terça-feira, 21 de abril de 2020

Depois da Tragédia



É consensual definir a tragédia “como uma forma de drama que se caracteriza pela sua seriedade e dignidade, pondo frequentemente em causa os deuses, o destino ou a sociedade (Wikipédia)”. O que temos visto, recentemente, em Portugal e em variados países do mundo, é uma tragédia sustentada na ameaça da Covid19, já que o poder político, revestido de ar sério, pôs em causa a estrutura da vida em sociedade, com a cobertura amestrada da maioria dos órgãos de comunicação social.
Num curto espaço de tempo, de poucas semanas, assistiu-se ao estabelecimento de Estados de Emergência, com a suspensão e alteração do direito à liberdade de circulação e do direito de resistência, com a legitimação do uso do poder arbitrário pelas forças policiais baseado em “acções musculadas”, com o caos no funcionamento do sistema produtivo, com o drama nas vidas das pessoas afectadas, com a alteração profunda nas relações sociais e com a imposição do poder totalitário do Estado.
Este estado de coisas implementou-se rapidamente, com a aquiescência receosa da esmagadora maioria das pessoas, já que o medo da morte, em consequência de eventual contágio, impôs-se de forma absoluta. De nada valeram algumas objecções levantadas por um pequeno grupo de pessoas, suportadas pela relativização das implicações apontadas e pela gravidade das consequências das medidas tomadas. A pandemia do medo suplantou, inclusivamente, a pandemia da Covid19, esquecendo, deliberadamente, que viver tem riscos e que a morte é o fim natural dos seres vivos. George Orwell, há quase um século, enfatizou que “O importante não é mantermo-nos vivos, é mantermo-nos humanos”. Ora, esta pandemia do medo sobrepôs a vontade de viver, ainda que seja sobre a desumanidade imposta aos outros seres humanos. Foi a vitória do egoísmo sobre a fraternidade.   
Como consequência, o poder político retirou enormes proventos da situação, já que ao apoiar essa esmagadora maioria de pessoas medrosas, atraiu-as para o seu espaço político, com o consequente crescimento eleitoral. Ficou-se a saber que um grande argumento para a atração de simpatias pode ser a utilização do medo como fator mobilizador.
Estamos, agora, a um passo de alterar o Estado de Emergência, não se sabendo, ainda, se a tragédia vai acabar ou, apenas, atenuar-se. Importa, todavia, alertar para princípios basilares que devem nortear toda a acção humana, em quaisquer circunstâncias.
O futuro próximo tem de ser construído no respeito pelos direitos humanos universalmente consagrados, construídos na segunda metade do século XX e constantes, nomeadamente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e normativos jurídicos dela derivados (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais, Convenção dos Direitos da Criança, Convenção Europeia dos Direitos Humanos, etc…), tendo em conta que, de acordo com a Declaração de Viena das Nações Unidas de 1993, todos os direitos humanos são iguais, universais, indivisíveis e interdependentes (por exemplo, a vida é tão importante como a liberdade ou a educação, nem mais nem menos). Neste sentido, há que respeitar princípios que estão a ser desrespeitados dentro do Estado de Emergência, nomeadamente, repondo a liberdade de circulação, o direito de resistência e a não discriminação em razão da idade (é aviltante a forma como estão a ser discriminados os idosos, infringindo gravemente o direito à igualdade na dignidade). Como exemplos extremos do carácter desumano imposto pelo Estado de Emergência, podem-se citar as restrições na prestação de assistência a familiares e amigos internados nos hospitais e a cumprir penas nas prisões, ou na participação nos funerais dos que nos são queridos, assim como no acesso à igualdade na educação, já que se agravaram as desvantagens das crianças oriundas de famílias pobres com as novas modalidades de ensino adotadas, além da destruição significativa de postos de trabalho lançando na pobreza e exclusão social largas camadas da população.            
Importa, ainda, aproveitar a oportunidade para implementar uma nova ordem política, económica, social e cultural, assente nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, já que o modelo anterior à pandemia do medo (Covid19), assente, de forma crescente, na escravatura e exploração de seres humanos criando desigualdades gritantes, se estava a afastar dos referenciais humanistas subjacentes aos normativos de direitos humanos atrás mencionados. Tenhamos em conta que a democracia não se esgota em eleições livres e periódicas, nem na vontade totalitária da maioria.
Relembremos o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

Porto, 21 de Abril de 2020

Manuel Almeida dos Santos

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Direitos Humanos. Que Futuro?



