sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Contributos para a história da cerâmica doméstica e decorativa em Portugal no último quartel do século XX

 

Contributos para a história da cerâmica doméstica e

decorativa em Portugal no último quartel do século XX

 

 1 – Introdução

2 – Caracterização dos produtos cerâmicos

3 – Condicionamento industrial

4 – Mercados interno e externo

5 –Cinco realidades distintas (VA, Maiaporce, Cart-Export,JPCF e Cerâmica do Douro)

 

 1 – Introdução

Perde-se na origem dos tempos o primeiro contacto entre o Homem e aquilo que hoje se designa por “Cerâmica”.

A própria definição do que é um produto cerâmico (tudo o que resulta da transformação irreversível de matérias-primas naturais por ação do calor) evidencia, desde logo, que os elementos necessários à obtenção duma peça de cerâmica, como sejam os minerais e o fogo, coexistem com o Homem desde o seu aparecimento à face da Terra. Não é por acaso que em qualquer escavação arqueológica aparecem sempre fragmentos de peças cerâmicas, independentemente da época dos achados.

Começaram por ser simples barros, tais quais se encontram na Natureza. O conhecimento das propriedades diferenciadas dos diversos barros fez evoluir o suporte matérico para uma mistura de barros, possibilitando a obtenção de peças com uma maior variedade de formas e de sentido estético. Nos séculos mais recentes, o conhecimento científico possibilitou um salto enorme na qualidade dos pro­dutos cerâmicos, já que da mistura de barros se saltou para a faiança, para o grés e para a porcelana. A par da evolução das formas foi-se, também, aprimorando o aspeto cromático. Aquilo que na Antiguidade eram desenhos simples, possibilitados pelo conhecimento técnico escasso, tornou-se hoje no principal elemento influenciador quando se aprecia uma peça cerâmica: a decoração. Constituídos, essencialmente, por óxidos metálicos, existentes nos minerais, as tintas e corantes, de que dispusemos no final do século XX, possibilitaram já a obtenção de quase todo o espectro cromatológico, dando a uma peça cerâmica a beleza resultante da fusão dos seus dois elementos consti­tuintes: forma e decoração.

Aquilo que no passado tinha uma função exclusivamente utilitária passou a ter um espaço que cobre praticamente todas as actividades humanas.

 Em Portugal, a tradição cerâmica encontra-se profundamente enraizada no passado. Os seus valores culturais, nas sua formas e decorações, encontram-se expressos nas peças produzidas nomeadamente nos séculos XVIII e XIX. Certo é que se tem assistido a um esbatimento da noção dessa importância, pelo que se exige o reavivar na memória coletiva dum património cuja preservação importa cultivar. Não o reavivar pela simples cópia, mas sim com o respeito pelos valores essenciais acrescidos dos novos valo­res que a todo o momento se vão impondo. A cultura não é só museológica, mas sim passado e presente.

2 – Caracterização dos produtos cerâmicos

É clara a definição dum produto cerâmico: é todo o produto resultante da transformação irreversível de matérias primas naturais por ação do calor. O que quer dizer que misturando matérias primas naturais, em quantidades proporcionalmente calculadas, e submetendo esta pasta a uma temperatura suficientemente elevada para transformar essas matérias primas, estamos na presença dum produto cerâmico. Se é barro, faiança, grés, porcelana, vidro, etc. ..., isso depende das matérias primas, percentagens e temperaturas de cozedura que utilizamos.

Mas quando falamos de cerâmica estamos a falar dum conjunto alargado de produtos, pelo que precisamos sempre de especificar mais pormenorizadamente aquilo a que nos queremos referir.

E quais são as matérias primas mais importantes usadas no fabrico das peças cerâmicas? Tal como se disse, são naturais (existem tal e qual na natureza) e são do domínio comum: quartzo (a areia corrente é constituída maioritariamente por quartzo); feldspato (outro mineral comum e que é um dos constituintes do granito); misturas argilosas (a mais conhecida é o Caulino); outros materiais de importância menor mas que permitem efeitos e comportamentos necessários caso a caso (carbonatos, fosfatos, óxidos metálicos, etc. ...)

