domingo, 5 de agosto de 2012

A Escravatura do século XXI

Olhando de relance a história da humanidade encontramos, quase permanentemente, a presença da escravatura nas relações económicas e sociais, com todo o seu cortejo de manifestações de violência, de exploração e de desumanidade. Também, ao longo da história, encontramos sempre relatos de protesto, de insubmissão e de revolta contra este tipo de aproveitamento do ser humano em proveito daqueles a quem coube o sortilégio de se situarem nos escalões mais elevados da escala social. Nos períodos seguintes às duas guerras mundiais do século passado, a corrente humanista que teve alguma importância no mundo conseguiu fazer aprovar a Convenção sobre a Escravatura em 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura … e Práticas Análogas à Escravatura em 1956, nas quais os Estados assumiram compromissos de nunca mais autorizarem determinadas práticas desumanas nas relações entre as pessoas e as instituições. Tais compromissos foram sucessivamente alargados e aprofundados em muitos instrumentos jurídicos internacionais das Nações Unidas, da Conselho da Europa, da União Europeia, da Organização Internacional do Trabalho, etc… E o que vemos neste início do século XXI? Será que os princípios subjacentes a estes referenciais jurídicos estão a ser respeitados? Infelizmente a resposta é negativa. O modelo de sociedade que hoje prepondera assenta em novas formas de escravatura e desumanidade que torna urgente a reflexão sobre a injustiça de uns viverem desafogadamente à custa do sofrimento e da míngua de recursos de muitos seres humanos. O desemprego, o trabalho precário, a prática de baixos salários, os horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, a substituição do direito ao trabalho pelo direito à rescisão do contrato de trabalho, são situações censuráveis que não encontram respaldo nas grandes orientações que devem balizar a convivência humana. Por outro lado, assiste-se ao reforço da exploração económica dos assalariados com a prática de preços nos serviços públicos essenciais (habitação, água, electricidade, transportes públicos, etc…), que cerceiam o seu acesso a quem somente dispõe de recursos escassos, tornando, por exemplo, quem tem rendimentos próximos do salário mínimo em carenciados sem condições de vida digna. Esta situação social, que caracteriza este início do século XXI, coloca-nos em presença de novas formas de escravatura e de relações sociais desumanas, sendo urgente lançar um repto a todos aqueles que se encontram a viver desafogadamente no sentido de examinarem a sua consciência, reflectindo sobre se não os incomoda viver num mundo tão desigual e desumano. Ainda por cima quando o seu viver desafogado assenta, por exemplo, em ter empregadas domésticas desmotivadas, em ter o lixo recolhido por lixeiros de baixa remuneração, em ter as suas cartas entregues por carteiros insatisfeitos, e, cúmulo das contradições deste modelo de sociedade, em poder ter sangue disponível para quando precisar, dado, gratuitamente, em esmagadora maioria pelos mais pobres e necessitados. Já pensaram no poder de que dispõem as empregadas domésticas, os lixeiros, os carteiros e os dadores de sangue? E quando estas pessoas, e outras com o mesmo perfil, decidirem usar o seu poder? Acontecerá o mesmo que aconteceu na história sempre que os escravos se revoltam? Temos de rapidamente inverter este modelo assente em novas formas de escravatura e de práticas desumanas nas relações entre pessoas. A corrente que hoje domina, obsessivamente assente em primados economicistas de défices, dívida pública, competitividade e saque dos bens públicos, tem de dar lugar a uma nova ordem política, económica, social e cultural em que o ser humano seja efectivamente portador duma dignidade por todos reconhecida.

