sábado, 28 de dezembro de 2019

50º aniversário da O.V.A.R.


Intervenção na sessão solene

Excelências

Estamos em dia de festa e de reflexão. Dia de festa pois a passagem de cinquenta anos de vida é sempre motivo de celebração. Dia de reflexão já que a vida da aniversariante tem sido dedicada a uma causa que continua a dar motivos de preocupação do mesmo tipo que esteve na base do seu nascimento: o sistema prisional e as suas consequências nas vítimas, nos reclusos e suas famílias.
Como referimos na revista que hoje foi lançada (número especial da Escalada), o principal enfoque deve ser dirigido aos fundadores da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, pela sua capacidade de iniciativa, coragem e espírito vicentino que deram mostra ao assumirem a criação duma instituição para praticar o bem, o sentimento humanitário e o espírito de ajuda que estão na base da filosofia cristã que nos congrega. Ao assim procederem, corporizaram o legado de S. Vicente de Paulo e de Fraderic Ozanam de irmos ter com quem necessita de apoio, na perspetiva de minorar o sofrimento e, através da caridade, desenvolver as acções necessárias para tal, com amor e dedicação.    
Analisando as primeiras atas de reunião da O.V.A.R., de há cinquenta anos, constata-se a mesma necessidade de dinamizar a vivência cristã dentro das prisões, com a agravante do grande crescimento da população prisional e do alargamento da componente punitiva na vida em sociedade. Se os fundadores da O.V.A.R. ainda fossem vivos seria com indignação que assistiriam a situação actual nas prisões portuguesas, já que a situação de desumanização que se vive no seu interior é uma afronta aos valores cristãos de fraternidade e de paz.
Aquando do recebimento dos galardões com que a O.V.A.R. foi distinguida, no último ano, tivemos ocasião de referir muitas das grandes questões que envolvem o sistema prisional nos dias de hoje. No último ano adicionaram-se três aspectos com relevância especial: a greve dos guardas prisionais (com implicações profundas no quotidiano dos reclusos e suas famílias, além do impedimento da prestação de assistência espiritual e religiosa), o aumento duma política restritiva por parte dos Tribunais de Execução de Penas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias e liberdade condicional) e o aumento do número de pessoas em cumprimento de penas e medidas na comunidade que já se situam em número superior a 30.000 (além das cerca de 13.000 que se encontram em cumprimento de penas restritivas da liberdade em estabelecimentos prisionais). As entidades oficiais com quem temos mantido contacto manifestaram sensibilidade e abertura para essas questões, mas não se tem sentido alteração significativa duma realidade que é chocante.
A revista especial que hoje é lançada, contendo depoimentos de reclusos, ex-reclusos, familiares de reclusos, sacerdotes, benfeitores e de várias entidades é um testemunho dessa realidade que a O.V.A.R. tem vindo a denunciar.
Aos vicentinos em particular, e à Igreja Católica em geral, cabe um papel relevante no combate a tal situação, dada a sua influência na sociedade. A sensibilização das comunidades para a implementação duma vivência cristã nas prisões tem de ser tarefa prioritária. Neste sentido, alertamos, uma vez mais, para a necessidade da criação dum secretariado diocesano da pastoral prisional, com o objectivo de dinamizar toda a diocese para uma contribuição forte de implementação dos valores cristãos nas prisões. 
Os exemplos seguintes, constantes da nossa intervenção na Audição Parlamentar na Assembleia da República, de julho último, que não esgotam as situações desumanas vividas nas prisões, podem-nos dar uma ideia do quanto há por fazer para que a vivência cristã se instale no sistema prisional.
- É importante a criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa via formativa e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão), relevando o respeito pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade e partilha, permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a rendimentos lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social.
- É urgente terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua, proibida constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objectivamente, o disposto no Código Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições da Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da promessa do seu levantamento pelo actual director-geral da DGRSP, ainda não é conhecida.
- Deve-se terminar rapidamente com a violação do Direito Internacional no que toca à garantia do direito generalizado à própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, pelo que temos sido acusados pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação, independentemente da melhoria do apoio judiciário que se tem revelado frágil e inadequado.
- É necessária uma modificação profunda na abordagem duma política sobre drogas (responsável pela maioria esmagadora da população prisional, pois a obtenção de dinheiro para a compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a sociedade), encarando a não criminalização de todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco e do álcool) e promovendo uma campanha alargada de sensibilização para as consequências de todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma guerra, que já dura há dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo contrário, quedando-nos a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo positivo dado da descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o falhanço da estratégia para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e da repressão. Mais, estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que não têm interesse no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de negócio. Quer a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quer M. Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de Drogas, declararam, em Maio último na 26ª Conferência sobre a Redução de Danos, que a guerra às drogas fracassou, sendo favoráveis à legalização das drogas, mesmo das mais pesadas. 
- Há que ter em consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de informação e  comunicação devem ser acessíveis aos reclusos, incluindo  o  uso alargado dos equipamentos (telemóveis e computadores), permitindo uma efectiva praxis para a ressocialização e acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de prisão efectiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor  Geral  da  DGRSP no jornal Público - 11/06/2019 – Um novo paradigma para o uso de telefone e privação da liberdade). É positivo o aumento de períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda que este passo não vai impedir a continuação da entrada clandestina de telemóveis nas prisões, já que as potencialidades destes equipamentos não são supríveis com as comunicações telefónicas tradicionais (estas não permitem as novas tecnologias de comunicação e não possibilitam os contactos quando os reclusos estão fechados nas celas).
- Relativamente à política de fomento da valorização académica dos reclusos e de contactos com o exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a Universidade Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as condições para a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos.
- Tendo o crime de condução de veículos automóveis, sem carta de condução, significativa expressão, deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por este crime, a possibilidade de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra em cumprimento de pena. 
- É urgente a admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos humanos dos efectivos prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos humanos para as áreas de apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc…). É necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das prisões, nomeadamente o CEPMPL, acabando com a ideia de que o Estado de Direito fica à porta das prisões. As instituições nacionais e internacionais de direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas, Provedoria de Justiça , etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e perplexidade com a situação existente.
- As prisões devem ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do recluso à sua área de residência, promovendo uma política de transferências de reclusos para tal, assim como evitando instalações de dimensão elevada que introduzam grandes aglomerados de reclusos dificultando a humanização da vida prisional, assim como combatendo a existência de grupos de liderança que praticam a extorsão e a violência nas prisões. Para análise individual de cada estabelecimento prisional, o relatório de actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria incluir o relatório pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo do que foi feito até ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o conhecimento da vida interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria.
- Sendo Portugal frequentemente visado pelas organizações internacionais  de direitos humanos de que faz parte, nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da Europa, os relatórios produzidos por estas instituições só podem ser divulgados depois da autorização do governo português, o que não abona a favor da transparência e da boa fé. Torna-se necessário que Portugal prescinda desta prerrogativa e retire a restrição à divulgação desses relatórios logo que essas instituições os produzem. 
- Deve-se ter em consideração que Portugal tem o tempo médio de cumprimento de pena mais elevado da União Europeia. É injustificada a persistência nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é cerca do quádruplo da média da U.E.), pelo que reduzindo este tempo não precisamos de mais prisões nem de mais recursos humanos. Precisamos é de reduzir o tempo médio de cumprimento de pena, que levará à redução da população prisional, com a óbvia e consequente economia de meios financeiros, humanos e materiais. A aprovação duma amnistia contribuirá para este objectivo, corporizando, além do mais, os pilares cristãos do perdão e da misericórdia que fazem parte da matriz social portuguesa. O poder político não tem de ter medo da reacção dos portugueses a este respeito e uma amnistia, assim justificada, será apoiada pela opinião pública.
- Há que considerar a  aplicação das Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas  e  medidas  não  privativas de  liberdade para mulheres infratoras) às reclusas com filhos, abolindo o cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento, cumprem as crianças inocentes.
- Há que tomar medidas de prevenção de represálias sobre os reclusos para os condicionar na sua forma de ser e estar, represálias estas que consistem em pareceres injustos para a concessão de licenças jurisdicionais, na atribuição de tarefas ocupacionais remuneradas e enquadramento no Regime Aberto, no caso de reclusos reivindicativos dos seus direitos.
- Os tribunais de execução de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a presença física dos reclusos e seus advogados  em todas as reuniões que apreciam o seu caso, assim como de ser-lhes fornecida cópia dos relatórios e pareceres que lhes dizem respeito, com a sua inclusão no respectivo processo individual existente no estabelecimento prisional.
- Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade, com o argumento da constituição dum fundo de reserva. Tal só deveria ser feito com a concordância do recluso. Por outro lado, o trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo, além de que os bens produzidos pelos reclusos, ao serem vendidos, configuram concorrência desleal com as entidades que produzem o mesmo tipo de bens tendo de suportar salários e encargos legais.
- Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar.
- A assistência espiritual e religiosa é feita com grandes limitações de tempo de contacto  com  os  reclusos, agravada com  a  sua  impossibilidade  no  caso das greves dos guardas prisionais (A assistência espiritual e religiosa deve fazer parte dos serviços mínimos).
- A dinâmica de reinserção social em muitas prisões, a partir do início do cumprimento de pena, é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- Os serviços de saúde são objecto de grandes limitações, em recursos materiais e humanos, como, por exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e oculares, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- É imperioso que se dê andamento à implementação de protocolos com autarquias visando a criação de “casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde os reclusos podem recorrer quando não dispõem duma morada no exterior, permitindo a sua ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais do crime e da reincidência.
- A alimentação é manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade, bastando constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições, fornecidas por entidades com fins lucrativos,  é inferior a € 4,00.