A promoção da dignidade humana tem mobilizado um conjunto alargado de entidades, nomeadamente desde a segunda metade do século XX, na sequência da proclamação, em 10 de Dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas. O mundo assistiu, a partir daí, ao crescimento de organizações, ditas do terceiro sector, a um ritmo e dimensão tais que as tornaram um pilar fundamental da vida em sociedade. Além das obediências maçónicas, assistiu-se ao florescimento de associações de direitos humanos, ecologistas ou de defesa do consumidor, até às fundações, instituições de solidariedade social e agremiações de beneficência, dispondo estas organizações, hoje, dum poder que as torna apetecidas por quem detém o comando governamental dos mais variados países. Muitas delas são já parte de ramificações internacionais que as tornam verdadeiras multinacionais da sua área de actividade, ombreando em capacidade de influência com muitas multinacionais da economia com fins lucrativos. Não é por acaso que estas se envolveram nos últimos anos com entidades de políticas de responsabilidade social. O seu crescimento, a nível nacional e internacional, tornaram-nas incontornáveis para os mais diferentes governos, primeiro como organizações temidas e recentemente como parceiras. Esta sua evolução deixa em aberto respostas para muitos dos problemas que rodeiam o mundo na atualidade.
Chegados ao segundo decénio do século XXI interessante é verificar alguns passos da evolução histórica destas organizações, assim como perspectivar o seu papel no futuro próximo, nomeadamente nas que se ligam aos direitos, liberdades e garantias. Tendo muitas dessas organizações nascido ligadas a nobres objectivos, esse seu cordão umbilical tem-lhes garantido a sobrevivência, apoiada em actividades que fazem a ponte entre o passado e o presente. No entanto, mesmo que algumas das actividades que desenvolvem continuem a ser de interesse para comunidade, a sua existência tem-se vindo a tornar de grande relevância para a credibilização do sistema político ainda vigente na maioria dos países do mundo (pretensamente democrático), tonando-se numa muleta fundamental para a sustentação do modelo político-económico-social ainda em vigor, nomeadamente na generalidade do mundo ocidental, perdendo o estatuto reconhecido, ainda não há muito tempo, de organizações isentas, independentes e imparciais, temidas pelas instâncias governamentais. Não é por acaso que estão a passar de organizações temidas e respeitadas para parceiros que contestam alguns aspetos mas não põem em causa os pilares do sistema. Assim sendo, é esperança vã que elas possam ser protagonistas de primeira linha numa tentativa de melhoria significativa do actual modelo de sociedade, expectativa esta agravada pelas alterações que se estão a verificar no comprometimento, para com os direitos humanos, de governos recentemente eleitos.  
Na época dourada da explosão do activismo genuíno (dos anos setenta aos anos noventa do século passado), muitas ONGs nasceram fruto da constatação da necessidade da sua existência para pressionar o poder político, no sentido das causas que estavam na sua identidade pudessem merecer uma maior atenção, como entidades específicas de âmbito nacional ou como ramos de organizações internacionais já existentes na área de intervenção. A Maçonaria, também, tem tido um crescimento notável em tempos recentes.  

A esta mudança do paradigma de funcionamento não escapam organizações que granjearam credibilidade e cujo prestígio obtido permite ainda alguma notoriedade pública. Quase se pode dizer que vivem à custa do capital de reconhecimento alcançado no passado. São disto exemplo ONGs de direitos humanos, sindicais, de defesa do consumidor, de serviço à comunidade e de certas obediências da Maçonaria, cujas práticas utilizadas, na importância que é dada à sobrevivência institucional, à gestão financeira, aos modelos tecnocráticos da nova onda da governança, à angariação de fundos e à constituição de provisões e aplicações financeiras de montantes excessivos e em instituições financeiras de duvidosa postura ética, ou no recrutamento de novos membros/associados sem identidade ideológica, quase faz parecer que o que é importante é ter muitos associados e o recebimento do valor da jóia e quotas, ou, ainda, utilizando na sua estrutura de funcionamento posturas pouco recomendáveis na gestão de pessoal, recorrendo a trabalhadores precários e/ou independentes ao arrepio das funções efectivamente exercidas. Muitas das organizações estão a passar de organizações fraternas a organizações quase sem calor, sem afecto, sem amor, sem alma, tratando as temáticas do seu objecto social quase de forma tecnocrática, com recurso a trabalhadores pressionados e desmotivados. Também, aqui, essas organizações, tal como os governos, estão a hipotecar a coragem ao medo da opinião pública, não tendo em conta o alerta do maçon e presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, na altura da II guerra mundial: “Aquilo que mais devemos temer é o nosso próprio medo”.      