sábado, 7 de julho de 2012

Panorama da Realidade Prisional

"Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas" - Frederic Ozanam “ As prisões… O sub-mundo dos ex-homens, dos malditos e dos proscritos, o lugar onde o homem acaba e a maldição começa.” – Emídio Santana. Panorama da Realidade Prisional. Há quarenta e três anos que os vicentinos da O.V.A.R. têm vindo a enriquecer o seu património afectivo e de conhecimento humano, de valores profundos, no seu contacto com os reclusos e suas famílias, nos estabelecimentos prisionais da diocese do Porto (Custóias, Paços de Ferreira, Santa Cruz do Bispo e Vale do Sousa), tentando transportar para dentro das prisões a mensagem cristã de fraternidade e para quem a ajuda, baseada numa cultura de esperança, pode representar um apoio de fortalecimento espiritual importante. E digo que os vicentinos se enriquecem porque o que recebem desse conhecimento do ser humano e das suas circunstâncias é muito mais do que aquilo que dão. E como é que isto acontece? É que não nos podemos esquecer que dentro das prisões estão pessoas. Pessoas como todas as outras, com defeitos mas também com qualidades (e tenho visto reclusos com mais qualidades do que têm pessoas que nunca foram presas), pessoas possuidoras de afectos, pessoas com famílias que as querem bem, pessoas que em fases da vida trilharam caminhos que as levaram à prisão. De todas as pessoas que tenho conhecido dentro da prisão, algumas a cumprirem penas pesadas por crimes graves, ainda não conheci nenhum caso em que colocando-me nas circunstâncias em que o crime foi cometido pudesse ter feito melhor do que agir como o recluso agiu. As circunstâncias e as suas condicionantes têm um peso que nos impede juízos implacáveis e definitivos. Continuamos na reflexão sempre inacabada entre o determinismo e o livre arbítrio. Isto não retira visibilidade às consequências, por vezes dramáticas, para as vítimas dos crimes que levam os perpetradores à prisão. Sempre que tomo conhecimento de violência criminosa fico perturbado com o grau de selvajaria de que as pessoas são capazes, assim como do sofrimento infligido às vítimas e suas famílias, interrogando-me do porquê da insuficiência duma cultura humanista na sociedade que, ao privilegiar a economia e a tecnologia, transforma as pessoas em seres produtores, descartáveis, com graves carências de ética e cidadania. As vítimas merecem uma profunda solidariedade da sociedade, enquanto a preocupação na ajuda aos reclusos centra-se na contribuição para a sua reinserção, redução da conflituosidade social e na criação de condições que evitem a reincidência na prática de actos socialmente censuráveis. A vida dentro da prisão tem requintes de crueldade, de desumanidade, de tortura e de degradação do ser humano. Este retrato tem vindo a ser mostrado ao longo anos por várias pessoas e entidades, algumas delas representando órgãos do poder político e judicial, mas, infelizmente, os alertas pouco êxito têm tido no tratamento e prevenção dos comportamentos anti-sociais. Por exemplo, neste mês de Junho de 2012, continuamos a assistir a um nível de aumento da população prisional sem paralelo na história recente, sendo que registando-se em 15 de Junho último o valor de 13.450 reclusos, o que nos aproxima já do valor máximo registado em 2003 (13.817 reclusos), tal origina problemas de sobrelotação das prisões (a lotação máxima é de 12.077 reclusos) com as consequências inerentes na degradação das condições de vida no interior das prisões como a falta de trabalho, diminuição do espaço vital, inferior qualidade da alimentação, aumento de conflituosidade, diminuição da segurança, etc… (não incluindo os condenados que cumprem penas de prisão por dias livres e prisão domiciliária – só nos últimos 10 anos estes tipos de penas aplicaram-se a mais de 5.000 pessoas). Por outro lado, não tem havido progressos na reinserção social dos reclusos, notando-se até uma diminuição da intervenção das estruturas oficiais da reinserção social (a integração da Direcção Geral da Reinserção Social na Direcção Geral dos Serviços Prisionais ainda não deu frutos conhecidos), a que não serão alheias as restrições orçamentais conhecidas e a falta de empenhamento político necessário. Isto reflecte-se na limitação das vias de reingresso dos reclusos na sociedade, proporcionando o prosseguimento dos caminhos que levam à transgressão e à prática de actos anti-sociais, com o consequente retorno à prisão. As limitações existentes à formação dos reclusos e o acesso destes a esses meios de formação e informação provocam dificuldades à melhoria da sua qualificação, agravando o inêxito observado na reinserção social. O facto dos reclusos não terem acesso à Internet e às tecnologias de informação e comunicação, além de poderem ser lesivas dos direitos dos reclusos, consignados nos referenciais jurídicos internacionais aplicáveis a todas as pessoas que se encontram em situação de detenção ou prisão, dificulta a sua defesa, o acompanhamento da evolução da sociedade e a sua formação educativa. Neste caso não será difícil imaginar a dificuldade dos reclusos prosseguirem estudos, reflectida nas baixas percentagens de aproveitamento escolar nas acções de ensino nas prisões (mais de 60% dos reclusos só têm o 6º ano ou menos de escolaridade). A simples enunciação dalguns aspectos da vida dentro dos muros das prisões, deve ser sempre relativizada face à gigantesca dimensão dos problemas quotidianos. A despersonalização dos reclusos pode começar pela apreensão dos seus documentos de identificação e acabar num mundo retratado por Kafka no seu livro “O Processo”. Recentemente verificou-se um agravamento das condições básicas necessárias a um mínimo de dignidade de vida para um ser humano. Desde a falta de produtos higiénicos (dentífricos, sabonetes, papel higiénico, etc…) que o Estado está obrigado legalmente a proporcionar, à quase inexistência de material escolar, à redução e/ou suspensão de apoio financeiro para aquisição de próteses dentárias, auditivas ou oculares, ao abaixamento da qualidade e quantidade da comida fornecida (Há concursos de fornecimento da comida às prisões de empresas com fins lucrativos, com valores de diárias para 4 refeições – pequeno almoço, almoço, jantar e reforço nocturno – por valores inferiores a € 5,00 diários), ao aumento das restrições de artigos que podem ser oferecidos aos reclusos (por exemplo, já só é possível oferecer a cada recluso 1 Kg de alimentos por semana), às limitações dos contactos telefónicos, até à sobrelotação das celas (em 31 de Dezembro de 2011 trinta dos quarenta e nove estabelecimentos prisionais albergavam reclusos em número superior á sua lotação e esta realidade agravou-se este ano), à inexistência na prática de apoio jurídico indispensável para quem se encontra a cumprir pena, aos comportamentos arbitrários de alguns funcionários e guardas prisionais lesivos dos direitos dos reclusos, ao pouco rigor e transparência na gestão do dinheiro dos reclusos à guarda dos estabelecimentos prisionais (não rendendo qualquer juro aos reclusos após anos em poder dos estabelecimentos prisionais), às limitações à vontade espontânea de celebrar cultos religiosos, etc…etc…etc…, são alguns dos muitos problemas que enfrentam quem se encontra dentro duma prisão. Com tudo isto fácil é imaginar o clima conflituoso que se vive dentro das prisões. Tal é retratado nos relatórios anuais dos estabelecimentos prisionais, onde são tipificadas infracções como atitude nocivas para com os companheiros; posse ou tráfico de dinheiro ou de objectos não consentidos; inobservância de ordens; linguagem injuriosa, insultos, ofensas ou difamação; ameaças, agressões e atitudes ofensivas para com os funcionários; detenção posse e introdução de estupefacientes; etc…, o que determina sanções disciplinares que incluem em número elevado o internamento em cela disciplinar. Por outro lado, constata-se um número elevado de recusas na concessão de saídas jurisdicionais, incluindo “precárias”, por parte do Tribunal de Execução de Penas, o que ao impedir o usufruto de algum tempo de liberdade provoca desânimo, desconforto e irritação nos reclusos. Também aqui se pode alegar que estas restrições podem estar em conflito com os normativos jurídicos internacionais (só as Nações Unidas aprovaram 22 normativos aplicáveis aos reclusos e às prisões) e, até, com o próprio Código de Execução de Penas. A situação do campo da saúde não é das mais recomendáveis. Quando nalguns estabelecimentos prisionais os reclusos têm, em média, mais de duas consultas médicas por mês e mais de trinta actos de enfermagem mensais, tem de se concluir que algo não está nada bem. Os números elevados de VIH/sida e hepatite B e C são disto reflexo. A visita recente do Comité contra a Tortura do Conselho da Europa detectou muitos destes problemas e certamente disso fará eco no seu relatório. Pena é que estes relatórios só venham a ser divulgados daqui por alguns anos, como foi no passado, dando a desculpa aos novos governantes de que as situações já não são as mesmas e que o que foi detectado não é da sua responsabilidade. O requisito da autorização dos Estados para a divulgação dos relatórios deveria ser alterado de forma a que eles pudessem ser públicos logo após as visitas de inspecção. A recente iniciativa dum conjunto de entidades nacionais para a organização de instituições que tenham no seu objectivo a efectivação de visitas às prisões no âmbito de prevenção e detecção da tortura, ao abrigo do Protocolo Adicional à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, será um passo positivo para uma melhor cidadania e respeito no interior dos estabelecimentos prisionais. Neste sector específico das prisões, Portugal tem indicadores que se afastam daqueles que são conhecidos na União Europeia. Por exemplo, ainda há poucos anos o Alto Comissário para os Direitos Humanos do Conselho da Europa chamava a atenção para o tempo demasiado longo que os reclusos portugueses cumprem de pena relativamente aos outros países da U.E. Em Portugal o tempo médio de cumprimento de pena era de 26 meses, enquanto a média da U.E. era de 8 meses. Este factor tem de ser tido em conta quando se ouve com frequência clamar por penas mais pesadas, sem se ter em conta se tal tem algum efeito na prevenção da criminalidade, na reinserção do recluso, no ressarcimento dos danos provocados às vítimas ou na protecção geral dos bens jurídicos da sociedade. Em termos mais profundos, é cada vez maior o sentimento dos especialistas internacionais sobre a ineficácia do actual modelo do sistema prisional, que tem tido, também em Portugal, acolhimento em muitas pessoas profundamente conhecedoras da realidade das prisões. A visão não muito longínqua de Michel Foucault é cada vez mais patente nos deficientes resultados que este modelo tem para mostrar. Aliás, esta ineficácia do modelo prisional é comprovada pelos estudos dos peritos internacionais que se debruçam sobre esta matéria. Em todo o mundo existiam em 31/12/2010 mais de 10,75 milhões de pessoas presas e em detenção, sendo a maioria nos Estados Unidos da América ( 2,29 milhões) e na China (estima-se em 1,6 milhões em prisões e mais de 600.000 em centros de detenção), o que representam os valores mais altos desde sempre. Portugal detém um valor de 120 reclusos por 100.000 habitantes, enquanto Espanha detém 159, a Grécia 102, a Alemanha 85, a Dinamarca, Noruega, Suiça e Suécia entre 70 e 80, o Brasil 253, o Japão 58, tendo estes valores vindo a crescer nos últimos anos. O crescimento da população prisional tem-se verificado sem que tal