E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.

Como corolário desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.867 reclusos a cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70% superiores a 3 anos de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas a cumprir penas e medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas nesse ano e dos cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos nos países da U.E. com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas punitivas. Temos de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico psiquiatra Miguel Bombarda que, há um século atrás, declarou “A Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz doidos.” No ano de 1969 em que a O.V.A.R. foi fundada a população prisional era de cerca de 5.000 pessoas. Isto numa altura em que havia presos políticos e limitações à liberdade de expressão e associação.
O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se tem passado  em que  a  prioridade foi dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… -  não tem tido resultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade na sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não  é  dissuasor  da  prática criminosa,  quase parecendo provar-se o contrário; quanto maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema Por um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade,  igualdade e fraternidade como centrais na nossa relação para com os outros, assentes nos pilares do perdão e misericórdia.
A melhor forma de homenagearmos os fundadores da O.V.A.R. é empenharmo-nos no trabalho de continuidade por eles iniciado, valorizando o seu legado na linha da ação de S. Vicente de Paulo e Frederic Ozanam. É esse o compromisso que os atuais vicentinos e vicentinas da O.V.A.R. assumem convictamente.

Muito obrigado

Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Presidente da O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos
Sociedade de S, Vicente de Paulo – Conselho Central do Porto
27/11/2019

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

A Sociedade para uma Utopia Económica e Social


 “A Sociedade para uma Utopia Económica e Social”