Estes materiais são tratados adequadamente (por ex: o quartzo e o feldspato têm de ser finamente moídos já que as dimensões em que aparecem na natureza não são ideais para fabricar peças cerâmicas), misturados segundo proporções estudadas para cada produto (por ex: para fabricar porcelana é necessário preparar uma pasta com, aproximadamente, 50% de Caulino, 25% de quartzo e 25% de feldspato), moldados de acordo com as formas pretendidas, e submetidos a uma, ou mais, cozeduras. No final estamos na presença dum produto cerâmico e as matérias primas usadas na composição da pasta já se encontram transformadas, de forma que já não é possível separá-las e fazê-las voltar ao estado inicial, quer sob o ponto de vista químico, quer sob o ponto de vista mineralógico.

Estamos então na presença dum produto cerâmico que resultou da transformação de matérias primas naturais por ação do calor.

Na caracterização básica dos produtos cerâmicos pode dizer-se que há uma característica (a porosidade) que divide os produtos cerâmicos em dois grandes grupos: produtos porosos e produtos não porosos.

Como a própria palavra indica os produtos porosos são aqueles que contêm poros na sua constituição, isto é, existem pequenos espaços (microscópicos) entre a estrutura constituinte do produto. Por outro lado, os produtos não porosos são compactos, não tendo, portanto, qualquer poro na sua estrutura constituinte. Como exemplos de produtos porosos podem referir-se os barros e as faianças. Como não porosos temos o grés, a porcelana e o vidro (ou o pirex).

Esta característica (porosidade) é a primeira grande referência que devemos ter em conta na utilização dum produto cerâmico, já que a sua não observância pode proporcionar-nos surpresas desagradáveis. Esta característica é por si só indicativa sobre algumas aplicações utilitárias de peças correntes. Tratando-se de produtos porosos, o corpo da peça é constituído por materiais sólidos e espaços vazios (ainda que microscópicos), pelo que as peças porosas absorvem substâncias líquidas com que estejam em contacto (ex: água e gorduras) assim como outras substâncias que contenham líquidos (alimentos cozinhados por ex), não sendo, portanto os mais indicados para usos alimentares ou para serem usados em máquinas de lavar. É certo que a sua superfície é normalmente vidrada para proporcionar um certo isolamento, mas esta protecção é insuficiente na quase totalidade das utilizações domésticas. Mais adiante voltaremos a esta questão com mais pormenor.

Os produtos não porosos são compactos pelo que não absorvem quaisquer outras substâncias com que estejam em contacto.

Há algumas maneiras simples de se diferençar um produto poroso dum produto não poroso. Vamos só referir as quatro mais exequíveis por qualquer pessoa, sem necessidade de recurso a técnicas ou instrumentos complicados .

Uma peça porosa é sempre mais leve que outra peça com as mesmas dimensões mas não porosa. Logo,  se segurarmos em duas peças iguais em dimensões (comprimento, largura, espessura, etc...) e sentirmos diferença no peso, então a mais leve é porosa.

Os dois produtos mais conhecidos no grupo dos porosos são o barro e a faiança. Sendo dois produtos classificados no grupo de materiais porosos, têm, no entanto, diferenças de composição e apresentação que os distinguem fácilmente.

O barro é o produto cerâmico constituído por matérias primas menos exigentes, normalmente de uma argila ou mistura de argilas, e com  baixa temperatura de cozedura  (cerca de 600 – 800 ºC). São exemplos deste tipo de produtos o barro vermelho ou o barro negro. Quando se destinam a usos utilitários (assadeiras, tigelas, pratos, etc...) são vidrados com vidros de baixa temperatura, sendo ainda, frequentemente, usado o chumbo como fundente do vidrado, o que torna este tipo de produtos desaconselhável já que o seu uso pode provocar problemas de saúde, tendo em conta que o chumbo quase não é eliminado pelo organismo, acumulando-se nos rins e no fígado, além de que a porosidade permite a infiltração de resíduos alimentares na estrutura das peças, podendo provocar distúrbios gastrointestinais. São produtos com baixa resistência mecânica (quebram-se com facilidade), e mais adiante abordaremos as implicações destes produtos com os seus usos.