aumento tenha tido correspondência nos recursos humanos das prisões (técnicos e guardas prisionais) o que degrada a qualidade de prestação de trabalho destes profissionais, sendo frequentes as situações de conflito, prepotência, negligência, desrespeito, maus tratos e inobservância dos direitos dos reclusos. Este estado de coisas tem, inclusivamente, sido denunciado por estruturas representativas dos trabalhadores das prisões mas os resultados não têm sido de molde a alterar o quadro descrito. Aliás, o recurso a trabalhadores com contratos precários para funções com um nível elevado de exigência, como são alguns dos quadros técnicos, faz antever um agravamento da situação. O actual estado da situação prisional em Portugal tem, ainda, fortes implicações no seio das famílias. A reclusão, com a privação da contribuição dos reclusos para a estabilidade afectiva e económica das famílias, vem agravar a situação destas, com as consequências imagináveis na qualidade de vida dos seus membros e a afectação que tal provoca, nomeadamente, nas crianças e no seu rendimento escolar. Os dramas que testemunhamos na situação de muitas famílias deixam-nos sempre chocados impedindo a habituação que seria de esperar com a passagem dos anos a confrontarmo-nos com estas situações. A constatação da quebra significativa dos laços familiares com as situações de prisão dum dos seus membros é uma chaga à qual não podemos ser insensíveis, até porque é um factor de agravamento da situação social da sociedade. Com taxas de reincidência superiores a 50% não podemos deixar de pensar nas prisões como instituições fomentadoras da perpetuação da criminalidade. Além de que a análise do perfil dos novos reclusos tem mostrado uma ligação forte ao passado de reclusão de familiares próximos, situando-se, também, em mais de 50% a percentagem de reclusos cujos descendentes vão parar à prisão. A não se fazer uma modificação profunda no actual estado de coisas poderemos dizer que o povoamento das prisões está garantido, o que é dramático, estarrecedor, desumano e sinónimo da falência da sociedade enquanto entidade civilizada. Os responsáveis políticos do mundo (civis, militares e religiosos) têm de ser sensibilizados para a necessidade duma alteração profunda e urgente do modelo de sociedade que aceita estas prisões, deixando de fomentar políticas em que as pessoas são seres para o tecido produtivo e implementando uma verdadeira cultura humanista baseada em pilares de ética e cidadania. Frei Bento Domingues, na sua rubrica semanal do jornal Público de 31/07/2011, deixou-nos a sua visão do momento actual, a partir da Ode Marítima de Álvaro de Campos: “Alain Badiou considera a Ode Marítima um dos maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo, é impossível – e contudo real, que povos notoriamente orgulhosos da liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas, controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da discrição e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais, enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal, frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada, vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por uma publicidade asfixiante.” Esta inspiração na Ode Marítima faz-nos relembrar um dos seus trechos: “As viagens, os viajantes - tantas espécies deles! Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária. É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. Pobre gente! pobre gente toda a gente!” Um outro poeta, Dante Alighieri, na Divina Comédia, retrata o Vestíbulo do Inferno numa imagem que nos deve fazer reflectir. “O "Vestíbulo do Inferno" ou "Ante-Inferno" é onde estão os mortos que não podem ir para o céu nem para o inferno. O céu e inferno são estados onde uma escolha é permanentemente recompensada (de forma positiva ou negativa), devendo também existir um estado para quem optou pela negação da escolha, uma vez que recusar a escolha é escolher a indecisão. O Vestíbulo do Inferno é a morada dos indecisos e dos covardes que passaram a vida em cima do muro. Eles nunca quiseram assumir compromissos e tomar decisões firmes, por acharem que assim não se teriam de maçar a fazer alguma coisa. No Vestíbulo do Inferno os covardes são condenados a correr em filas atrás de uma bandeira, picados por vespas e moscões” Neste retrato do Inferno, Dante coloca-lhe um aviso na porta de entrada “Ó Vós que entrais abandonai toda a esperança”. Temos de impedir que tal aviso se possa aplicar aos reclusos quando entram nos estabelecimentos prisionais. Com estas III Jornadas de Reflexão esperamos dar alguns contributos para a melhoria da paz social, tendo em conta as orientações da Doutrina Social da Igreja e a mensagem cristã do perdão, da misericórdia e da caridade, assim como o legado de S. Vicente de Paulo e Frederico Ozanam de ajuda fraterna aos mais necessitados e fragilizados. A inexistência duma pastoral penitenciária em muitas dioceses portuguesas é uma grande dificuldade, pelo que teremos de continuar a sensibilizar as autoridades eclesiásticas para a sua criação. Não nos podemos esquecer que Jesus Cristo foi preso, torturado e crucificado, por, alegadamente, ter desafiado as leis do seu tempo e ter colocado em causa padrões de comportamento interiorizados na sociedade. Sejamos dignos do seu exemplo não esquecendo que, no pai-nosso, pedimos ao Senhor “…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…”. Será que a comunidade tem interiorizado este compromisso de perdão para com os reclusos que se encontram nas prisões? Aos responsáveis pelos destinos do mundo, que têm a responsabilidade pela existência das prisões, deveremos fazer-lhes presente a proclamação de Jesus Cristo na cruz “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Dia Mundial da Criança

