domingo, 15 de novembro de 2015

O Trabalho no Século XXI

1 - Introdução ................................................................................................... Ao longo da história, o trabalho tem assumido diferentes facetas marcadas pelos contextos políticos, económicos e sociais em que se tem desenvolvido. Também, a finalidade do trabalho tem vindo a sofrer mutações, desde a disponibilização de bens para a satisfação de necessidades vitais até ao contributo para o lazer e conforto pessoal. Uma forma de trabalho que tem estado sempre presente, legal ou ilegalmente, relaciona-se com o trabalho escravo, em níveis variáveis com a época e o espaço geográfico em que se desenvolve, sendo consensual a definição de trabalho: qualquer atividade física ou intelectual cujo objetivo é extrair, produzir ou transformar bens ou serviços. Chegados ao século XXI, importa ver como se enquadra o trabalho no modelo de sociedade neoliberal presente na maior parte do mundo e perspectivar o seu desenvolvimento futuro. Dada a vastidão desta temática, apenas vou introduzir alguns contributos e indicar alguns exemplos que ficarão longe de esgotar aquilo que se pode dizer sobre o trabalho no século XXI. ............................................................................................................... 2 - Os referenciais jurídicos internacionais Dois importantes marcos ocorreram no século XX que deveriam passar a nortear, a partir do seu surgimento, todas as formas de trabalho: A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a criação, em 1919, da Organização Internacional do Trabalho. A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra no seu artigo 23º: “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego”. Por outro lado, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) desenvolve o seu objeto no âmbito da redução da pobreza, de uma globalização justa e na melhoria das oportunidades para que todas as pessoas possam ter acesso a trabalho digno e produtivo em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana, tendo o seu mandato assente nas vertentes do Emprego, Protecção social, Diálogo social e Direitos no trabalho. E qual é o grau de observância destes referenciais neste início do século XXI? E qual a perspectiva de futuro? Recentemente, o filósofo grego contemporâneo Christos Yannaras, em entrevista ao jornal Público, considerou que estamos numa fase de final de ciclo: “O paradigma da primazia absoluta dos direitos do indivíduo está a desfazer-se…” e “… .Quando a economia se autonomiza em relação à sociedade, quando a política se autonomiza, isto significa que a sociedade não pode ir mais além. É uma crise de vida ou morte.”, considerando ainda que não é só uma crise económica mas uma crise do sentido da vida, já que a economia está a prevalecer sobre a amizade, o amor, a cultura e a expressão artística. Façamos, então, uma apreciação à situação actual do trabalho e sua perspectiva futura, quer nas implicações nas pessoas dos trabalhadores, quer nas mutações no tecido empresarial resultantes da globalização e da ascensão da electrónica aplicada a todas as vertentes do processo produtivo. Após as melhorias verificadas nos cerca de quarenta anos seguintes à segunda guerra mundial, com o gradual aumento qualitativo da dignidade na prestação do trabalho, caracterizado por aumento de salários, redução de horário de trabalho, férias pagas, maior segurança no trabalho, sistemas de protecção social, diminuição na penosidade dalgumas funções e limitações aos despedimentos, tudo isto com progresso económico e social e crescimento na economia, assistiu-se, nos últimos trinta anos, a um retrocesso que torna já quase utópico o modelo que se viveu. Atualmente verifica-se a implementação de formas aviltantes de prestação de trabalho, não sendo polémico identificá-las como as novas formas de escravatura, dando continuidade à escravidão como forma de trabalho que, ao longo da história, foi predominante, apesar de, a partir de meados do século XIX, ter começado a ser declarada ilegal mas continuando a existir ilegalmente e com novas formas. Os três grandes argumentos para a criação da O.I.T. continuam a ter plena aplicabilidade: - humanitários: condições injustas, difíceis e degradantes de muitos trabalhadores; - políticos: risco de conflitos sociais ameaçando a paz; - económicos: países que não adotam condições humanas de trabalho são um obstáculo para a obtenção de melhores condições noutros países, gerando desigualdade de concorrência. Será que podemos assegurar que a dinâmica em curso persegue estes objectivos da O.I.T.? Ou está a afastar-se da sua orientação? ......................................................................................................................... 