A faiança é um produto cerâmico que, continuando a ser um produto poroso, já é obtido a partir duma composição mais elaborada, não necessitando, todavia, de matérias primas de grande exigência. Contém, na sua composição, os três grandes constituintes duma pasta de cerâmica fina (argilas, areias e fundentes), tratados individualmente antes da mistura, com cozedura a uma temperatura próxima dos 1.000 ºC, tendo um campo de aplicação que vai desde utensílios domésticos à azulejaria. São produtos com fraca resistência mecânica. A sua utilização tem, também, limitações semelhantes às do barro, que veremos mais adiante.

Os produtos cerâmicos não porosos mais comuns são o grés, a porcelana e o vidro/pirex/cristal. Todos são caracterizados por não absorverem quaisquer ingredientes com que estejam em contacto, já que a sua estrutura é compacta e impermeável. Apresentam, também, composições e características diferenciadas, assim como podem ter aplicações distintas.

O grés tem uma composição mineralógica já com características de alguma elaboração, tendo em conta a necessidade da sua impermeabilidade e a exigência dos usos a que se destina (desde a louça doméstica até aos usos industriais, como tubos de saneamento, sanitários, pavimentos, etc...). É cozido a temperaturas entre os 1.100 ºC e os 1.250 ºC. Apresenta-se no mercado, normalmente, em cores variadas (castanho nos usos industriais até ao branco ou beje nas usos domésticos), não tem translucidez e a sua resistência mecânica e refractária é alta.

A porcelana é a mais elaborada das pastas cerâmicas correntes. Obtida a partir de matérias primas de boa qualidade (Caulino, quartzo, feldspato e outras argilas em quantidades menores), é cozida a temperaturas entre os 1280 ºC e os 1400 ºC. É, geralmente, branca e tem uma alta resistência mecânica e refractária. Uma característica que a distingue de todas as outras pastas cerâmicas é a sua translucidez (deixa-se penetrar pela luz), o que lhe confere particularidades estéticas duma maior beleza e profundidade. É o produto utilizado para peças de prestígio e de elevada exigência qualitativa.

O vidro é um produto cerâmico constituído esmagadoramente por quartzo (areia), com um alto grau de pureza. É cozido a temperaturas entre os 1.400 ºC e os 1.600 ºC, e, geralmente, é transparente. Frequentemente, com o objectivo de obtenção de efeitos estéticos especiais produzem-se  vidros opacos ou coloridos. Tem baixa resistência mecânica e refractária. O pirex e o cristal distinguem-se do vidro tendo em conta o objectivo de efeitos especiais  tais como, por ex:, o aumento do grau refractário no pirex e um aumento de brilho e sonoridade no cristal com a adição de chumbo na sua composição.

 Para a fabricação de produtos cerâmicos Portugal dispõe de jazidas importantes das matérias primas essenciais: argilas (incluindo caolinos), quartzo e feldspato. Estas matérias primas encontram-se em diversas partes do país, permitindo que se encontre fábricas de cerâmica em, praticamente, todo o território.

 3 – Condicionamento industrial

 O último quartel do século XX foi um período de tempo excecionalmente rico na cerâmica portuguesa, quer no crescimento de unidades produtivas, quer no avanço científico, tecnológico e artístico. Tal deveu-se, fundamentalmente, à transformação operada pela revolução do 25 de Abril de 1974, com a abolição do condicionamento industrial vigente no regime deposto e com a introdução dos cursos específicos de engenharia cerâmica em estabelecimentos de ensino superior (Universidade de Aveiro e Instituto Superior Politécnico de Viana do Castelo), além do crescimento do mercado interno (aumento de poder de compra fruto do aumento significativo dos salários) e do mercado externo (diminuição das taxas aduaneiras pela pertença à EFTA e, mais tarde, à CEE).

 Na verdade, a revolução do 25 de Abril de 1974 teve impactos profundos em toda a vida portuguesa, incluindo no setor da cerâmica. Enquanto a cerâmica de construção, nomeadamente telhas, tijolos e azulejaria, ia vivendo ligada à construção civil, a cerâmica doméstica e decorativa sofreu uma grande alteração na capacidade produtiva e na qualidade dos produtos. O condicionamento industrial, em vigor no anterior regime político, só permitia a produção de porcelana ao Grupo Vista Alegre e à SPAL, impedindo a evolução tecnológica das múltiplas fábricas de faiança que se encontravam em processo de definhamento. A abolição total desse condicionamento, nomeadamente para o setor da cerâmica, pelo V governo chefiado pela Engª Maria de Lurdes Pintassilgo em 1979, (o condicionamento já tinha sido muito diminuído em 1974 no III governo provisório chefiado pelo General Vasco Gonçalves), permitiu o nascimento de novas empresas que, aproveitando as benesses permitidas pela pertença à EFTA, aumentaram a capacidade produtiva para corresponder às solicitações dos mercados interno e externo.