Para a afectação da sua  imagem de independência, isenção e imparcialidade tem contribuído, significativamente, a acção dos diferentes tipos de lobbies que se têm desenvolvido a um ritmo sempre crescente. O lobby económico, o lobby ambientalista, o lobby militar, o lobby gay e as variantes LGBTIQ+, o lobby social enquadrado pelas IPSS, etc…, são hoje forças poderosas que influenciam fortemente o poder político e as obediência maçónicas (em Portugal tivemos um exemplo recente com o projecto de lei sobre a coadoção, em que o que se relevou foi a defesa da não discriminação dos casais do mesmo sexo, quase omitindo que o que estava em causa, fundamentalmente, eram os direitos das crianças, já que são estas que têm o direito a serem adotadas e não são os adultos que têm o direito de adotar. O lobby LGBTIQ+ quase conseguiu apagar a abordagem pelo lado dos interesses das crianças, parecendo que estas eram mera mercadoria). O poder dos lobbies na vida das ONGs leva já à participação de grandes multinacionais nas suas actividades, gerando um pântano que já ganhou direito a denominação atractiva como são as políticas ditas de responsabilidade social. Para promover este pântano constituem-se entidades, como são a BCSD Portugal e a GRACE Portugal, agrupando grupos económicos poderosos, que, sob a capa do altruísmo, albergam empresas frequentemente alvo de denúncias de comportamento censurável. Basta consultar os sítios na Internet destas entidades para termos conhecimento de quem quer fazer passar a mensagem de que pratica políticas de responsabilidade social, ao mesmo tempo que praticam dumping social, trabalho precário, salários de miséria, marketing pouco ético,  etc .
A evolução desta estratégia dos lobbies leva a que o próprio poder político acabe por ficar refém e, até, interessado nesta conjugação de interesses entre os lobbies e as ONGs, incluindo as obediências maçónicas, colocando estas como entidades credibilizadoras do sistema político vigente.
Temos de nos libertar de tutelas e ser mais incisivos nas prioridades internacionais e nacionais, de que destaco a pobreza, a exclusão social, o direito à própria defesa, as prisões e as crianças, assim como temos de combater a escravatura moderna com a precariedade e os baixos salários.
Importantes organizações, tal como actualmente existem, não são já organizações democráticas no seu funcionamento real. Convocam assembleias gerais (já não por carta mas por anúncio nas suas revistas ou por email), realizam eleições, difundem comunicados, editam revistas ou newsletters, mas os associados pouco ou nada participam. Em consequência, há pouca rotatividade de dirigentes, provocando a tomada do poder por militantes com interesses diretos nessa qualidade, como trampolim para outros voos, introduzindo uma promiscuidade de interesses nada prestigiante para o objecto específico das organizações. 

 Um outro exemplo pode ser a imposição da concorrência como o primado da defesa dos cidadãos enquanto consumidores, que tem vindo a ser seguido pela generalidade das associações de consumidores, colocando em plano secundário, ou até esquecendo que há bens e serviços que não podem ficar sujeitos à selva da concorrência, de que são exemplos a água, a energia e a generalidade dos serviços públicos essenciais – o argumento de que entidades reguladoras poderão disciplinar os sectores em questão tem-se revelado uma falácia. Acresce ainda a dependência dessas entidades reguladoras do poder político, quer na nomeação dos seus responsáveis, quer do quadro legal que cerceia a sua independência e capacidade de decisão. A ineficácia, que estas entidades reguladoras e de supervisão têm vindo a demonstrar, está patente na realidade escandalosa que se vê no sectores financeiro, dos combustíveis, das telecomunicações, da energia, etc…, fazendo-se acompanhar de igual ineficácia nos mecanismos judiciais que são chamados a ajuizar os procedimentos praticados.