Comemorou-se no dia 1 de Junho, em muitos países do mundo, o Dia Mundial da Criança, data marcante para que se celebrem, evidenciem e aprofundem questões importantes relacionadas com a vida das crianças. Esta data tem a virtude de ser mais uma oportunidade para se enfatizar a necessidade da comunidade dar mais atenção e empenhamento às muitas violações de direitos humanos de que as crianças são as principais vítimas. Neste dia 1 de Junho de 2012 é desolador continuarmos a assistir a situações particularmente gravosas para as crianças sem se ver particular vontade das autoridades em lhes pôr cobro. Desde a chaga da pobreza crescente ao direito aos tempos livres, dos maus tratos físicos e psicológicos ao malfadado estatuto do aluno. A pobreza crescente em muitos países do mundo, incluindo Portugal, arrasta para as crianças consequências dramáticas. A carência de alimentos afecta o aproveitamento escolar, provoca distúrbios físicos e psicológicos e traumatiza as crianças nessa situação. A privação de acesso a serviços públicos essenciais (água, luz eléctrica, aquecimento, etc…) impede o desenvolvimento equilibrado das crianças e cria complexos de inferioridade e vergonha inaceitáveis numa sociedade que se diz civilizada. Esta privação de usufruto de serviços públicos essenciais tem vindo a ser agravada com o corte do seu fornecimento por incapacidade económica dos agregados familiares em suportar o seu custo. O direito aos tempos livres continua a ser uma miragem para muitas crianças, caracterizada por uma escassez de tempo em meio familiar, assim como a ocupação do espaço de tempo disponível com outras tarefas (trabalhos escolares para casa, ginásios, natação, etc…). Os maus tratos físicos e psicológicos são uma chaga que persiste em atormentar as crianças, apesar da sua proibição nos referenciais jurídicos nacionais e internacionais, de que a frequente não consideração do interesse superior da criança nos processos de adopção é um exemplo chocante. Por outro lado, a mensagem de que as crianças não são seres inferiores aos adultos ainda não foi interiorizada por faixas alargadas da sociedade. Uma bofetada, um puxão de orelhas ou uma palmada nas nádegas, ou ameaças de castigos são tão erradas nos adultos como nas crianças. Não têm efeito pedagógico nem de correcção de comportamentos. E é proibido legalmente! O malfadado estatuto do aluno continua a não reconhecer às crianças o seu estatuto de ser humano digno e possuidor de direitos próprios e de todos os direitos dos adultos. A insistência em consagrar punições sem obedecer à regra jurídica de que tal só pode ser feito por uma entidade competente, independente e imparcial, é um atropelo gritante aos referenciais internacionais de direitos humanos, de que Portugal é Estado-Parte. O estatuto do aluno não pode parecer um código punitivo das crianças mas sim um instrumento que faça transportar para dentro das escolas os normativos e as recomendações do Conselho da Europa e do Comité dos Direitos das Criança da O.N.U. É tempo de as crianças verem o seu estatuto e os seus direitos respeitados. É tempo de a Convenção dos Direitos da Criança ser conhecida e respeitada por pais, professores e todos aqueles que lidam com crianças. Saudemos as crianças neste mês de Junho que contém o Dia Mundial da Criança, assegurando-lhes que nos empenharemos na defesa de quem tem poucos meios para assegurar a sua própria defesa: as crianças!