O tema “A Sociedade para uma Utopia Económica e Social”, é de particular relevância e actualidade no momento histórico que atravessamos. Tal importância tem vindo a ser despoletada por vários ensaístas e filósofos, preocupados com o retrocesso humanista que as relações económicas e sociais têm vindo a sofrer, desde finais do século passado, começando a tornar utópica a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os Pactos dela derivados, nomeadamente, para o tema deste artigo, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Aquilo que a comunidade das nações, reunida sob a égide da Organização das Nações Unidas, quis tornar real há algumas dezenas de anos, está, agora, a ser considerado como uma irrealista utopia económica e social.
Ainda, recentemente, o Prof. António Rial Sanchez, da Universidade de Santiago de Compostela disse, em artigo publicado na revista [1] “Dirigir e Formar”, que “A sociedade foi, é e será sempre evolutiva e, em cada momento histórico, é necessário repensar a partir do presente, sem esquecer nem deixar de ter em conta o passado para poder construir o futuro. Acreditamos em algumas das premonições, como as que Aldous Huxley escreveu em 1931 no livro Admirável Mundo Novo, relativamente ao facto de as tecnologias poderem vir a condicionar as nossas vidas e melhorá-las, mas também sobre o prenúncio de que podem dar origem a uma sociedade de «castas», que é o que tem de ser evitado. É certo que Aldous o matiza, dizendo que isso apenas irá ocorrer se a sociedade, ou parte dela, mantiver o modo de pensar, que surgiu de correntes psicológicas clássicas imobilistas. Penso que hoje em dia a maioria dos cidadãos considera estas abordagens ultrapassadas, mas todos sabemos que «ainda resta alguma coisa» desses pensamentos e, se não estivermos atentos, podem voltar a rejuvenescer velhas perversões, embora prefira deixar este último ponto, apesar de o entender deste modo, à interpretação do leitor e à sua maneira de pensar.
O antídoto para isso é aspirar a ter uma sociedade que, em primeiro lugar, não se esqueça dos princípios humanistas. O ser humano reage tarde ou é facilmente enganado perante qualquer genialidade, quer seja tecnológica ou abstrata, como o podem ser, atualmente, conceitos manipulados num mundo de pós-verdades, como «o mercado », os «fundos abutres» ou outras genialidades, para as quais não faltam atores, em todas as classes sociais, trazendo, como consequência, decisões que favorecem uns para escravizar outros. Para lutar contra isto, a sociedade actual, e a que se aproxima, possuem recursos materiais, ferramentas e capital humano para reajustar os elementos essenciais, a formação, o trabalho digno, a investigação e a inovação, que têm de preconizar novas fórmulas e preparar-nos para uma nova sociedade, que está a surgir.
Encontramo-nos no limiar de um novo paradigma, cunhado por Klaus Schwab[2] como Quarta Revolução Industrial. É uma revolução «coperniciana» no que diz respeito aos outros mas com uma voracidade incalculável quanto às alterações que provoca, deixando muito pouca margem para erros quanto aos seus efeitos. Esta revolução é fruto da evolução tecnológica, gerada, em parte, pelas anteriores revoluções industriais, com o apoio da investigação, verdadeiro motor de mudanças e de efeitos que, até ao momento, eram pouco previsíveis e, atualmente, fazem, inclusive, com que existam tecnologias que estão ultrapassadas antes de serem colocadas em funcionamento. Aponta, e, de facto, assim está a acontecer, para alterações sustentadas na robótica, na inteligência artificial, na nanotecnologia, na biotecnologia, na computação quântica, na Internet das coisas, na impressão 3D, que dão lugar a uma segunda ou terceira era do maquinismo, que as torna inteligentes e com uma ampla margem de autonomia. Um reflexo anedótico desta revolução pode ser «um agricultor a tomar o pequeno-almoço no terraço enquanto o seu trator está a arar, a preparar e a semear o seu terreno».
O cenário é um mundo globalizado onde o trabalho é o meio para satisfazer as necessidades das pessoas. Atualmente, estas necessidades só são compreensíveis a partir do conceito do «trabalho digno», termo que a OIT cunhou e utiliza, principalmente desde o início deste século, para tentar alcançar este objetivo, mobilizando as envolventes do trabalho, procurando apoio e criando ferramentas, como a implementação da educação, da saúde, da igualdade de oportunidades, a eliminação da exclusão, a democratização, a personalização dos serviços e, de um modo geral em relação à formação, o aumento e generalização da formação básica e a continuidade da formação contínua... e, em relação ao trabalho, a «concretização desse trabalho digno (decente), tanto para o homem como para a mulher, remunerado em condições de liberdade, segurança e dignidade humana», lançando um desafio aos «políticos» para que deixem de tratar o emprego como um tema residual e coloquem o trabalho digno no centro da política.”
A invocação de Aldous Huxley e o seu “Admirável Mundo Novo” é oportuna e merecedora da reflexão. A reedição deste livro pela “Antígona” em 2013 (a primeira publicação data de 1932, tendo sido escrito em 1931), refere, na dobra da capa, a apreciação do autor, pouco antes da sua morte em 1963, de que o livro[3] “…é uma parábola fantástica sobre a desumanização dos seres humanos. Na utopia negativa descrita no livro, o Homem foi subjugado pelas suas invenções.
A ciência, a tecnologia, e a organização social deixaram de estar ao serviço do Homem; tornaram-se os seus amos. Desde a publicação deste livro, o mundo rumou a passos tão largos na direcção errada, que, se eu escrevesse hoje a mesma obra, a acção não distanciaria seiscentos anos do presente, mas somente duzentos. O preço da liberdade, e até da simples humanidade, é a vigilância eterna.”
Se Aldous Huxley fosse vivo, hoje diria que a parábola que escreveu, prevista para a sociedade do ano de 2540, está a concretizar-se na actualidade. Isto mostra a velocidade a que estão a acontecer as mudanças sociais, antecipando, no tempo, visões de futuros, ainda recentemente, parecendo longínquos.
Sobre os novos tempos que se avizinham, retomemos o Prof. António Rial Sanchez, quando constata: “Estamos a iniciar a Revolução 4.0, que representa uma mudança exponencial em relação ao que a Terceira Revolução Industrial nos concedeu, dado que aproveita a totalidade da sociedade do conhecimento.
A OIT faz uma retrospetiva dos seus 100 anos e uma previsão dos novos cenários que se presume irão exigir novas formas de trabalhar e as medidas que têm de ser adotadas para mitigar os seus efeitos no «trabalho digno».
Estes novos desafios vêm juntar-se aos já existentes e ameaçam agravá-los (OIT 2018). Até 2030 é preciso criar 344 milhões de empregos, além dos 190 milhões de empregos que são necessários para pôr fim ao desemprego atual, ou seja, um total de 534 milhões de novos empregos.
Outros problemas que os Estados têm de solucionar de imediato em muitos países é o acesso aos meios digitais. Apenas 53,6% dos lares têm acesso à Internet. Nos países emergentes, a percentagem é de apenas 15%. É necessário corrigir muitos desajustes e abusos que estão a ocorrer. (…)
Estabelecer uma Garantia Laboral Universal que proporcione uma base de proteção social para todos os trabalhadores, designadamente direitos fundamentais dos trabalhadores, organização e limite do tempo de trabalho, apesar de ser um feito alcançado na Segunda Revolução Industrial tem permanecido esquecido. Assegurar a representação coletiva dos trabalhadores e empregadores através do diálogo social, promovido através de políticas públicas. Potenciar e gerir a tecnologia a favor do trabalho digno e adotar uma abordagem da inteligência artificial baseada no controlo humano. Aumentar o investimento no trabalho digno e sustentável. Criar incentivos para promover investimentos em áreas-chave para o trabalho digno e sustentável. Rever as estruturas de incentivos às empresas a favor de abordagens de investimento de mais longo prazo na economia real e explorar indicadores adicionais de desenvolvimento humano e bem-estar.”
Tendo as previsões e propostas da OIT sido elaboradas no ano passado, já olhamos para elas como utópicas e ultrapassadas pela realidade vigente. Basta atentar na situação, dos professores contratados em Portugal, que, mesmo com mais de 20 anos consecutivos de serviço, em múltiplas escolas e com horários frequentemente incompletos, continuam precários, com o salário de início de carreira, violando o princípio, comparativamente com os professores efectivos, de para trabalho igual, salário igual. 
Desde há alguns anos tenho vindo a reflectir e a escrever sobre o desfasamento entre o consignado nos grandes referenciais políticos económicos e sociais (utopias?) e a evolução da realidade, constatando que não é cómodo, para mim, viver com muitas das facetas que hoje caracterizam o mundo. Atualizando o que tenho dito, nos mais de 70 anos que levo de vida, sinto que se assiste a uma dinâmica de retrocesso naquilo que de mais importante existe nas relações entre pessoas: uma cultura humanista de liberdade, de tolerância, de fraternidade e de paz.
Há um retrocesso numa cultura de liberdade já que as formas de intimidação e repressão são cada vez mais assustadoras, impondo às pessoas uma postura de medo e cobardia inibidoras duma vivência em liberdade. Quem se assume livremente quando a necessidade de ganhar dinheiro obriga à aceitação de salários e condições de precariedade próximas dos regimes de escravatura? Quem se assume livre perante a vigilância a que se é sujeito nas mais variadas formas e pelas mais diversas entidades?