Quando em 1973 iniciei a minha atividade neste setor de atividade, na Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre em Ílhavo, vivia-se, ainda, a “comodidade” do condicionamento industrial e de alguns benefícios da pertença à EFTA.  Este grupo empresarial, possuído pela família Pinto Basto, usufruía de estabilidade económica e estava em expansão sustentada. A par da sua atividade fabril desenvolvia uma componente social de grande relevo. Por exemplo, na gestão da unidade situada na Vista Alegre (Ílhavo), salientava-se a característica da tentativa de criar uma grande família (cerca de 1.000 trabalhadores) em que a fábrica apoiava várias vertentes sociais (no espaço adjacente à fábrica, estavam implantados: um bairro social com várias dezenas de moradias para habitação dos trabalhadores com uma renda de um dia de salário por mês; uma cantina; uma creche; um teatro/cinema; um orfeão; um museu; um corpo de bombeiros; um grupo desportivo-Sporting Clube da Vista Alegre - com campo de futebol próprio e participante na divisão distrital de futebol de Aveiro;  uma quinta agrícola que produzia e vendia artigos para os trabalhadores a preços mais acessíveis: uma cooperativa de consumo; um posto médico; uma igreja privada, etc… . E tudo isto com um grande suporte logístico e material da fábrica, incluindo os salários dos trabalhadores envolvidos nestas estruturas e o pagamento integral do tempo que fosse necessário despender para o seu funcionamento. Pode-se dizer que estávamos perante uma Fundação de grande dimensão, ainda que, nesse tempo, tal conceito jurídico não tinha o enquadramento que hoje se verifica. 

O condicionamento industrial beneficiou claramente a Vista Alegre, na medida em que não permitiu o nascimento de novas unidades na produção de porcelana doméstica e decorativa (o aparecimento da SPAL-Alcobaça em 1965 deveu-se ao circunstancialismo da utilização de um alvará emitido anteriormente ao condicionamento industrial), assim como impediu a evolução técnica das fábricas de faiança para porcelana.

A abolição do condicionamento industrial alterou profundamente a realidade das unidades produtivas cerâmicas, pelo que se assistiu ao nascimento de muitas novas unidades em todas as pastas cerâmicas, nomeadamente na porcelana, no grés e na faiança. Este aumento da capacidade produtiva foi potenciado com o crescimento dos mercados interno e externo.

 4 – Mercados interno e externo

O 25 de Abril de 1974, e posterior desenvolvimento político, constituiu uma rutura profunda com o sistema político vigente, quer no plano político, quer no plano económico, social e cultural. Consequentemente, o setor produtivo da cerâmica viu abrir-se o mercado interno, fruto do aumento de salários duma larga faixa populacional que destinou ao consumo esse acréscimo do poder de compra. Paralelamente, a integração na EFTA possibilitou a abertura de mercados externos devido ao abaixamento de taxas aduaneiras de que a cerâmica foi beneficiada.

Esta alteração dos mercados suscitou uma forte dinâmica de aparecimento novas unidades em todo o país, destacando-se a faixa compreendida nas regiões de Aveiro-Coimbra-Leiria-Alcobaça-Caldas da Rainha.

No mercado interno o setor que mais se expandiu foi o da porcelana para a hotelaria, restauração e cafés, enquanto o mercado externo se tornou mais apetente para a faiança decorativa.

Esta realidade criada pelo 25 de Abril e pelos acordos da EFTA veio a ser alterada na parte final do quartel, após a adesão à CEE, devido aos acordos comerciais que esta entidade tinha com países terceiros, nomeadamente da Ásia, o que se traduziu numa competição difícil nos mercados externos devido aos baixos custos de produção nesses países, pelo que no final do quartel já se notava um forte enfraquecimento da capacidade produtiva em Portugal, com o definhamento de muitas unidades produtivas.