terça-feira, 22 de maio de 2012

Professoras heroínas

Há dezasseis anos que é professora do 3º ciclo do ensino básico e do secundário. Já passou por mais de vinte escolas. Já lhe passaram pelas mãos mais de mil alunos. Tem duas licenciaturas, já fez a profissionalização em serviço, continua ser professora contratada. Nuns anos é colocada logo no início do ano lectivo, noutros anos só é colocada muito depois do início das aulas. Nuns anos a colocação é feita para preenchimento dum lugar em aberto, mas, mesmo que seja para ocupar um lugar antes atribuído a um colega efectivo, continua a ser contratada só até ao final do ano lectivo. Noutros anos é contratada para substituir algum colega de baixa por doença ou alguém que morreu, ou se aposentou, antes do final do ano lectivo (estamos perante mais uma das situações em que a morte ou a doença de uns é a sorte de outros). Quase todos os anos passa longas horas nas filas dos Centros de Emprego e da Segurança Social para se candidatar ao subsídio de desemprego durante o tempo em que não está colocada. Umas vezes é colocada perto de casa. Noutras vezes tem de se deslocar mais de uma centena de quilómetros por dia. A remuneração, por ser professora contratada, é a correspondente ao índice mais baixo da carreira docente, mesmo sendo professora há 16 anos, não havendo lugar a diuturnidades nem a progressão na carreira. A solidariedade dos colegas efectivos está pelas ruas da amargura. A grande questão que mobilizou os professores efectivos desde há muitos anos foi a contestação ao modelo de avaliação, (aqui funcionou o corporativismo demagógico, com a liderança das estruturas sindicais dos professores dominadas pelos professores efectivos). Nesta questão magna da precariedade dos professores contratados não encontramos uma mobilização sequer parecida como a que se assistiu nessa contestação ao modelo de avaliação. Na análise das diferentes posturas comportamentais entre professores não se pode deixar, por exemplo, de ter em conta o menor absentismo dos contratados, já que a precariedade força posturas que raiam a desumanidade. E os alunos? Obviamente, os seus resultados são afectados por esta instabilidade do corpo docente. Mas, também aqui, parece que se quer empurrar as culpas do mau aproveitamento para o comportamento dos alunos ou dos pais, esquecendo que a escola e a sociedade têm graves responsabilidades na matéria. Esta questão da instabilidade na colocação dos professores é um aspecto importante para o facto do ensino público aparecer, na generalidade, abaixo das escolas privadas onde há maior estabilidade do corpo docente, Ninguém, que conheça esta realidade, pode negar que este factor é da maior relevância na qualidade do ensino. O relatório que a OCDE divulgou recentemente sobre o estado da educação em Portugal (OECD Reviews of Evaluation and Assessment in Education – Portugal) é revelador dos erros que têm de ser corrigidos. Alguns ainda tentam esconder a realidade com meia dúzia de indicadores positivos. Mas, o relatório tem mais de quatrocentos indicadores e na maioria deles Portugal fica mal na fotografia. Perante este quadro, as muitas dezenas de milhar de professores contratados têm sido uns heróis. Mas é preciso honrar os heróis e não maltratá-los mantendo-os em situação precária, deprimente e lesiva do seu equilíbrio emocional e das suas famílias.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O que Nenhum Governo nos Pode Tirar

É cada vez mais consensual considerar a fase da história que atravessamos como a mais problemática socialmente desde a 2ª guerra mundial, podendo eu confirmar tal constatação já que pertencendo à geração dos actuais sexagenários este período está a ser por mim vivido.
Sou testemunha do baixo ponto civilizacional a que descemos, caracterizado com a desumanidade patente nos mais variados aspectos, desde o desemprego galopante à repressão asfixiante, modelo este estimulado por uma classe política boçal, que ocupa os lugares da governação, sem padrões culturais assentes em pilares de ética e cidadania e com manifestações arrepiantes de ignorância, prepotência e oportunismo.
A inversão do caminho para o inferno tem de ser conseguida com a prática de outros valores e com outros guias, que não permitam que nos limitem nas mais elementares aspirações, que não permitam que nos queiram tirar tudo.
Felizmente, ainda há coisas que, por muito que queiram, nenhum governo nos pode tirar.
Não nos podem tirar, por exemplo, a beleza dum pôr do sol, a tranquilidade do nascer do dia, a graciosidade do voo das andorinhas, a nostalgia do adágio de Albinoni, o desejo na Garota de Ipanema, a força do querer duma criança, o encanto dum concerto para violoncelo de Elgar, a luminosidade do luar de Janeiro, o prazer do acto de amor, a paz do parque da cidade numa tarde de sol de Inverno, a sabedoria das experiências da vida, a verdade que nos espera patente no requiem de Mozart ou de Verdi, a generosidade dos pobres ajudando desinteressadamente, o sabor dos alimentos de que gostamos, a recordação dos momentos vividos, o chilreio dos pássaros na Primavera, o gosto da leitura dum bom livro, a alegria das marchas de John Philip de Sousa, a calma do crepitar duma lareira, o poder ingénuo duma criança em enfrentar o sofrimento, a grandeza da paz no interior duma igreja, o amor e a rebeldia da transgressão na música dos Beatles, o querer em não repetir os erros cometidos, a beleza do arco-íris, o desejo da liberdade num recluso, o convívio com os bons amigos, o amor dos nossos entes queridos, a poesia (en)cantada por muitos músicos desde o Zeca Afonso à Amália Rodrigues, o recolhimento da participação numa missa de exéquias de alguém que nos tocou de perto, o estar acima dos interesses mesquinhos, o sentir do prazer de dar de forma anónima e desinteressada, o sorriso sempre sincero das crianças.
Nada disto pode ser tirado por qualquer governo, Nem sequer (ainda) objecto de qualquer imposto ou penhora.
Quando estivermos perante qualquer dos problemas de que a vida é, cada vez mais, madrasta em nos colocar, centremo-nos em qualquer dos bens referidos de que todos somos beneficiários.
É certo que o actual modelo de sociedade em que vivemos nos coloca perante confortos e necessidades que tornam a vida mais sadia e mais cómoda (habitação climatizada, água canalizada no domicílio, electricidade em todas as partes da casa, transportes públicos, etc…) mas, cada vez mais, estas comodidades são-nos disponibilizadas por quem se encontra no poder a troco de sacrifícios que nem todos estão a conseguir suportar. Esta degradação civilizacional acentua-se em contraponto com as mordomias obscenas de que beneficiam os detentores do poder político-financeiro, acentuando-se o fosso entre pobres e ricos, tornando os ricos mais ricos e os pobres mais pobres.
Enquanto não conseguirmos encontrar a via que nos livre daqueles que, de forma bruta e desumana, nos exploram, oprimem e asfixiam, gozemos o conjunto de coisas que nenhum governo ainda não nos pode tirar.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