Há um retrocesso numa cultura de tolerância já que se assiste a uma não aceitação do outro com a sua identidade que deve ser respeitada. Veja-se o que se passa com a dificuldade da integração dos jovens em que a escola e a entrada no mundo do trabalho são cada vez mais obstáculos de monta, não reconhecendo às crianças e aos jovens que são portadores de grandes valias a quem os adultos devem abrir portas e não criar problemas acrescidos.
Há um retrocesso numa cultura de fraternidade com exemplos bem patentes no vergonhoso desastre humanitário dos refugiados e no fosso escandaloso entre pobres e ricos, provocando situações de marginalidade e exclusão social indignas duma sociedade humana. Isto potencia a criminalidade social o que leva à destruição da estrutura familiar e às prisões (instituições medievais impróprias duma sociedade do século XXI).
Há um retrocesso numa cultura de paz já que se há característica bem marcante dos dias de hoje é a agressividade entre as pessoas, entre as instituições e entre os Estados. São cada vez mais os desajustamentos familiares com os divórcios consequentes (processos dolorosos nomeadamente quando os filhos inocentes são os que mais sofrem), são cada vez mais os processos judiciais com as penhoras e execuções sempre lamentáveis, são cada vez mais insultuosas as trocas de “piropos” entre os partidos políticos (que deviam ser a fonte do exemplo), existindo espalhadas pelo mundo guerras e conflitos entre Estados e organizações que provocam vítimas e ódios difíceis de esquecer (Afeganistão; Iraque; Síria, Congo; País Basco/Catalunha; Palestina; etc…). Há um crescendo de formas de exercício do poder político que se assumem autoritárias, prepotentes, nepotistas, cleptocratas e fomentadoras do ódio e da discriminação (USA, Brasil, Filipinas, Arábia Saudita, Itália, Rússia, Hungria, China, Líbia, Coreia do Norte, etc…).
Como não me revejo neste estado do mundo só me resta deixar este testemunho às minhas filhas, aos meus netos e a todos os jovens de que isto que se está passar, e que os afecta gravemente, não tem o meu acordo. Não em meu nome!
Na construção desta sociedade perversa, assustadoramente, assistimos neste início dum novo século a novas e preocupantes facetas nas relações entre os cidadãos e entre estes e a organização social, parecendo que se está a construir um novo modelo ao arrepio daquilo que era apontado como os melhores suportes da estrutura social. 
Mas é inquestionável que a solidez de todas as construções está intrinsecamente ligada à boa resistência e harmonia dos seus pilares, nos quais se apoia a malha envolvente que explicita a estética idealizada. Sem pilares sólidos toda a construção é vulnerável, tornando-se efémera e de pouca confiança.
Assim, também, se passa na construção das relações humanas que, para ser sólida e harmoniosa, necessita de pilares consistentes e bem construídos, desempenhando papel mestre os pilares da ética e da cidadania.
Para a sua execução é imprescindível que todos os obreiros sejam exímios nos domínios do bem, de que se destacam a verdade, a honra, a vergonha, o brio, a solidariedade e a tolerância. Sem a observância destes domínios, a construção das relações humanas não resistirá à mais pequena brisa.
A sua concepção e manutenção têm de integrar a força, a beleza e a sabedoria, colunas mestras, estas, sempre necessárias a toda a obra que aspira à perfeição. A força da vontade, a beleza dos olhos nos olhos e a sabedoria do conhecimento certo.
A ética e a cidadania são pilares em que tem de assentar toda a construção das relações humanas, sendo obrigatório que a liberdade, a igualdade e a fraternidade, sejam o cimento que os solidifica. A liberdade do respeito pela diferença, sem imposições do lobby e da ditadura da maioria ou da sabotagem da minoria; a igualdade tal como ela é proclamada no artº 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”; a fraternidade da partilha, bem expressa no lema “Por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros”.
Todavia, outros materiais tentadores e, porventura, mais fáceis, são colocados à nossa disposição: a inveja, a vingança, a ingratidão, o egoísmo, a intolerância, a demagogia, a ambição desmedida, o ódio, etc..., são elementos que poderão edificar ilusoriamente uma construção faustosa mas que ruirá, mais tarde ou mais cedo, deixando a quem nela se abrigou o relento da frustração, se ainda não tiver sido bloqueado o domínio do seu livre pensamento.
E quando isto acontece, quando a consciência fica obliterada, quando a escuridão ameaça tapar a luz, meditemos no que disse o poeta e filósofo francês do século XVI, Etienne de la Botie,[4]: “Dignos de dó são aqueles que vivem com a canga no pescoço. Devem ser desculpados e perdoados, pois, nunca tendo visto sequer a sombra da liberdade e ninguém nunca lha tendo mostrado, não sabem como é mau serem escravos. Há países em que o sol aparece de modo diverso daquele a que estamos habituados: depois de brilhar durante seis meses seguidos, deixa-os ficar mergulhados na escuridão, nunca os visitando durante meio ano; se os que nasceram durante essa longa noite nunca tivessem ouvido falar do dia, seria de espantar que eles se habituassem à treva em que nasceram e nunca desejassem a luz?”
Etienne de la Botie viveu numa época em que a escravatura era assumida como realidade social, sendo os escravos uma mais valia a quem os seus “senhores” proporcionavam condições de alojamento, saúde e alimentação para permitir disporem de mão de obra para os trabalhos necessários. A escravatura moderna do século XXI desonerou os “senhores” da necessidade de sustento dos seus escravos, pagando-lhes, apenas, salários exíguos, em situações instáveis e de precariedade, e os novos escravos que tratem dos meios para viverem. Há escravos a competirem por condições de sobrevivência, em quantidade suficiente, que permitem o funcionamento da economia sem grandes compromissos dos seus “senhores” e da nova burguesia de serventuários medianamente remunerados.
Relativamente à perda de controle que os seres humanos estão a ter na sua vida, o escritor contemporâneo Amin Maalouf[5], em entrevista ao jornal Público de 20/07/2019, declarou: “Estas tecnologias que tanto nos dão no domínio do conhecimento e da comunicação, estão a fazer-nos derrapar cada vez mais para o controlo por causa do medo. Um controlo que pode tornar-se incontrolável: podemos ouvir tudo, o que toda a gente diz, escreveu, para onde vai. Estamos num mundo em que as tecnologias colidem cada vez mais com as liberdades e, ainda por cima, concordamos com isso.”….” Mas a dado momento será preciso pensar num sistema que possa fazer ao conjunto da população que é parte envolvida no progresso. Desde há 40 anos, temos tendência a aceitar que alguns possam tornar-se muito ricos e os outros que se safem. É um quadro perigoso. Em França tivemos um alerta com os coletes amarelos. Não sei em que momento poderá degenerar. Sente-se um mal-estar e isso poderá revelar-se explosivo.”
Este mal estar é patente em todos aqueles que, ainda, resistem em pensar “fora da caixa”, em terem pensamento próprio. O jornal de expressão anarquista “A Batalha”[6] conclama, na sua edição de Mai/Jun 2019, com um artigo “Abandonai os vossos cartazes” em que termina: “ (…) Não vai haver mudanças vindas de cima. Devemos parar de pedir aos nossos governantes que façam o oposto dos seus interesses – devemos, isso sim, vencer quem nos domina e os seus interesses. (…)
Chegamos à destruição irreversível dos espaços poéticos.(…)”
Resta a questão: Como construir uma sociedade que integre uma utopia económica e social? Vivemos tempos que apelam às utopias ou estamos perante distopias? Como encarar o número cada vez maior de personalidades relevantes, de vários quadrantes políticos, que assumem estarmos perante uma distopia com uma dinâmica de opressão, assustadora e totalitária?
Como ligar este processo em curso com “O Processo” de Franz Kafka, de há um século?
Desde há mais de dois séculos que os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade fizeram parte da utopia desejada, com solidez filosófica e construção prática em crescendo. Tais valores começaram a ser questionados a partir de finais do século passado, assistindo-se, hoje, a um recuo na sua vivência, podendo-se constatar que as grandes causas estão a ser postas em causa, de que a escravatura moderna é um exemplo. A Paz, a Liberdade, a Justiça, a Dignidade, a Solidariedade, a Educação, A Moral, a Ética, o Amor, a Fé, etc..., sendo pilares necessários à solidez das relações humanas, correm o risco de se desagregarem, já que assistimos, com justificações em que se encontra ausente a sensatez e a sabedoria, à tentativa da sua subalternização por pseudovalores que se querem colocar acima do Homem, quando deveriam estar ao serviço do Homem. Os direitos básicos de dignidade humana como a saúde, a alimentação, a educação, a habitação, o trabalho digno, a justiça, o usufruto de serviços públicos essenciais, etc…, estão em regressão, sendo substituídos por bens sujeitos às leis do mercado, deixando de fora quem não dispõe de poder económico para a eles aceder.
A manipulação através dos órgãos de comunicação social está a atingir níveis tais como os que George Orwell descreveu no seu livro 1984 e nos deixou em antevisão (escrito há 70 anos), já que os seres humanos têm cada vez menos controle sobre as suas competências emocionais. Os grandes referenciais de vivência da Humanidade, nomeadamente os construídos na segunda metade do século XX, que incluem os da economia e da sociologia, estão-se a tornar-se utopias cada vez mais distantes, parecendo que a sociedade está a desistir da sua defesa e aprofundamento.
É urgente a construção duma nova ordem política, económica, social e cultural.
Tempos difíceis se avizinham.  