 5 – Cinco realidades distintas

Durante o quarto quartel do século XX mantive ligações estreitas com cinco realidades distintas de empresas cerâmicas (Vista Alegre, Maiaporce, Cart-Export, Jerónimo Pereira Campos - Meadela e Cerâmica do Douro).

 5.1 – Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre

Na Vista Alegre (VA), cujo quadro de pessoal era composto por cerca de 1.000 trabalhadores, iniciei funções em Dezembro de 1973, como Diretor dos Serviços de Racionalização do Trabalho, função esta que me permitia percorrer todos os setores da empresa fazendo com que passasse a conhecer a realidade de todo o processo produtivo.  A revolução do 25 de Abril introduziu uma nova realidade social nas empresas, colocando em causa processos tendentes ao aumento de produtividade dos trabalhadores, pelo que foi suspensa a atividade dos serviços de racionalização do trabalho. Tal medida fez com que passasse a exercer as funções de responsável pelo planeamento e controle da produção e apoio à direção fabril.

Esta empresa, fundada em 1824, produzia porcelana doméstica e decorativa (foi a primeira do país), com decorações de pintura à mão e/ou decalcomania, associando, desde a fundação, a produção de vidro que mais tarde se autonomizou em empresa própria (O Grupo Vista Alegre compreendia, também, no setor da cerâmica e na altura em que entrei, a Eletro-Cerâmica em V.N.Gaia, a Sociedade de Porcelanas em Coimbra, o GLE-Gabinete e Laboratório de Estudos em V.N.Gaia, a Crisal Atlantis na Marinha Grande mais tarde redenominada Atlantis, a exploração de caulino em OVAR mais tarde autonomizada como Vialpo, e a produção de decalcomanias, também, mais tarde autonomizada como Interdecal). Na atualidade, o grupo alargou-se e transformou-se, tendo a estrutura acionista e de gestão saído da esfera da família fundadora Pinto Basto para o grupo Visabeira, fruto da incapacidade de gestão e de desinteligências na família Pinto Basto, descaracterizando a imagem VA e delapidando o património arquitetónico, social, cultural e tradicional contruído em Ílhavo. O atual modelo de gestão diminuiu a importância das linhas de fabrico tradicionais da VA, introduzindo outras cerâmicas de menor valor artístico, passando a integrar grés e faiança, onde sobressai a marca Bordallo Pinheiro, sendo, apenas, mais uma das gamas do portefólio industrial e de serviços da Visabeira.

Em 1974 o grupo VA detinha a esmagadora maioria da produção de porcelana doméstica e decorativa (só existia outra empresa no setor, a SPAL em Alcobaça). Com o fim do condicionamento industrial assistiu-se à criação de novas empresas no setor, já que se assistia a uma carência deste tipo de produtos, nomeadamente no mercado nacional e no setor HORECA, situação que se prolongou durante alguns anos até que a reforço da capacidade produtiva, associado a um grande aumento de importações, estabeleceu o equilíbrio oferta/procura.

Na VA desempenhei funções de chefia nos departamentos de Racionalização de Trabalho, Fabrico, Decoração e Planeamento e Controle da Produção. Participei, também, em estruturas sociais da empresa, nomeadamente como coordenador da Comissão de Trabalhadores.

Saí da VA em 1981 para fundar a nova empresa Maiaporce-Fábrica de Porcelanas da Maia. 

 5.2 – Maiaporce – Fábrica de Porcelanas da Maia, Lda.

Esta empresa foi constituída em 1981, a partir da saída da VA de dois quadros técnicos (eu próprio e o Dr. Dinis Sottomayor), aliciados pela apetência do mercado de mais produtos de porcelana doméstica, carência que a VA e a SPAL não estavam a colmatar, surgindo a oportunidade de saírem da condição de trabalhar por conta de outrem para empresários. A oportunidade foi reforçada pelo interesse de um outro grupo cerâmico ligado à cerâmica de construção (Grupo Estaco) em entrar na área da cerâmica doméstica. A Maiaporce teve como acionistas iniciais eu próprio (5% do capital social), o Dr. Dinis Sottomayor com 5%, o representante de equipamentos cerâmicos Hans Kullemkampf com 5%, e a Grupo Estaco com 85%.