Com tudo isto, este início de século está a colocar novas e preocupantes facetas nas relações entre os cidadãos e entre estes e a organização social. Valores inquestionáveis até há pouco tempo (ética, honradez, civismo, gratidão, lealdade, etc...), valem pouco mais que nada no modelo de sociedade em vigor, reduzindo à insignificância conceitos que perduraram e modelaram sociedades durante longo tempo.
O poder na sociedade é hoje exercido longe dos valores em que se baseava o conceito de democracia, que pugnava pela eleição dos melhores e não dos mais bonitos ou daqueles que utilizam o marketing mais agressivo e com exigência de elevados meios financeiros. Assiste-se ao apagamento do ideal de servir no exercício da coisa pública, simultaneamente com o apagamento da solidariedade como valor básico na consciência dos cidadãos. É o ter pelo ter! Assim sendo, não é de estranhar a ausência da rectidão e da coerência no quotidiano, renegando hoje o que se defendeu ontem ou utilizando vias pouco claras no atingir de objectivos. Tudo isto em nome da eficácia dum modelo de sociedade fria, oca, tecnocrática, que só apraz a quem dela tem oportunidade de se aproveitar. Uma sociedade de mortos. Mortos de sentimentos, mortos de humanismo. Mortos ou narcotizados. Mortos ou anestesiados. Mortos ou inactivos. Mas mortos que votam!

Uma nova faceta que se impôs sorrateiramente, quase sem se dar por isso, e que é uma nova concepção de Estado de Direito, traduz-se na subversão dos princípios clássicos do Estado de Direito, com a crescente implantação do Estado Totalitário de Direito. Estado este, em que o que conta são os valores formais, manifestando pouco empenhamento na individualidade de cada pessoa e no reforço do civismo. Já Afonso Botelho em “Origem e Actualidade do Civismo” dizia:“... . Na fraternidade profana em que vivemos só o acaso poderá permitir que a maioria coincida com o juízo de Deus ou com a razão verdadeira. Quase sempre corresponde a uma vitória do mais forte que não será, como é evidente, o mais justo. Por ser assim, é que encontramos tão frequentemente usada a expressão: maioria esmagadora. Não se repara, tal é o hábito, que ao usarmos esta expressão não estamos a fazer o elogio da maioria mas a condená-la como, assim desprevenida de qualquer virtude, efectivamente merece”. E Almada Negreiros dizia a propósito da Arte: “A opinião... abrange uma tão colossal maioria que receio que ela impere por esmagamento.” É que a democracia não se esgota na existência de eleições.

Uma sociedade assim conduz, inevitavelmente, à desigualdade, à insegurança e à repressão, contribuindo para a radicalização político-filosófica já que a radicalização entra quando as desigualdades e a injustiça se instalam. E isto é visível nas nossas cidades e nos cidadãos. A alienação do fait-divers (futebol, telenovelas, programas televisivos de sensacionalismo primário e concursos de chamadas de valor acrescentado,  etc…) desvia as pessoas de valores elevados de cidadania. O leque entre ricos e pobres aumenta na sua acentuação. A segurança aparece como principal aspiração, apesar do elevado número de presos nas cadeias. A liberdade é cada vez mais, camufladamente, condicionada, etc,etc,etc... . É um escândalo e uma vergonha que se fique impávido numa altura em que 20% dos cidadãos mais ricos ganhem 150 vezes mais que os 20% mais pobres. Não é 1% nem uma franja marginal. São milhões de pessoas que vivem em cima de muitos outros milhares de milhões. A desigualdade no acesso ao desenvolvimento acentua-se, com o desencanto de se manipularem as estatísticas para demonstrar que o desemprego não é tão alto quanto isso. E como se fazem as estatísticas? E os que estão fora das estatísticas? E o crescimento do emprego precário? Não são seres humanos os sem-abrigo, os arrumadores, os mendigos, os excluídos, os trabalhadores a recibo “verde”? É que de acordo com o artº lº da Declaração Universal dos Direitos Humanos “ Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.  