Manuel Hipólito Almeida dos Santos



Referências bibliográficas:
Botie, Etienne de la – “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”
Huxley, A. – “Admirável Mundo Novo”- Ed. Antígona [2013]
Kafka, Franz – “O Processo”
Orwell, George – “1984”
Pimprenelle – jornal “A Batalha” [Mai/Jul 2019]
Rial Sanchez, A. - “O Futuro do Trabalho” -  revista “Dirigir e Formar”, - [Jul/Set 2019]
Santos, M. Almeida dos – “Questões de Ética e Cidadania” [2000]
Santos, M. Almeida dos – “ONG’s Passado e Presente – Uma experiência pessoal” [2014]
Schwab, K., - “Fórum Económico Mundial 2016”

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RESUMO
A felicidade, enquanto utopia objectivamente indefinida, tem sido uma desejada constante de referência na vida de todos os seres humanos. Como todas as utopias, a sua construção permanente assenta numa multiplicidade de factores, de que os económicos e sociais são parcela relevante, com uma flutuação evolutiva inconstante de que a história nos dá o seu registo. Neste início de século XXI estamos a assistir a uma regressão nos caminhos para a utopia da felicidade, nomeadamente nos económicos e sociais, com uma passividade espantosa daqueles que mais são atingidos.



[1] Rial Sanchez, A. – “O Futuro do Trabalho” -  revista “Dirigir e Formar”, - [ Jul/Set 2019]
[2] Schwab, K., - “Fórum Económico Mundial 2016”
[3] Huxley, A. – “Admirável Mundo Novo”- Ed. Antígona [2013]
[4] Botie, Etienne de la   - “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”
[5] Maalouf, A., - “jornal Público de 20/07/2019”
[6] Pimprenelle – jornal “A Batalha” – Mai/Jul 2019

sábado, 7 de setembro de 2019

Drogas: Principal contribuinte da população prisional


Drogas: Principal contribuinte da população prisional


O Papa Francisco tem, desde o início do seu pontificado, dedicado particular atenção às prisões, visitando-as frequentemente e manifestando preocupação com as suas consequências no presente e futuro dos reclusos, assim como nas suas famílias, apelando aos Estados para a sua humanização e construção de políticas que visem a prevenção da criminalidade que leva às prisões.
A experiência da O.V.A.R. (Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos) nos contactos com os reclusos leva-nos à consideração de que as drogas são, actualmente, a principal responsável pela maioria dos crimes punidos com penas de privação da liberdade, já que além dos crimes específicos de tráfico de drogas e posse de quantidades superiores às referidas legalmente, muitos dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a vida em sociedade são vias para arranjar dinheiro para o negócio das drogas.     
Esta constatação leva-nos a que tenhamos a opinião de que as drogas são mais um problema se saúde pública do que penitenciário, corroborando semelhantes opiniões de altos responsáveis políticos, entre os quais o atual Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, Dr. Rómulo Mateus.
Iguais considerações temos vindo a produzir em eventos relevantes, nomeadamente nas sessões de homenagem de que fomos alvo na Assembleia da República (Prémio Direitos Humanos 2018) e no Terra Justa 2019 – Causas e Valores da Humanidade. Ainda no passado mês de Julho, em audição parlamentar na Assembleia da República, voltamos a dar ênfase a este tema, tendo dito “(…) Com este quadro aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre a prevenção da criminalidade como caminho para a abolição das prisões, invertendo a tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos classificados como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como exemplo, podemos atentar na problemática das drogas, que estimo em ser responsável por mais de 80% dos crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento de pena, tendo sido condenadas, em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões relacionadas com drogas, além das que foram condenadas por crimes contra as pessoas, contra o património e contra a propriedade que, na maioria dos casos, se destina a obter meios que permitam o acesso às drogas. Tenhamos em consideração que, ainda em meados do século passado, era inexistente, ou quase residual, a sua figuração nos normativos penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos aos nossos alunos de figuras famosas da literatura, das artes plásticas, da música e do desporto, que reconhecemos como personalidades relevantes, apesar de terem tido comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis pela comunidade. Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da liberdade, do consumo de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem de se aceitar a sua produção e comercialização. Logo, há que considerar uma nova política de drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a produção ao consumo, simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização para os efeitos das dependências e suas consequências, a exemplo
do que já foi, e está a ser, feito para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e financeiros adstritos ao combate às drogas, desde as polícias às prisões e às instituições cujo modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento, possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização (…).”
As prisões e as razões que levam a penas de privação da liberdade, são matéria que deve preocupar todas as pessoas sensíveis às tentações, ao perdão e à misericórdia. S. Vicente de Paulo foi uma dessas pessoas sensíveis, como podemos constatar no excerto do livro “ Vicente de Paulo – Pai dos Pobres – Edições Paulinas – 2006”: Já em 1618, S. Vicente de Paulo tinha visitado as obscuras prisões da Conciergerie onde estavam encerrados, em condições desumanas, centenas de condenados. (…). Era um espectáculo desolador nunca visto até então.(…) Os condenados viviam num verdadeiro inferno, blasfemavam contra Deus, amaldiçoavam a vida e gritavam sem esperança de serem atendidos. (…). Não podendo acabar com esta forma de escravatura, S. Vivente de Paulo desenvolveu uma série de iniciativas no intuito de melhorar as condições de vida destes homens. (…).
           
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Presidente da O.V.A.R.

domingo, 14 de julho de 2019

Audição Pública sobre o Sistema Prisional – Assembleia da República


 Obra  Vicentina  de  Auxílio  aos  Reclusos – O.V.A.R.
                  Rua de Santa Catarina, 769 - 4000-454  Porto -  Tel./Fax 222006255 – o.v.a.r.reclusos@gmail.com
   Internet: http://ovarprisoes.wix.com/ovar   -   Facebook: https://www.facebook.com/ovarprisoes/

                                               “Quem nunca errou que atire a primeira pedra” (Jo 8,7)

(Prémio “Direitos Humanos 2018”- Assembleia da República)
(Prémio “Terra Justa – Causas e Valores da Humanidade “ 2019)



Audição Pública – Assembleia da República


Senhoras deputadas e senhores deputados
Agradecendo o convite para esta audição parlamentar, felicito V. Exªs. pela iniciativa, trazendo para a ordem do dia um tema para o qual a sociedade olha com incómodo.
A O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, mantém, na colaboração dos seus membros com os reclusos do sistema prisional, o seu cariz vicentino de ajuda concreta imediata aos mais pobres e necessitados, complementada com a abertura de condições para a sua saída da condição de pobreza e exclusão social, não nos limitando ao apoio, ainda que positivo, que não ambiciona alterar a situação vigente. A desumanidade a as violações de direitos humanos vividas nas prisões portuguesas não se compadecem, apenas, com acções de remedeio. É necessária a ajuda mas tem de se alterar a situação que a motiva. 
Tal como temos vindo a alertar, desde há alguns anos, o sistema prisional português tem características evidentes de desumanidade e incongruência, violadoras dos referenciais jurídicos nacionais e internacionais, situação esta reconhecida por entidades como a Provedoria de Justiça e os Comités das Nações Unidas e do Conselho da Europa para as questões da tortura e dos direitos humanos. O exposto a seguir não esgota a panóplia daquilo que é necessário mudar no sistema prisional, já que o modelo civilizacional construído nos finais do século XX aponta no sentido da abolição das prisões, já que são instituições retrógradas, medievais, desumanas e violentas.
Façamos um périplo pelo interior das prisões, considerando que o retrato difere de prisão para prisão e do ambiente que nelas vigora.
  
