quinta-feira, 19 de abril de 2012

O que Nenhum Governo nos Pode Tirar

É cada vez mais consensual considerar a fase da história que atravessamos como a mais problemática socialmente desde a 2ª guerra mundial, podendo eu confirmar tal constatação já que pertencendo à geração dos actuais sexagenários este período está a ser por mim vivido.
Sou testemunha do baixo ponto civilizacional a que descemos, caracterizado com a desumanidade patente nos mais variados aspectos, desde o desemprego galopante à repressão asfixiante, modelo este estimulado por uma classe política boçal, que ocupa os lugares da governação, sem padrões culturais assentes em pilares de ética e cidadania e com manifestações arrepiantes de ignorância, prepotência e oportunismo.
A inversão do caminho para o inferno tem de ser conseguida com a prática de outros valores e com outros guias, que não permitam que nos limitem nas mais elementares aspirações, que não permitam que nos queiram tirar tudo.
Felizmente, ainda há coisas que, por muito que queiram, nenhum governo nos pode tirar.
Não nos podem tirar, por exemplo, a beleza dum pôr do sol, a tranquilidade do nascer do dia, a graciosidade do voo das andorinhas, a nostalgia do adágio de Albinoni, o desejo na Garota de Ipanema, a força do querer duma criança, o encanto dum concerto para violoncelo de Elgar, a luminosidade do luar de Janeiro, o prazer do acto de amor, a paz do parque da cidade numa tarde de sol de Inverno, a sabedoria das experiências da vida, a verdade que nos espera patente no requiem de Mozart ou de Verdi, a generosidade dos pobres ajudando desinteressadamente, o sabor dos alimentos de que gostamos, a recordação dos momentos vividos, o chilreio dos pássaros na Primavera, o gosto da leitura dum bom livro, a alegria das marchas de John Philip de Sousa, a calma do crepitar duma lareira, o poder ingénuo duma criança em enfrentar o sofrimento, a grandeza da paz no interior duma igreja, o amor e a rebeldia da transgressão na música dos Beatles, o querer em não repetir os erros cometidos, a beleza do arco-íris, o desejo da liberdade num recluso, o convívio com os bons amigos, o amor dos nossos entes queridos, a poesia (en)cantada por muitos músicos desde o Zeca Afonso à Amália Rodrigues, o recolhimento da participação numa missa de exéquias de alguém que nos tocou de perto, o estar acima dos interesses mesquinhos, o sentir do prazer de dar de forma anónima e desinteressada, o sorriso sempre sincero das crianças.
Nada disto pode ser tirado por qualquer governo, Nem sequer (ainda) objecto de qualquer imposto ou penhora.
Quando estivermos perante qualquer dos problemas de que a vida é, cada vez mais, madrasta em nos colocar, centremo-nos em qualquer dos bens referidos de que todos somos beneficiários.
É certo que o actual modelo de sociedade em que vivemos nos coloca perante confortos e necessidades que tornam a vida mais sadia e mais cómoda (habitação climatizada, água canalizada no domicílio, electricidade em todas as partes da casa, transportes públicos, etc…) mas, cada vez mais, estas comodidades são-nos disponibilizadas por quem se encontra no poder a troco de sacrifícios que nem todos estão a conseguir suportar. Esta degradação civilizacional acentua-se em contraponto com as mordomias obscenas de que beneficiam os detentores do poder político-financeiro, acentuando-se o fosso entre pobres e ricos, tornando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.
Enquanto não conseguirmos encontrar a via que nos livre daqueles que, de forma bruta e desumana, nos exploram, oprimem e asfixiam, gozemos o conjunto de coisas que nenhum governo ainda não nos pode tirar.