O Julgamento da História

Passados setenta anos da 2ª guerra mundial continua sem resposta a pergunta de como foi possível a prática das atrocidades conhecidas. Ainda há dias, num programa de TV, foi exibida uma reportagem sobre os orfanatos no Goulag, na Rússia, mostrando-nos os horrores sofridos pelas crianças que por lá passaram. Passados setenta anos continua a não se vislumbrar qualquer razão para as crianças terem sido submetidas a tais sofrimentos, não se podendo justificar o poder político de então por determinar essas práticas desumanas.
Ao ver essa reportagem televisiva questionei-me: o que dirão de nós, daqui por alguns anos, quem assistir, nessa altura, a um eventual programa de televisão com retratos da situação social neste ano de 2012? O que dirão de nós por assistirmos quase passivamente à existência, só em Portugal, de mais de 400.000 desempregados sem qualquer fonte de rendimento? O que dirão de nós que sabemos que muitas dezenas de milhar de crianças vão para a escola sem terem feito os trabalhos de casa por não disporem de luz em suas casas (cortada por falta de dinheiro para a pagar)? O que dirão de nós que sabemos que essas mesmas crianças já nada têm que comer e beber em casa (a água também foi cortada pela mesma razão de ausência de rendimento)? O que dirão de nós que sabemos pela comunicação social da morte de idosos abandonados sem nada mudarmos nas nossas relações com os pais ou avós? O que dirão de nós que sabemos da existência duma mendicidade institucionalizada e dum número crescente de sem abrigo? O que dirão de nós que sabemos do despejo de famílias que deixaram de poder pagar as prestações das suas casas, ficando estas vazias anos e anos após o despejo? O que dirão de nós que sabemos que esta pobreza coabita com ricos, podres de ricos, e governantes bem instalados na vida? O que dirão de nós que sabemos que esta pobreza convive com situações escandalosas de corrupção, confisco, nepotismo e compadrio? O que dirão de nós que continuamos a mandar para prisões medievais os desafortunados da vida? O que dirão de nós que criamos organizações de direitos humanos, de consumidores, de rotários, de obediências maçónicas, de confissões religiosas, etc…, que deviam impedir que isto acontecesse mas que parece que se auto comprazem com pouco mais do que a sua mera existência?
Muitos dos responsáveis de há setenta anos alegaram que desconheciam a situação. Nós não vamos poder apresentar a mesma desculpa. Como disse a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.
E não temos vergonha de estarmos a ter este comportamento cúmplice e comprometedor? Não temos vergonha do que vão dizer de nós no futuro?
Que raio de sociedade esta em que vivemos!

domingo, 29 de janeiro de 2012

1984

George Orwell escreveu, há mais de meio século, o romance titulado 1984, em que nos alertava para as consequências da vivência numa sociedade totalitarista assente na vigilância permanente de todas pessoas.
Lembrei-me desta obra literária quando, no passado mês de Dezembro, tive conhecimento do parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) no qual esta entidade dava parecer negativo (por unanimidade dos seus membros) à proposta do Governo relativa à videovigilância. Na base deste parecer ressalta o perigo da invasão do direito à privacidade constante da Constituição da República Portuguesa e dos referenciais internacionais aos quais Portugal está obrigado por força da sua ratificação, nomeadamente do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos.
É bom ter em conta que a referida Comissão Nacional de Protecção de Dados foi criada especificamente para defender os cidadãos perante o abuso no tratamento dos seus dados, de que os relativos à identificação assumem importância primordial. Neste sentido, qualquer sistema de tratamento de dados, no qual se inclui a videovigilância, tem de obter aprovação prévia dessa Comissão. Assim sendo, seria de esperar que o Governo acatasse o parecer e introduzisse as correcções necessárias no proposta legislativa que não implicassem violação do direito à privacidade a que todos os cidadãos têm direito. Mas não. O que o Ministro da Administração Interna declarou é que vão alterar o quadro legislativo retirando a exigência de aprovação da CNPD, já que os objectivos da videovigilância podem não ter em conta o direito à privacidade! Isto é uma barbaridade civilizacional. Será que o Senhor Ministro já leu o romance 1984?
Este é mais um dos aspectos que nos levam a afirmar que estamos a atravessar um período negro na história da humanidade. Já não é só o problema do desemprego, do aumento da pobreza, da desestruturação da família, das perspectivas sombrias de futuro para as crianças e jovens, da conflitualidade crescente na sociedade que se reflecte no aumento da criminalidade e do número de presos nas cadeias. É, também, com a secundarização do direito das pessoas a serem livres sem estarem a ser permanentemente vigiadas. Perante isto só resta encontrar o caminho da desobediência civil na defesa dos mais elementares princípios civilizacionais.
Também na obra literária 1984 a personagem central do romance, Wiston Smith, sentiu na pele as consequências tenebrosas da falta de liberdade e da ilusão que a vigilância pode ser um caminho para a segurança. Todos os indicadores, de natureza filosófica ou de dados estatísticos, vão no sentido contrário. Só na Inglaterra há mais de quatro milhões de câmaras instaladas no espaço público e esse País tem a maior criminalidade e o maior número de presos nas prisões de toda a sua história. O caminho da repressão e da videovigilância não são sinónimos de menos crimes, não têm efeito dissuasório. Só uma cultura de liberdade, de paz, de igualdade e de fraternidade conduzem a melhor convivência entre os povos.
A Novilíngua e o Big Brother de 1984 mostram que caminhos não devemos trilhar.