- É importante a criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa via formativa e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão), relevando o respeito pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade e partilha, permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a rendimentos lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social.
- É urgente terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua, proibida constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de segurança aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objectivamente, o disposto no Código Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições da Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da promessa do seu levantamento pelo actual director-geral da DGRSP, ainda não é conhecida.
- Deve-se terminar rapidamente com a violação do Direito Internacional no que toca à garantia do direito generalizado à própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, pelo que temos sido acusados pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação, independentemente da melhoria do apoio judiciário que se tem revelado frágil e inadequado.
- É necessária uma modificação profunda na abordagem duma política sobre drogas (responsável pela maioria esmagadora da população prisional, pois a obtenção de dinheiro para a compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes contra as pessoas, contra o património e contra a sociedade), encarando a não criminalização de todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco e do álcool) e promovendo uma campanha alargada de sensibilização para as consequências de todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma guerra, que já dura há dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo contrário, quedando-nos a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo positivo dado da descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o falhanço da estratégia para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e da repressão. Mais, estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que não têm interesse no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de negócio. Quer a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quer M. Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de Drogas, declararam, em Maio último na 26ª Conferência sobre a Redução de Danos, que a guerra às drogas fracassou, sendo favoráveis à legalização das drogas, mesmo das mais pesadas. 
- Há que ter em consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de informação e  comunicação devem ser acessíveis aos reclusos, incluindo  o  uso alargado dos equipamentos (telemóveis e computadores), permitindo uma efectiva praxis para a ressocialização e acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de prisão efectiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor  Geral  da  DGRSP no jornal Pùblico - 11/06/2019 – 
Um novo paradigma para o uso de telefone e privação da liberdade). É positivo o aumento de períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda que este passo não vai impedir a continuação da entrada clandestina de telemóveis nas prisões, já que as potencialidades destes equipamentos não são supríveis com as comunicações telefónicas tradicionais (estas não permitem as novas tecnologias de comunicação e não possibilitam os contactos quando os reclusos estão fechados nas celas).
- Relativamente à política de fomento da valorização académica dos reclusos e de contactos com o exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a Universidade Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as condições para a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos.
- Tendo o crime de condução de veículos automóveis, sem carta de condução, significativa expressão, deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por este crime, a possibilidade de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra em cumprimento de pena. 
- É urgente a admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos humanos dos efectivos prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos humanos para as áreas de apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc…). É necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das prisões, nomeadamente o CEPMPL, acabando com a ideia de que o Estado de Direito fica à porta das prisões. As instituições nacionais e internacionais de direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas, Provedoria de Justiça , etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e perplexidade com a situação existente.
- As prisões devem ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do recluso à sua área de residência, promovendo uma política de transferências de reclusos para tal, assim como evitando instalações de dimensão elevada que introduzam grandes aglomerados de reclusos dificultando a humanização da vida prisional, assim como combatendo a existência de grupos de liderança que praticam a extorsão e a violência nas prisões. Para análise individual de cada estabelecimento prisional, o relatório de actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria incluir o relatório pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo do que foi feito até ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o conhecimento da vida interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria.
- Sendo Portugal frequentemente visado pelas organizações internacionais  de direitos humanos de que faz parte, nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da Europa, os relatórios produzidos por estas instituições só podem ser divulgados depois da autorização do governo português, o que não abona a favor da transparência e da boa fé. Torna-se necessário que Portugal prescinda desta prerrogativa e retire a restrição à divulgação desses relatórios logo que essas instituições os produzem. 
  - Deve-se ter em consideração que Portugal tem o tempo médio de cumprimento de pena mais elevado da União Europeia. É injustificada a persistência nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é cerca do quádruplo da média da U.E.), pelo  que reduzindo este tempo não precisamos  de mais prisões nem  de mais recursos humanos. Precisamos é de reduzir o tempo médio de cumprimento de pena, que levará à redução da população prisional, com a óbvia e consequente economia de meios financeiros, humanos e materiais. A aprovação duma amnistia contribuirá para este objectivo, corporizando, além do mais, os pilares cristãos do perdão e da misericórdia que fazem parte da matriz social portuguesa. O poder político não tem de ter medo da reacção dos portugueses a este respeito e uma amnistia, assim justificada, será apoiada pela opinião pública.
- Há que considerar a  aplicação das Regras de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas  e  medidas  não  privativas de  liberdade para
mulheres infratoras) às reclusas com filhos, abolindo o cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento, cumprem as crianças inocentes.
 - Há que tomar medidas de prevenção de represálias sobre os reclusos para os condicionar na sua forma de ser e estar, represálias estas que consistem em pareceres injustos para a concessão de licenças jurisdicionais, na atribuição de tarefas ocupacionais remuneradas e enquadramento no Regime Aberto, no caso de reclusos reivindicativos dos seus direitos.
- Os tribunais de execução de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a presença física dos reclusos e seus advogados  em todas as reuniões que apreciam o seu caso, assim como de ser-lhes fornecida cópia dos relatórios e pareceres que lhes dizem respeito, com a sua inclusão no respectivo processo individual existente no estabelecimento prisional.
- Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade, com o argumento da constituição dum fundo de reserva. Tal só deveria ser feito com a concordância do recluso. Por outro lado, o trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo, além de que os bens produzidos pelos reclusos, ao serem vendidos, configuram concorrência desleal com as entidades que produzem o mesmo tipo de bens tendo de suportar salários e encargos legais.
- Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar.
 - A assistência espiritual e religiosa é feita com grandes limitações de tempo de contacto  com  os  reclusos, agravada com  a  sua  impossibilidade  no  caso das greves dos guardas prisionais (A assistência espiritual e religiosa deve fazer parte dos serviços mínimos).
- A dinâmica de reinserção social em muitas prisões, a partir do início do cumprimento de pena, é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- Os serviços de saúde são objecto de grandes limitações, em recursos materiais e humanos, como, por exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e oculares, situação esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- É imperioso que se dê andamento à implementação de protocolos com autarquias visando a criação de “casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde os reclusos podem recorrer quando não dispõem duma morada no exterior, permitindo a sua ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais do crime e da reincidência.
- A alimentação é manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade, bastando constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições, fornecidas por entidades com fins lucrativos,  é inferior a € 4,00. 
Em acréscimo a estas questões, importa ter em conta o que temos vindo a declarar nas sucessivas intervenções em que nos envolvemos.
Em Abril último fomos homenageados com o prémio “Terra Justa – Causas e Valores da Humanidade” (Fafe - 04/04/2019) pelo nosso contributo para a humanização do sistema prisional, onde proferimos a seguinte declaração:
(…)
“Permitam-me um prólogo à intervenção protocolar nesta cerimónia de homenagem à O.V.A.R. – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, promovida pela Câmara Municipal de Fafe no “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade – Terra Justa” do ano de 2019.
Já que estamos em momento de homenagens, quero  homenagear e solidarizar-me com todas as vítimas de atos anti-sociais, e homenagear e solidarizar-me, também, com alguns perpetradores de atos socialmente censuráveis de quem tenho tido o privilégio de contactar, na prossecução duma sociedade sem crimes, sem vítimas e sem reclusos, uma sociedade de paz e liberdade.
- Recluso A – Preso há 34 anos, considerado inimputável, manifesta a sua revolta e indignação pela renovação, de 2 em 2 anos, da sua reclusão no estabelecimento prisional. Tem consciência da injustiça que lhe está a ser feita. Mantenho com ele uma relação de grande amizade.
 - Recluso B –Um jovem, de 32 anos, depois de cumprir uma pena de 6 anos, conseguiu arranjar trabalho como condutor dum camião de recolha de lixo e como distribuidor de pizzas. Encontramo-nos regularmente (quer enquanto se encontrava na prisão, quer agora em liberdade). Diz-me: “Aquilo, lá dentro, é muito pior do que se pode imaginar.”
- Recluso C – Encontra-se preso pela 3ª vez. Quando o encontrei a iniciar o cumprimento da 3ª pena, perguntei-lhe: “ Então você aqui outra vez? Não me tinha  dito  que  nunca  mais  voltaria para a prisão?” Respondeu-me: “Quando cheguei a casa depois de libertado a minha mãe disse-me: rapaz, vê lá se arranjas trabalho pois nós somos pobres e precisamos da tua ajuda. Visitámos-te pouco na prisão pois não tínhamos dinheiro para lá ir. No dia seguinte fui a diferentes lugares oferecendo-me para trabalhar e todos me disseram para deixar   os   meus   contactos,  que  logo   que   aparecesse   alguma   coisa   me telefonariam. No 2º dia repetiu-se o que se passou no dia anterior.” Então o recluso  perguntou-me:  “O senhor acha que  eu  tinha coragem  de  voltar para casa ao 3º dia sem dinheiro nem trabalho?”. Foi apanhado e preso uns dias depois.   