A nova empresa Maiaporce foi concebida como a mais moderna do mundo para o setor Horeca, com equipamentos de última geração (Prensagem isostática, fornos de cozedura rápida e decoração por debaixo do vidrado).  A sua entrada no mercado, um ano após a celebração da escritura notarial, foi bem recebida e a sua produção assimilada. No entanto, assistiu-se, nessa altura, a uma grave crise na construção civil, obrigando, em 1983, o Grupo Estaco a vender a sua posição, tendo eu, também vendido a minha quota a um grupo familiar ligado ao Dr. Dinis Sottomayor. 

 5.3 – Cart-Export

Com a saída da Maiaporce iniciei uma fase de consultor cerâmico, sendo a Cart-Export o exemplo mais significativo, onde iniciei a atividade em 1985.

Esta empresa, sediada no Porto (a totalidade do capital social era da Calves – Sociedade de Investimentos com sede na Rua de Gondarém na Foz do Douro), tinha as instalações fabris na zona industrial das Caldas da Rainha.  Era uma empresa que se dedicava à produção de faiança decorativa destinada, na totalidade, aos mercados externos, nomeadamente para os países nórdicos.

Nascida no início dos anos 80 do século passado, aproveitou o boom do crescimento do setor produtivo em Portugal, beneficiado pelos acordos da EFTA e pelos preços baixos deste tipo de produtos em Portugal. Era uma fábrica moderna, onde desenvolvi uma pasta cerâmica de grés com cozedura final a temperatura mais baixa (1.000ºC) do que era prática nesta pasta.

A Cart-Export era uma das muitas dezenas de empresas semelhantes que se criaram em Portugal nessa época, já que o mercado externo era apetente para a cerâmica decorativa de baixo custo produzida em Portugal, com design desenvolvido pelos clientes.

A localização da fábrica nas Caldas da Rainha, que me exigia a permanência de vários dias seguidos fora da minha residência em V.N.Gaia, obrigou-me a deixar essa ligação profissional em 1987.

 5.4 – JPCF – Fábricas Jerónimo Pereira Campos – Filhos

Esta fábrica, sediada em Meadela-Viana do Castelo, teve a sua origem na década de 40 do século passado com a denominação Fábrica de Louça de Viana, Lda., com o objetivo de dar continuidade a cerâmica vianense de Darque (Vianna), sendo a existente JPCF – Fábricas Jerónimo Pereira Campos – Filhos com sede em Aveiro a sua propulsora, tendo, mais tarde, passado a constituir parte do portefólio do Banco Pinto de Magalhães, cujo maior acionista era o Sr. Afonso Pinto de Magalhães, grande admirador de cerâmica.

As contingências, em muitas empresas, resultantes da revolução do 25 e Abril de 1974, assim como da nacionalização da banca portuguesa em 1975, levaram a que esta empresa passasse a ser propriedade da União de Bancos Portugueses (UBP) onde se incorporou a Banco Pinto de Magalhães.

Nos anos 80 do século passado, os Bancos resultantes da nacionalização entenderam desfazerem-se de participações fora do seu core-business, tendo eu sido contactado pela UBP para estudar um projeto de reconversão da Fábrica de Cerâmica da Meadela.

Iniciei esse trabalho em 1987, com deslocações semanais a Viana do Castelo, como consultor em prestação de serviços, tendo como companhia de viagem o consultor artístico da empresa Escultor Laureano Ribatua.

A empresa produzia grés porcelânico, dando continuidade aos motivos e formatos da antiga fábrica de Darque (Vianna). Com instalações e equipamentos antiquados e uma localização na zona urbana da Meadela, sugeri a deslocalização das instalações para a zona industrial de Viana do Castelo com a construção de uma nova unidade com equipamentos atualizados. 

 5.5 – Cerâmica do Douro – Fábrica de Cerâmica Regional Lda.