3 - A erosão dos direitos humanos no mundo do trabalho Ricardo Antunes, sociólogo brasileiro, no seu artigo “Os dilemas do trabalho no limiar do século XXI” diz-nos: “Em plena eclosão da mais recente crise financeira, estamos constatando a corrosão do trabalho contratado, a erosão do emprego regulamentado, que foi dominante no século XX e que está sendo substituído pelas diversas formas alternativas de trabalho e subtrabalho, de que são exemplo o “empreendedorismo”, o “trabalho voluntário”, o “cooperativismo”, modalidades que frequentemente “substituem” o trabalho formal, gerando novos e velhos mecanismos de intensificação e mesmo auto-exploração do trabalho. Os modos de precarização do trabalho, o avanço tendencial da informalidade, o desemprego dos imigrantes, tudo isso acentua o tamanho da tragédia social em que estamos envolvidos. O emprego assalariado formal, modalidade de trabalho dominante no capitalismo da era taylorista e fordista, que magistralmente Chaplin satirizou em Tempos modernos, está-se exaurindo e sendo substituído por formas de trabalho que nalguns casos se assemelham às da fase que marcou o início da Revolução Industrial.” Michel Foucault constata que este comportamento dos seres humanos resulta de: “... O poder dos séculos XIX e XX foi exercido, muito menos, por meio de coacção física do que com instituições que funcionam como cárceres, que incluem não só a prisão mas, também, a fábrica, a escola e a disciplina psicológica da vida militar.(...) A razão primitiva e tecnologia disciplinar moldam seres humanos passivos em objectos do poder. A tecnologia disciplinar e ciência social normativa unem-se para criar o “homem aceitável”, o cidadão manipulado do mundo moderno...”. Com a erosão dos direitos humanos no mundo do trabalho, assiste-se a um regresso à “selva” e a uma progressiva desproteção do direito à dignidade. Assim sendo, o acesso ao mercado de trabalho e suas formas de prestação têm vindo a ser, progressivamente, caracterizados pela precariedade, subcontratação, falso emprego e falso trabalho independente (estagiários e recibos verdes), subemprego, trabalho informal e emprego com baixos salários, reduzindo os custos do trabalho na formação dos preços dos produtos e permitindo o aumento da procura (veja-se, por exemplo, o crescimento do turismo nos últimos anos em Portugal) assente em condições degradantes de trabalho. Esta situação atinge particular dimensão nos jovens, assistindo-se à sua utilização abusiva como estagiários que não são mais do que trabalhadores precários gratuitos ou mal pagos. Com a erosão dos direitos humanos no mundo do trabalho, assiste-se a um regresso à “selva” e a uma progressiva desproteção do direito à dignidade. Assim sendo, o acesso ao mercado de trabalho e suas formas de prestação têm vindo a ser, progressivamente, caracterizados pela precariedade, subcontratação, falso emprego e falso trabalho independente (estagiários e recibos verdes), subemprego, trabalho informal e emprego com baixos salários, reduzindo os custos do trabalho na formação dos preços dos produtos e permitindo o aumento da procura (veja-se, por exemplo, o crescimento do turismo nos últimos anos em Portugal) assente em condições degradantes de trabalho. Esta situação atinge particular dimensão nos jovens, assistindo-se à sua utilização abusiva como estagiários que não são mais do que trabalhadores precários gratuitos ou mal pagos. ......................................................................................................................... 