- Recluso D – Depois de 20 anos de vida atribulada, conseguiu encontrar um rumo para o seu futuro, concluindo a licenciatura em engenharia mecânica, enquanto está preso, estando agora a fazer o estágio curricular e o mestrado, devendo sair em liberdade no final do corrente ano, apesar das grandes limitações a que está sujeito para este seu percurso académico, sem poder utilizar equipamento de escrita e de acesso às TIC .
- Recluso E (toxicodependente) – Como não dispunha de rendimentos para usufruir de  serviços públicos  essenciais,  fez uma  ligação  clandestina  à  rede pública de água. Apanhado neste crime, foi condenado a pagar € 1.800 de multa, convertíveis em 300 dias de prisão. Como não tinha os € 1.800 para pagar a multa, está a cumprir os 300 dias de prisão que vão custar ao Estado cerca de € 15.000, pois um recluso custa, em média, cerca de € 50 por dia. E, entretanto, como estão a viver a esposa e o filho? Que futuro se prevê para a família? 
- Recluso F – Encontrei uma senhora a sair da visita semanal de sábado à prisão, com ar triste, abatido e de mágoa evidente. Perguntei-lhe se necessitava de ajuda, respondendo-me que estava preocupada com o seu filho a cumprir pena, a que se seguiu uma conversa amiga. Relatou-me que o seu filho tem tido problemas psiquiátricos desde criança, com manifestações de agressividade para com ela e para com o pai, que iam aguentando tudo pois sentiam como seu dever nunca abandonarem o filho, confiados que, um dia, ele recuperaria a razão, apesar de serem pobres e sem meios para grandes tratamentos. Na última vez o filho agrediu-os e obrigou-os a sair de casa, o que os forçou a chamar a polícia com o objectivo de lhes permitir o regresso a casa e de provocar o tratamento do filho num estabelecimento de saúde adequado. A polícia deteve o jovem, acusando-o de violência doméstica, apesar dos pais declararem não querer apresentar queixa mas, apenas, que o seu filho fosse tratado. No entanto,  como  a violência doméstica  é  crime público,  o jovem foi julgado e condenado a quatro anos, sendo considerado inimputável  e  a pena a ser cumprida em estabelecimento psiquiátrico prisional. E, agora, lá vão os pais, todas as semanas, visitar o seu querido filho, com a consciência pesada pelo facto do seu filho estar na prisão por culpa deles, já que nunca deviam ter chamado a polícia. Pensavam que ele seria levado para tratamento hospitalar mas nunca para a prisão. Carregam esta cruz com tristeza e mágoa mas com amor incondicional pelo seu filho.       
Recluso G – Encontra-se a cumprir penas sucessivas que lhe foram aplicadas num total de 51 anos e 8 meses (após reclamações do recluso foram reduzidas para um total de 38 anos e 2 meses). Está preso há 17 anos, sem ter tido qualquer licença jurisdicional (precárias), sempre passados dentro da prisão. Muitas entidades conhecedoras da situação consideram que esta situação, que pode conduzir à prisão perpétua, é inaceitável e viola o disposto na Constituição da República Portuguesa. Este caso já tem sido tratado por alguns órgãos de comunicação social, tendo tido um programa específico na SIC, na rubrica “Vidas Suspensas”. O actual Diretor Geral da Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais comprometeu-se a apresentar uma proposta legislativa que solucione a situação dentro do quadro constitucional e do Código Penal que prevê a pena máxima de 25 anos. Aguarda-se tal proposta e, enquanto isso não acontece, o recluso continua sem saber se algum dia sairá da prisão.
A maioria destes reclusos estão presos, ou passaram pelas prisões, devido a problemas com drogas, problemática esta que está na origem de mais de 80% dos presos em Portugal. 
Agradecendo a consideração pela permissão deste prólogo, não posso deixar de iniciar a minha intervenção protocolar sem agradecer, sensibilizado, a escolha da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (Obra Especial do Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo) para ser homenageada e felicitar vivamente a organização deste evento “Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade, Terra Justa”, colocando Fafe como exemplo na divulgação dos mais elevados direitos humanos, assim como por trazer para a consciência colectiva a necessidade de pensar sobre valores base da convivência humana em clima fraterno e solidário, procurando alertar, provocar  e  envolver  as  pessoas a  refletir  sobre  a  importância  das causas  e valores da humanidade, fazendo jus à muito afamada “Justiça de Fafe”. E aqui surgem, já, duas questões: Que tempo é este em que vivemos quando causas e valores da humanidade como a solidariedade, a fraternidade, a caridade e o amor ao próximo, continuam a ser valores merecedores de homenagem e não atributos correntes na prática rotineira de todos os seres humanos? Que tipo de sociedade é esta em que vivemos que substitui esses valores pelo hedonismo, egoísmo, vingança e ódio?
 No passado dia 10 de Dezembro, aquando da atribuição do prémio atribuído pela Assembleia da República “Direitos Humanos 2018”, tive ocasião de referenciar, sucintamente, os atropelos à dignidade humana vividos nas prisões portuguesas.  Permitam-me  que  os  repita aqui, já  que a gravidade de  que se revestem impõe que os tenhamos presentes, tendo em conta de que as situações referidas diferem dum estabelecimento prisional para outro estabelecimento prisional. (…)
E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
Ainda, recentemente, em artigo publicado no Jornal Expresso, pelo psicólogo Mauro Paulino, foi divulgado quea prevalência de diagnósticos psicopatológicos entre reclusos é quatro vezes superior à da população em geral, com destaque para perturbações da personalidade, designadamente anti-social, estado-limite, paranóide e narcísica. (…) Os reclusos tendem a desenvolver a denominada máscara prisional, quer a nível emocional, quer a nível comportamental, o que pode originar uma instabilidade emocional crónica e debilitante nas interações interpessoais com reflexo na intervenção a realizar. A vivência destes indivíduos é, por vezes, caracterizada por vários percursos criminais, com associação a culturas e normas morais desviantes, que servem de base às relações de poder e de interesses instituídas. Tomem-se como exemplos os diversos negócios que se desenvolvem, uma vez que todos os produtos servem para a troca, para exercer controlo, como sucede com o tráfico de droga ou a compra de tecnologias de comunicação, que podem, inclusive, servir de meio para que o recluso continue a intimidar as suas vítimas no exterior. A sobrelotação é outra variável a considerar, podendo originar uma perda de controlo por parte da administração prisional e o aumento do perigo de vida para o staff e reclusos. Ao nível dos serviços clínicos, o excesso de pessoas por técnico representa uma real limitação de atuação terapêutica, sem a possibilidade da implementação de um trabalho psicoterapêutico mais efetivo, dado o rácio técnico/recluso. Neste quadro surge, não raras vezes, a frustração entre os reclusos por terem inevitavelmente menos possibilidade de acesso a outros serviços, incluindo as ocupações (escola, trabalho), o que contribui para o aumento de competição e sintomatologia diversa. Ainda que os serviços de vigilância procurem supervisionar a violência, a verdade é que aqueles também denunciam a falta de recursos humanos no exercício de funções e que as agressões existem e provocam medo, podendo ocorrer a construção artesanal de instrumentos e armas que podem provocar ferimentos graves e mesmo a morte. A isto associa-se a complexidade dos negócios ilícitos já citados, os roubos, a própria monotonia e a manutenção de relações de poder, tendo-se aqui em consideração variáveis como o número de anos preso, o tempo que passou em instituições penais, o tipo de crime e a idade da primeira detenção.”
O que se passa hoje nas prisões portuguesas, como instituições retrógradas, medonhas, arcaicas, medievais e violentas, é o reflexo da sociedade em que vivemos. Já começa a ser lugar comum caracterizar o actual modelo de sociedade como alienada, violenta, egoísta e vingativa, existindo pequenas bolsas de resistentes que continuam a querer implementar o modelo humanista construído na segunda metade do século passado, de que o Papa Francisco tem sido exemplo destacado. Assiste-se nas relações sociais, em muitas famílias e em muitas escolas, à prática dum clima de repressão, ódio, intolerância, escravatura e medo. Como exemplo pode-se atentar nos indicadores divulgados, anualmente, pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, que nos informam estarem a ser acompanhadas,  nestas  comissões,  cerca de 70.000 crianças e jovens por ano. E a sociedade assiste, impávida e serena, a esta catástrofe! O futuro das prisões está garantido pois muitas destas crianças e jovens têm o seu destino apontado desde muito cedo, havendo necessidade urgente de, na área da justiça juvenil, se repensar o processo tutelar educativo, o funcionamento dos centros educativos e o Estatuto do Aluno e Ética Escolar que quase parece um Código de Penas para crianças estudantes.
Por outro lado, a dimensão escandalosa da pobreza em Portugal, resultante dos baixos salários e pensões, assim como da precariedade crescente, constitui um grande contributo para o número elevado da população prisional, já que a esmagadora maioria dos reclusos são pobres, a quem a tentação do crime é mais difícil de resistir, pois, como disse o poeta Millôr Fernandes “Ser pobre não é crime, mas ajuda muito a chegar lá”. A pobreza existente em Portugal, país da U.E., espaço que se diz desenvolvido, é um escândalo e gerador da prática de atos anti-sociais.
Como corolário desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.867 reclusos a cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70% superiores a 3 anos de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas a cumprir penas e medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas nesse ano e dos cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos nos países da U.E. com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas punitivas. Temos de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico psiquiatra Miguel Bombarda que, há um século atrás, declarou “A Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz doidos.” 
Com este quadro aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre a prevenção da criminalidade como caminho para a abolição das prisões, invertendo a tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos classificados como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como exemplo, podemos atentar na problemática das drogas, que estimo em ser responsável por mais de 80% dos crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento de pena, tendo sido condenadas, em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões relacionadas com drogas, além das que foram condenadas por crimes contra as pessoas, contra o património e contra a propriedade que, na maioria dos casos, se destina a obter meios que permitam o acesso às drogas. Tenhamos em consideração que, ainda em meados do século passado, era inexistente, ou quase residual, a sua figuração nos normativos penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos aos nossos alunos de figuras famosas da literatura, das artes plásticas, da música e do desporto, que reconhecemos como personalidades relevantes, apesar de terem tido comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis pela comunidade. Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da liberdade, do consumo de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem de se aceitar a sua produção e comercialização. Logo, há que considerar uma nova política de drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a produção ao consumo, simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização para os efeitos das dependências e suas consequências, a exemplo do que já foi, e está a ser, feito para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e financeiros adstritos ao combate às drogas,  desde  as  polícias às prisões  e às instituições cujo modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento, possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização.
Excelentíssimas entidades presentes
Minhas senhoras e meus senhores

