da sua mãe?
Como irão comportar-se estas crianças quando adultas? Não é difícil prever quando se sabe que mais de 50% dos jovens reclusos vêm de famílias com pais de passado prisional.
Um outro caso ainda de há uma semana atrás. Um recluso ainda jovem (35 anos), que anda pelos estabelecimentos prisionais há quase 15 anos, por furto, tráfico de droga e assalto à mão armada, disse-me há oito dias: A vida nunca me deu oportunidade de me encontrar comigo mesmo. Não deveria ser necessário entrar na via do crime para nos descobrirmos interiormente. Assumo a responsabilidade por aquilo que fiz mas a contribuição para a construção do caminho que trilhei é mais alargada. Estou a perder aqui dentro uma fase importante da minha vida.
Não podemos continuar a viver numa sociedade de grandes injustiças em que as prisões são o lugar para muitos deserdados da fortuna que os levou, ou obrigou, a praticar actos que para lá os atiraram.
Esta realidade tem de ser mudada. Como todos os estudiosos da matéria nos têm dito, a experiência dos últimos 200 anos em que vigora este modelo penal mostra-nos o seu fracasso.
No passado mês de Janeiro, D. Carlos Azevedo, bispo com a responsabilidade na Conferência Episcopal pela pastoral prisional declarou no Encontro Nacional de Capelães e visitadores prisionais: Não só os que estão dentro das grades necessitam da conversão do olhar. Toda a sociedade necessita.
O exemplo de Cristo perante a mulher adúltera que queriam condenar como era uso no tempo deve ser o caminho a seguir. O que disse Jesus Cristo? Aquele que nunca errou que atire a primeira pedra. Como todos se retiraram Cristo disse à mulher: Também eu não te condeno. Vai e não voltes a pecar.
É neste comportamento de Cristo que temos de nos converter. Prevenir o pecado, reparar as suas consequências e perdoar quem errou. Não é isso que dizemos no Pai Nosso? (…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…).
É isto que temos de fazer com aqueles que por vicissitudes da vida erram. Dar-lhes a oportunidade de não voltar a errar sem o ferrete da prisão, abrindo-lhes os caminhos que muitas vezes fomos nós que fechamos.
Assim sendo, a acção evangélica nas prisões é fundamental para que a vivência cristã não fique do lado de fora dos muros. Com os reclusos ouvindo-os e ajudando-os a abrir os caminhos da esperança. Com as suas famílias auxiliando-as nas necessidades evidentes que a prisão de um dos seus membros sempre acarreta, no objectivo de evitar que esta situação provoque a desestruturação da família, situação esta, infelizmente, muito frequente.
Termino, citando uma intervenção do capelão prisional do E.P. de Paços de Ferreira, Padre António Correia: A cadeia, tal como hoje a conhecemos, não foi inventada para curar ou reabilitar, mas para excluir, segregar ou marginalizar. E reconheça-se que o tem conseguido! O fim reabilitador da cadeia é um acrescento recente, mais ideológico que real, quando já não se podia suportar mais a sua crueldade inútil. A cadeia não reabilita porque não pode reabilitar! Ela não foi inventada para isso. Por isso, este tipo de cadeia só pode estar condenado a desaparecer. É óbvio que dá menos trabalho e despesa manter a situação como está. Sobretudo porque, diferentemente do hospital, quase só os que vivem nos porões da escala social, os que não têm relevo e peso social, vão parar à cadeia. E não são esses que decidem ou influenciam as mudanças…
Eu e os visitadores vicentinos tentamos possibilitar a presença de Jesus Cristo na cadeia. Contudo sabemos que não levamos Cristo à cadeia, pois quando chegamos para a visita, Cristo já lá está na pessoa do preso. Mesmo do preso que não aparece à nossa visita, que não vai à missa ou não conhece a Cristo. Não vamos lá salvar ninguém nem converter ninguém, a não ser nós próprios, talvez! É por isso que, em relação a nós, vamos aceitando tudo, silenciando vexames, injustiças, anomalias… Já em relação aos reclusos, a desatenção, os maus tratos, a negligência institucional e o incumprimento da lei e do regulamento penitenciário não deviam permitir que nos mantivéssemos calados. E por vezes fazemo-lo porque pesa mais a defesa da nossa presença nas cadeias do que os direitos dos reclusos.

Os reclusos e reclusas, todos os que se encontram dentro dos muros das prisões são nossos irmãos em Cristo. Temos de estar com eles.