4 – A escravatura moderna O modelo de sociedade que hoje prepondera assenta em novas formas de escravatura e desumanidade tornando urgente a reflexão sobre a injustiça de uns viverem desafogadamente à custa do sofrimento e da míngua de recursos de muitos seres humanos. Quando o salário médio em Portugal (INE-2014) ronda os € 813,00 e cerca de 40% dos portugueses têm os seus rendimentos abaixo da fasquia dos € 600,00, facilmente se constata o grau de carências que os afeta. O desemprego, o trabalho precário, a prática de baixos salários, os horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, a substituição do direito ao trabalho pelo direito à rescisão do contrato de trabalho, são situações censuráveis que não encontram respaldo nas grandes orientações que devem balizar a convivência humana. Um estudo publicado em 15 de Junho último pelo Fundo Monetário Internacional - Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspective - afirma que o impacto da flexibilização do mercado de trabalho aumentou os níveis de desigualdade. O FMI diz que "a suavização da regulação no mercado de trabalho está associada a uma desigualdade na sociedade e a um aumento do peso do rendimento dos 10% mais ricos", explicando que "a flexibilidade do mercado de trabalho beneficia os ricos e reduz o preço de negociação dos trabalhadores de mais baixos rendimentos". Afirma ainda que a desigualdade está ao "mais alto nível em décadas" e que uma maior desigualdade tem como consequência um abrandamento do crescimento da economia. Esta situação atinge contornos de maior gravidade nos jovens, estimando a O.I.T. em 73,4 milhões o número de jovens, entre os 15 e os 24 anos, desempregados em todo o mundo (12 milhões na Europa), sendo superior a 40% a percentagem dos que estão empregados que trabalham a tempo parcial (menos de 30 horas por semana) com salário reduzido. Em Portugal o desemprego afeta 35% dos jovens, e 40% pensam deixar o país. Por outro lado, assiste-se ao reforço da exploração económica dos assalariados com a prática de preços nos serviços públicos essenciais (habitação, água, electricidade, transportes públicos, etc…), que cerceiam o seu acesso a quem somente dispõe de recursos escassos, tornando, por exemplo, quem tem rendimentos próximos do salário mínimo em carenciados sem condições de vida digna. O sociólogo António Pedro Dores em comunicação recente “Democracia Verdadeira” pergunta: “… .Perante a crise – que não é apenas ficção, tem uma base real – quais são as defesas dos povos transformados em consumidores compulsivos e impotentes perante os sistemas produtivos cada vez mais potentes e capazes de criar exércitos proletários de reserva a nível mundial?...” Esta situação social, que caracteriza este início do século XXI, coloca-nos em presença de novas formas de escravatura e de relações sociais desumanas, sendo urgente lançar um repto a todos aqueles que se encontram a viver desafogadamente no sentido de examinarem a sua consciência, reflectindo sobre se não os incomoda viverem num mundo tão desigual e desumano. Ainda por cima, quando o seu viver desafogado assenta, por exemplo, em ter empregadas domésticas desmotivadas, em ter o lixo recolhido por lixeiros de baixa remuneração, em ter as suas cartas entregues por carteiros insatisfeitos, e, cúmulo das contradições deste modelo de sociedade, em poder ter sangue disponível para quando precisar, dado, gratuitamente, em esmagadora maioria pelos mais pobres e necessitados. Já pensaram no poder de que dispõem as empregadas domésticas, os lixeiros, os carteiros e os dadores de sangue? E quando estas pessoas, e outras com o mesmo perfil, decidirem usar o seu poder? Acontecerá o mesmo que aconteceu na história sempre que os escravos se revoltam? André Gorz, filósofo austro-francês, no seu livro Metamorfoses do Trabalho, diz-nos que o trabalho deveria permitir que o reino da necessidade cedesse lugar ao reino da liberdade mas que não está organizado para tal, estando a actividade produtiva cortada do seu sentido, das suas motivações e do seu objecto, para tornar-se um simples meio de ganhar um salário, sendo o tempo de trabalho e o tempo de viver realidades separadas, com o trabalho, as suas ferramentas e os seus produtos a adquirirem uma realidade separada do trabalhador, como coisas estranhas. ..................................................................................................................... 