Celebrou-se em 10 de Dezembro o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No próximo dia 5 de Maio o Conselho da Europa também celebrará igual aniversário. Há 70 anos os nossos pais e os nossos avós definiram os grandes valores civilizacionais que deveriam estar presentes na vida de todos nós, tendo os nossos Governos assinado os tratados e convenções que nos obrigam a respeitar esses valores. Setenta anos passados continuamos a assistir ao desrespeito desse legado, pelo que deveríamos sentir vergonha pela nossa incapacidade e  indiferença.  É tempo de todos nós nos empenharmos em praticar, quotidianamente, o reconhecimento da dignidade estabelecido no artº 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerando o direito à liberdade como valor absoluto.
 Este evento dedicado às grandes causas e valores da humanidade tem importância  relevante  numa  nova  dinâmica  para  se  inverter  o  caminho  de retrocesso civilizacional que temos vindo a viver, pelo que reforço as felicitações   pela   sua   realização.  Temos   de   reconstruir  as   bandeiras   que simbolizam a humanização duma sociedade com mais fraternidade e não maior egoísmo, com mais concórdia e não mais conflitos, com mais igualdade e não maior desigualdade, com amor e não com ódio, com mais humanidade e não maior desumanidade.
Tenho consciência de que o ser humano é imperfeito e, como tal, propenso a cometer erros, mas sem que tal tenha que ter como consequência a perda da liberdade. A prevenção da prática de atos anti-sociais (prevenção do crime) tem de ocupar lugar de grande importância na formação do carácter das pessoas, seja nas escolas, nas famílias, nos órgãos de comunicação social e na vida em sociedade.
Ainda, há poucos anos, passou nas salas de cinema o filme “I Daniel Blake” que retrata alguns aspectos da sociedade desumana em que estamos inseridos. Recomendo vivamente o seu visionamento a quem ainda não o fez. Eu não quero fazer parte de quem não vê, de quem não ouve, de quem não lê, e não quero ignorar, como nos exortou a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen, de quem comemoramos o centésimo aniversário do seu nascimento. Sendo eu um defensor da liberdade e, como tal, da abolição das prisões, quero ter a esperança de que o caminho para tal se concretize fruto da pressão de iniciativas como esta.
(…)
O objectivo da nossa missão de voluntariado é bem claro: semear a paz e a esperança, permitindo o sonho dum mundo melhor que, infelizmente, está cada vez mais arredado do modelo de sociedade que se está a implementar neste início do século XXI. Atentemos na afirmação de Alexandre O’Neil: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. Será um sonho não querermos os reclusos fechados, nos vários sentidos, mas abertos e disponíveis para com todos nos caminhos do mundo, abertos e disponíveis para com tudo que os faça crescer entre os povos, com justiça, entreajuda fraterna e a verdadeira paz? Neste sentido, continuarei a pedir a todos os que me rodeiam para reflectirem no lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, extraída do evangelho segundo S. João: “ Quem nunca errou que atire a primeira pedra”.
O arrepiar do caminho que nos está a levar para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da conflituosidade, ao invés do que se tem passado  em que  a  prioridade foi dada aos meios repressivos. A sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais, mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… -  não tem tido resultados. Se este reforço de meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade na sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A aposta na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não  é  dissuasor  da  prática criminosa,  quase parecendo provar-se o contrário; quanto maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema Por um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade,  igualdade e fraternidade como centrais na nossa relação para com os outros.
Desejamos que desta audição parlamentar possam sair fortes contributos para uma nova visão do sistema prisional em Portugal, substituindo o castigo, o ódio e a vingança pela prevenção dos atos anti-sociais e pela justiça restaurativa, com tradução em medidas concretas, permitindo que o Estado de Direito viva nas prisões, enquanto não são abolidas, e sejam respeitados os Direitos Humanos, de cujos referenciais jurídicos Portugal é Estado-parte.

Muito obrigado

Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos
09/07/2019