O nascimento da Cerâmica do Douro em Vila Nova de Gaia, cuja escritura pública teve lugar a 3 de Abril de 1989, foi fortemente influenciado pela minha experiência nos quatro centros cerâmicos atrás referidos (Vista Alegre, Maia, Caldas da Rainha e Viana do Castelo), assim como pela sua constatação da deslizante agonia em que vivia (e ainda vive) a cerâmica tradicional. Esta agonia, comum, infelizmente, a outras actividades tradicionais portuguesas, era (e ainda é) determinada pelo crescente economicismo vigente no modelo político-económico-social, em que o fator preço se sobrepõe a critérios históricos, culturais e tradicionais, como, também, pela inexistência dum sentir forte de defesa de valores que não os do mero utilitarismo falsamente barato. O produto fabricado foi porcelana pintada à mão, com decorações de alto fogo, de base tradicional, dando continuidade à cerâmica tradicional da região Porto-Gaia.

Estávamos no início do processo de integração de Portugal na, altura denominada, Comunidade Económica Europeia (CEE) com a perspetiva de que vinha perto o "tempo das vacas gordas" e isto poderia criar alguma apetência para outros valores além do utilitarismo.

A opção pela porcelana teve em conta que o suporte matérico nas peças foi sempre, ao longo do tempo, o melhor de que se dispunha, tendo em conta o conhecimento científico e a disponibilidade de matérias primas. Desde os simples barros, tais quais eram extraídos da natureza, nos primórdios da civilização, passando por barros mais elaborados na idade média e por faianças na idade moderna, até que, no final do século XX, com o domínio técnico existente, qualquer ideia de qualidade na cerâmica doméstica e decorativa tem que utilizar a porcelana como suporte matérico. A porosidade existente na faiança, por ex., além de ter inconvenientes para a saúde quando em utilizações com alimentos, provoca o aparecimento de fendilhado e delimita o seu campo de aplicação a ambientes não muito húmidos nem com grandes amplitudes térmicas, assim como não resiste a grandes solicitações mecânicas. A talhe de foice convém referir que a porcelana é um material cerâmico, como a faiança, o barro cozido, o grés e até o vidro, já que cerâmica é todo o produto que resulta da transformação irreversível de matérias primas naturais por ação de calor.

A escolha da decoração por debaixo do vidrado, sempre que possível, teve por base o conhecimento existente da fragilidade das decorações por cima do vidrado, nalgumas situações frequentes nos dias de hoje mas inexistentes no passado, como por ex: máquinas de lavar louça, fornos micro-ondas, detergentes e esfregões de alto teor abrasivo, etc, assim como o conhecimento dos inconvenientes existentes para a saúde pelo contacto direto dos produtos alimentares com os óxidos metálicos que compõem as tintas usadas nas decorações. Excetua-se desta opção as decorações com ouro, já que não existe, ainda, o conhecimento científico que permita cozer, por debaixo do vidrado da porcelana, qualquer tipo de ouro, prata ou platina. Acresce a isto que as decorações por debaixo do vidrado, denominadas de "grande fogo", apresentam uma profundidade de leitura e um esbatimento de limites que as tornam mais atraentes. A utilização do ouro nalgumas decorações insere-se na lógica da tradição, já que o ouro representa, no final do século XX, um valor cultural alargado e não só de elites como nos séculos passados. No entanto, já no passado se verificaram aplicações de ouro o que mostra interesse na sua utilização, mas o pouco conhecimento científico não permitia a sua utilização com a qualidade e resistência que hoje se verifica.

 O enveredar pelo caminho da cerâmica tradicional teve a ver com o sentir de que as tradições são património que não deve ser desperdiçado ou menosprezado. Antes pelo contrário, é dever de todos honrar o legado dos antepassados e, neste campo, Portugal e, particularmente, a região Porto-Gaia, com as suas mais de duas dezenas de fábricas, sem contar com as fábricas de cerâmica de construção, somente nos séculos XVIII e XIX, herdaram um valioso património cerâmico, com uma forte carga histórico-cultural que será “criminoso” olvidar e não lhe dar continuidade.

A escolha da pintura completamente à mão de todas as peças teve em vista, por um lado, a valorização individual das peças e por outro a formação de recursos humanos de elevada qualificação, que é um imperativo para quem, neste final do século XX, pretende ser mais do que um elo numa cadeia despersonalizada.