Noite de Passagem de Ano

Gracias à la vida que me há dado tanto.
Das versões que conheço desta bonita canção, gosto particularmente da interpretada por Mercedes Sosa. Lembrei-me desta parte do poema quando na noite de passagem de ano me deparei com uma inesperada beleza de dádivas protagonizadas por aquilo a que chamamos comunidade das pessoas.
Quando combinei, na véspera do dia 31, com alguns familiares e amigos que iríamos comemorar a passagem do ano na baixa do Porto estava longe de pensar que iria participar numa noite inolvidável. Numa altura em que a crise, com todas as componentes dramáticas e preocupantes como é caracterizada, parece levar as pessoas para um comportamento triste e insípido, foi uma surpresa ver todo o espaço do centro da baixa do Porto inundado de tantas pessoas como nunca tinha visto, mesmo nas muitas manifestações, vitórias do F.C.Porto e festas de S. João em que já participei. As Praças da Liberdade, General Humberto Delgado, Avenida dos Aliados e ruas adjacentes estavam pejadas de pessoas de todas as raças, muitas nacionalidades, e de todas as idades e estratos sociais. Pelas informações dadas pela comunicação social, em muitas cidades do mundo verificou-se igual avalanche de pessoas.
Esperava que estivessem muitas pessoas, como tem sido tradição em anos anteriores, mas a dimensão verificada deixou-me estupefacto. O que levou tantas pessoas a virem para a rua confraternizarem em ambiente alegre e fraterno (Não, não foi só a falta de dinheiro pois vi muita gente de estatuto económico que lhes permitia estarem em ambientes que não a rua)? Que efeito teve naquelas pessoas o clima que tem vindo a ser criado de preocupação e austeridade? Como é que se conseguiu uma tão grande mobilização se nem sequer houve qualquer campanha publicitária sobre o evento ou outras acções de propaganda como são feitas por organizações conhecidas? Repito: o que levou aquele mar de gente à baixa do Porto se nem sequer se tratava de qualquer acção em prol de benefício directo dos participantes?
Desejei que naquela altura estivesse lá qualquer responsável governamental, ou da famigerada Troika, para que se interrogassem sobre o efeito das suas acções no comportamento dos portugueses. Provavelmente pensariam: estes portugueses são loucos para se comportarem assim numa altura de tão grande crise económica.
Na verdade, uma ilação a tirar é a de que os portugueses, sempre que puderem, estão-se marimbando para as indicações dessas senhoras e senhores do poder político e económico. É certo que esta gente está a atirar uma massa enorme de pessoas para a miséria e para a exclusão social, de forma injusta e desumana, com as decisões que tomam, gerando situações deprimentes e injustificadas, com o correspondente abrir de caminho para actos que noutras alturas seriam claramente anti-sociais mas que, na situação actual, são actos de desespero, tais como roubos, assaltos e outros actos que permitam às pessoas que são atiradas para a margem o acesso às condições básicas que as mantenham vivas (Fica um travo na garganta pelas pessoas vítimas desses actos).
A noite de passagem de ano na baixa do Porto foi uma bofetada naqueles que decidiram o modelo que nos governa. Demonstrou que as pessoas não querem perder o seu sentido humano e fraterno. Até parece que houve uma mãozinha divina ao inspirar todas aquelas pessoas para se juntarem em alegre convívio, sem nada ganharem em troca, excepto a mais importante força que nunca deveremos perder: a sadia convivência humana. E ainda por cima o fogo de artifício foi muito bom (parabéns aos trabalhadores que o fabricaram e manipularam).
Que grande noite de passagem de ano!
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Gracias a la vida que me ha dado tanto
Me ha dado el sonido y el abecedario
Con él, las palabras que pienso y declaro
Madre, amigo, hermano
Y luz alumbrando la ruta del alma del que estoy amando