5 – A inovação tecnológica permanente O mercado de trabalho tem evoluído, e continuará a evoluir, também, condicionado pelas novas formas de prestação resultantes da influência da evolução célere e imparável das TICs e das novas tecnologias e ferramentas. Esta inovação tecnológica permanente arrasta para novos tipos de trabalho, de que o aumento exponencial da robótica, do teletrabalho, da transferência espacial do trabalho intelectual (das empresas para o espaço pessoal ou estandardizado como, por ex: call-centers, serviços associados a fornecedores de bens, traduções, etc…), exigindo qualificações e requisitos aos trabalhadores que os obriga a formação contínua com o consequente investimento. A mobilidade, o domínio das ferramentas da informática, a flexibilidade na adaptação a novas actividades, a formação permanente, serão as características que enformarão os profissionais do futuro desde o médico às empregadas domésticas. Estima-se que 90% de todos os empregos necessitarão de formação digital, com a prestação de serviços e as actividades liberais como áreas mais procuradas. Paralelamente, assiste-se a uma evolução da organização das empresas, transformando as empresas de modelo tradicional, que possuíam nos seus quadros todas as valências de profissionais necessários ao seu objecto social, nas empresas atuais que são meras gestoras de outras empresas de subcontratação que, em conjunto, preenchem todas essas valências. A aposta crescente das empresas é em investimento tecnológico e nas exigências de gestão, passando os quadros de pessoal a serem considerados um fardo que importa reduzir à menor dimensão possível, em termos de número e em termos de custo. Esta separação do trabalho dos desejos de vida do trabalhador está a ganhar relevância crescente com a mutação acelerada para novas profissões e novos produtos, potenciada com a evolução do conhecimento científico e tecnológico a um ritmo sem precedentes. A polivalência, que caracteriza a dinâmica em curso, ao mesmo tempo que torna os trabalhadores conhecedores de mais actividades produtivas, introduz uma diminuição afectiva na relação pessoal com a função, já que a rotação frequente de funções impede o aprofundamento do amor que só a estabilidade no tempo o permite, além de que não possibilita o conhecimento profundo de qualquer actividade. Por outro lado, o acesso ao conhecimento está mais facilitado do que nunca e vai estar cada vez mais acessível. A internet e as novas tecnologias de informação e comunicação permitem uma formação e uma informação que torna mais rápida a aquisição de conhecimentos, contribuindo para a exigida versatilidade dos recursos humanos. A robótica e a mecanização crescente de muitas actividades estão a diminuir a penosidade do trabalho, mas este benefício é substituído por exigências crescentes de produtividade, não proporcionando directamente um aumento de qualidade de vida. António Vilar, no seu artigo “A revisão do código do trabalho ou os trabalhos de Penélope” diz que “… para mudar o mundo - ou para acompanhar a sua inevitável transformação - há que mudar de paradigma, também, no campo das relações de trabalho”. As implicações destas novas formas de trabalho, o mercado laboral em acelerada mutação e o aparecimento de novas actividades e funções, com a exigência permanente de flexibilização da legislação laboral, estão a provocar alterações profundas no direito do trabalho e no pensamento económico, de que alguns pensadores têm dado conta. Michel Onfray, filósofo francês contemporâneo, no seu Tratado de Insubmissão e Resistência – A Política do Rebelde, define a servidão “…como a situação na qual se encontra uma pessoa para quem os deveres que lhe são exigidos são superiores aos direitos que usufrui. Portanto, onde se encontram os tiranos e os escravos? Quem poderá afirmar que o social ainda respeita os deveres que lhe incumbem relativamente aos indivíduos, nomeadamente do fim para que é constituído?: a protecção de todos os contratantes e de todos aqueles que aceitaram, tacitamente, o princípio do contrato social. Que se pode exigir a tais indivíduos, em matéria de deveres, quando a sociedade, e com ela o político, já não honram nada do que constituiu o pacto, nomeadamente, em matéria de segurança, dignidade e satisfação das necessidades elementares?” .................................................................................................................... 