Estas opções resultaram das trocas de impressões com o amigo e companheiro, Professor Escultor Laureano Ribatua, quando fazíamos as viagens conjuntas para dar apoio à Louça Regional de Viana do Castelo, e cuja dedicação à Cerâmica do Douro tem sido essencial para esta caminhada, tornando-o credor de respeito, simpatia e amizade que todos na Cerâmica do Douro sempre lhe dedicaram.

O arranque foi feito com as singularidades e características próprias. Definidos os integrantes do pacto social da Cerâmica do Douro, este seu fundador (com o apoio de sua mulher D. Maria de Lurdes) e a sua filha Dr.ª Ana Cristina Novais Almeida dos Santos Sousa, houve que traçar o quadro humano de partida, já que as opções de produto estavam feitas. Para a área fabril de olaria e pintura foi feito o desafio a uma, na altura, promissora aprendiz de pintura de Viana do Castelo, D. Glória Felgueiras. Desafio aceite, créditos confirmados, pilar construído. Para o gesso, e com a ajuda do amigo e colega Cruz dos Santos, foi integrado, inicialmente em part-time, o modelador Sr. Domingos Gouveia. Para a recolha e criação de modelos e decorações contamos com a preciosa colaboração da Sra. Professora Escultora Gabriela Couto. Estava definido o quadro de partida.

Paralelamente, foi-se desenvolvendo o suporte económico-financeiro e escolha das infra-estruturas produtivas. Enquanto este último aspeto foi facilmente enquadrável, o apoio externo económico-financeiro foi difícil, dificuldade esta que se tem refletido até aos dias de hoje.

Como fator base foi tido em conta que a região Porto - Gaia foi, até meados deste século, tradicionalmente rica em cerâmica doméstica e decorativa, tendo sido o rio Douro um importante apoio ao seu desenvolvimento.

Bastará lembrar as fábricas de Massarelos, Miragaia, Cavaquinho, Santo António de Vale da Piedade, Devezas, etc......, que desde o século XVIII mantiveram lugar destacado e cimeiro na cerâmica decorativa portuguesa.

Infelizmente, nenhuma destas unidades fabris sobreviveu, deixando em risco de extinção uma atividade de características culturais bem marcantes e enraizadas nas tradições e história desta região. A sua relevância mereceu a atenção de muitos estudiosos, de que o trabalho de Pedro Vitorino “Cerâmica Portuense”, publicado em 1930, merece particular destaque. Infelizmente, depois de 1930, raros são os trabalhos sistemáticos sobre a cerâmica desta região, sendo, todavia, de destacar algumas contribuições particulares que têm sido publicadas e que serão de grande utilidade para o estudo exaustivo deste sector de atividade.

No entanto, a grande expressão, deixada sob diversos valores, permite dar continuidade a esta tradição, já que os valores estéticos subjacentes ao sector da cerâmica doméstica e decorativa (forma e decoração) são bem claros naquilo que se pode chamar valores identificativos: formas simples e funcionais decoradas com motivos expressivos que coabitam com grandes espaços nus.

Importava, reavivar na memória coletiva a noção da importância da cerâmica no contexto da região e do País. É que ainda há cem anos este sector de atividade, com mais de vinte fábricas de média e grande dimensão, representava a região como a mais importante do país.

Em cem anos, não só se perdeu a noção da importância deste sector de atividade, com as suas características de marcado cunho histórico-cultural, a que artistas tão bem conhecidos como Teixeira Lopes e Soares dos Reis deram uma profunda colaboração, como se esbateu e quase desapareceu a continuidade duma tradição, mesmo na componente humana indispensável á sua continuação.

A iniciativa corporizada na “Cerâmica do Douro” contem valores necessários ao reavivar das tradições cerâmicas da região.

O cuidado na fidelidade à continuidade, pelo que pressupõe de atualização, tendo em conta os novos conhecimentos tecnológicos e a consideração dos valores culturais como dinâmicos, garante que, se a comunidade assumir as responsabilidades de apoio e acarinhamento, poderemos voltar a contar com uma riqueza de que a região se orgulha.

A fábrica laborou normalmente até 2002, ano em que requereu, no Tribunal do Comércio de V.N.Gaia um P.E.R.E. (Procedimento Especial e Recuperação de Empresa), que foi aprovado pelos credores mas não teve sequência por parte destes, pelo que foi suspensa a laboração.