6 - Os parceiros sociais: Que representatividade? E, aqui, importa dar nota da alteração profunda do papel que estão a desempenhar as cúpulas dos denominados parceiros sociais, sindicatos e associações patronais, que se transformaram de representantes dos seus associados e da defesa dos seus interesses (trabalhadores e empresas) em colaboradores das estratégias dos grandes interesses políticos, económicos e financeiros, pelo que não é de estranhar a crescente falta de representatividade dessas estruturas, provocada pela desmobilização e pouca apetência pelo associativismo de classe. Esta carência de representatividade é agravada pelo pouco sentido dos Estados no cumprimento das suas responsabilidades. Na verdade, os Estados não estão a honrar os compromissos que assumiram ao ratificar os tratados, convenções e outros instrumentos jurídicos internacionais em geral e no campo do trabalho em particular. E fazem-no de forma grosseira e enganadora, como seja a manipulação das estatísticas do desemprego, querendo fazer crer que pessoas desempregadas o não sejam. Tal é evidente ao não considerar os desempregados que desistiram de ir aos centros de emprego (são seres vivos mas mortos para as estatísticas), assim como como considerar como empregados os desempregados inseridos nos contratos emprego-inserção (contratos temporários e, muitas vezes, com funções desadequadas ao perfil do desempregado), que não são mais do que formas de evitar a contratação de pessoas para postos de trabalho necessários à vida normal das entidades em que tal ocorre, assim como uma forma encapotada de não pagar a remuneração total correspondente ao lugar em questão. E, assim, estamos a assistir à consideração do trabalho como determinado unicamente pela rentabilidade económica e não para a satisfação de necessidades sociais, marginalizando actividades úteis mas pouco rentáveis e marginalizando, também, as pessoas afectadas por patologias, malformações ou qualquer outra mancha que não seja a cor do que se convenciona chamar de normal. É sustentável e defensável este modelo de organização empresarial e de concertação social? Como irá evoluir a gestão das organizações e qual será o enquadramento do trabalho? Se perspectivarmos o futuro como resultante do presente teremos de concluir que se poderá assistir a um aprofundamento do domínio pelo poder económico-financeiro, com as consequências inerentes, nomeadamente na subalternização do fator da dignidade humana como vetor determinante da economia. Esta desumanização já é, na actualidade, uma característica evidente, de que são exemplos a criação de figuras jurídicas empresariais de gestão de topo para camuflar os responsáveis (fundos de investimento, holdings, subcontratação, etc…) e a desregulação do trabalho na garantia dos salários e condições de prestação. Só que não se me afigura possível a continuação de tal caminho, já que, como ao longo da história aconteceu, a brutalidade acaba por gerar uma reacção com as consequências inerentes. As ditaduras, de que esta, económica-financeira, é um novo exemplo, acabam sempre por soçobrar e os políticos que lhes dão cobertura não costumam ter um fim prestigiante. Os ditadores vão tendo a noção de que o seu poder tem pés de barro mas, enquanto lá estão, aproveitam a circunstância para saquear e precaver o seu futuro. Passeiam-se em limousines de luxo, reúnem-se nos salões aveludados dos palácios, banqueteiam-se com ingredientes caros e sumptuosos, colocam os amigos e familiares em posições privilegiadas, insultando ostensivamente aqueles que são obrigados a permitir-lhes tais benesses. Como e quando soçobrará esta ditadura é um exercício de futurismo mas, face à indefensabilidade deste modelo como base de evolução, antevejo que o trabalho no final do século XXI não será um prolongamento da situação actual, já que o aviltamento da dignidade do ser humano acabará por dar lugar a uma nova era onde a luz imperará sobre a escuridão. ......................................................................................................................... 7 – A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade ............... Fernando Pessoa, com o heterónimo Álvaro de Campos, na sua Ode Marítima diz-nos a dado passo: ................. Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária. É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. Pobre gente! pobre gente toda a gente!” ...................................................................................................... Frei Bento Domingues, do movimento N.S.I. (Nós Somos Igreja) numa das suas crónicas de Domingo no jornal Público, referiu: “Alain Badiou, filósofo francês de origem marroquina, que considera esta Ode Marítima como um dos maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo, é impossível – e contudo real, que povos notoriamente orgulhosos da liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas, controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da discrição e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais, enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal, frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada, vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por uma publicidade asfixiante.” Esta aproximação do trabalho no século XXI à introdução de formas de uma nova escravatura não é uma metáfora. Falamos mesmo de escravos. Não só de seres humanos que vivem como escravos, trabalhando por um salário miserável. Não são também os escravos de há 200 anos. Falamos dos muitos milhões de pessoas que, em todo o mundo, incluindo Portugal, são compradas, vendidas e alugadas, exploradas e brutalizadas para dar lucro. Não só na India, Mauritânia, Brasil ou China, mas também nos Estados Unidos da América, na Rússia, na Alemanha e em Portugal, com os Estados a serem maus exemplos ao utilizarem e legalizarem práticas que configuram um regime de trabalho equiparado à escravatura. Em relatório há dias divulgado (12/11/2015) o Conselho da Europa alerta para a gravidade do trabalho forçado e do tráfico de seres humanos (Everyone in Europe - children, women and men - should be protected from forced labour and trafficking in human beings, two serious human rights violations).Neste relatório é referido que 20,9 milhões de pessoas em todo o mundo são sujeitas a trabalho forçado, das quais 880.000 na União Europeia, sendo de 68% as envolvidas em actividades económicas tais como: agricultura, construção civil, serviço doméstico e indústria transformadora. E como analisar a situação atual e perspectiva futura face ao lema da Liberdade, Igualdade e Fraternidade? Do exposto, não é difícil concluir que a dinâmica de aproximação a estes valores verificada ao longo do século XX, com a aprovação e implementação de grandes referenciais de direitos humanos, como os Pactos Internacionais de Direitos Civis, Políticos, Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre a Escravatura, a Convenção dos Direitos da Criança, e mais de duzentos referenciais aprovados pelas Nações Unidas e pelo Conselho da Europa, se está a esboroar e a ser substituída por novas orientações que legitimam a desumanidade, de que é exemplo a aprovação recente da Convenção para a Prevenção do Terrorismo onde se criminalizam intenções e opiniões, constituindo uma flagrante machadada no direito à liberdade de pensamento, expressão e associação. Aqueles que se comprometem na defesa dos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade têm vindo a ter a sua responsabilidade acrescida para fazerem frente a esses atropelos. Têm de ser coerentes e ativos na defesa dos grandes ideais do humanismo. Têm de evitar que no século XXI o trabalho encontre respaldo numa das constatações do P. António Vieira no seu sermão de Santo António: Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêem a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Será um sonho a alteração deste quadro sombrio, esta insensibilidade dos poderosos deste mundo para com aqueles a quem submetem com condições de vida infra-humanas, condenando-os à morte na sua dignidade? Eu perfilho esse sonho, partilhando-o com os que me estão próximos, revendo-me na singela expressão filosófica de Alexandre O’Neill: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. ................................................................................................................. Porto, 14 de Novembro de 2015 ................................................................................................................ Manuel Hipólito Almeida dos Santos ............................................................................................................ Referências: Antunes, Ricardo - Os dilemas do trabalho no limiar do século 21 Bales, Kevin - A nova escravatura Domingues, Frei Bento – N.S.I. Dores, António Pedro – Democracia Verdadeira Foucault, Michel – As palavras e as coisas Gorz, André - Métamorphoses du travail Onfray, Michel – A Política do Rebelde – Tratado de insubmissão e resistência Peters, Edward – História da Tortura Santos, Manuel Almeida dos – ONGs, Passado e Presente Santos, Manuel Almeida dos – Questões de Ética e Cidadania Tratados e Convenções internacionais – O.I.T., O.N.U. e Conselho da Europa Vilar, António – Causas do Dia-a-Dia