Por outro lado, a segurança e a liberdade não são sinónimos de repressão nem são hierarquizáveis entre si. Todos os direitos humanos não são só da direita ou da esquerda. São valores que têm de constituir o cimento das relações entre todas as pessoas. Ainda há poucos anos, na Declaração de Viena das Nações Unidas, ficou expresso que todos os direitos humanos são universais, interdependentes e indivisíveis. A sociedade de hoje não pode ver os seus cidadãos como potenciais criminosos ou delinquentes, vigiando-os e controlando-os. É inaceitável que se assista, à boa maneira orwelliana, à colocação de câmaras de vídeo nas ruas das cidades, deixando a liberdade e a privacidade de qualquer cidadão à mercê de quem visiona o vídeo. E não se diga que os inocentes não têm de ter medo. O simples facto de serem inocentes não os pode colocar ao nível de suspeitos criminosos.
Os mecanismos de protecção dos cidadãos têm de ser encontrados no reforço da educação para a cidadania e não no aumento da repressão.

A sociedade tem de mudar. Temos de dizer não à sociedade do medo, do rancor, da intolerância, policial, repressiva e agressiva. Os cidadãos têm de assumir os seus direitos e, também, os seus deveres. O dever da solidariedade, o dever da tolerância, o dever da honradez, o dever da honestidade, o dever da lealdade. Estes deveres não estão ultrapassados por muito que os apelos ao primarismo e à fruição egoísta o queiram fazer crer. Os modelos governativos actuais, que a globalização mundial torna quase todos iguais e que assentam na frieza tecnocrática e na repressão, têm de ser combatidos
Isto exige que se reforce a componente humana da sociedade e dos cidadãos. Havendo um manifestar frequente dalgumas feridas da sociedade, continua-se a assistir ao agravamento das suas causas e efeitos. Como exemplo, pode-se citar a inobservância dos direitos das crianças, a abordagem ineficaz à problemática das drogas, a gravidade da dimensão dos conflitos pessoais, a intolerância, o individualismo, etc… . E o que tem feito a sociedade para curar estas feridas às pessoas? Tem-lhe dado uma educação humanista? Tem contribuído para a sua estabilidade psíquica? Tem-lhe providenciado referenciais morais, cívicos e de urbanidade? Infelizmente, parece-me não se poder responder de forma positiva a estas interrogações.

A sociedade está mais virada para o engodo dos eleitores do que em manter a humanidade do cidadão. A sociedade está mais preocupada em recrear do que em formar ou cultivar. A sociedade está mais preocupada em aumentar o ter do que em valorizar o ser. O repensar, o discutir, o questionar do papel da sociedade e do cidadão é a chave para criação duma sociedade mais humana, em que o cidadão goste verdadeiramente de nela viver. Passados mais de 70 anos da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importa ter presente que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes. Isto quer dizer que a eficiência económica não pode ter o primado do que quer que seja. Os cidadãos devem assumir-se como cidadãos enquanto é tempo. Não podem deixar que na sociedade impere o medo, a intolerância, a polícia, a repressão. O pesadelo de George Orwell, em 1984, não deve ser o guia da sociedade e do cidadão. Em 10 de Dezembro de 2018, na Assembleia da República, ao receber o prémio Direitos Humanos 2018 em nome da Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, tive ocasião de manifestar esta visão repressiva que impera na sociedade actual, no sistema prisional, sendo as prisões instituições desumanas, medonhas, medievais, arcaicas e violentas, impróprias do modelo humanista que está na base da Declaração Universal dos Direitos Humanos. 

Ao ver recentemente uma reportagem televisiva questionei-me: o que dirão de nós, daqui por alguns anos, ao assistirem, nessa altura, a um eventual programa de televisão com retratos da situação social no ano de 2019? O que dirão de nós por assistirmos quase passivamente à existência, só em Portugal, de mais de 400.000 inativos adultos sem qualquer fonte de rendimento? O que dirão de nós que sabemos que muitas dezenas de milhares de crianças vão para a escola sem terem feito os trabalhos de casa por não disporem de luz em suas casas (cortada por falta de dinheiro para a pagar)? O que dirão de nós que sabemos que essas mesmas crianças já pouco têm que comer e beber em casa (a água também foi cortada pela mesma razão de ausência de rendimento)? O que dirão de nós que sabemos pela comunicação social da morte de idosos abandonados, sem nada mudarmos nas nossas relações com os pais ou avós? O que dirão de nós que sabemos da existência duma mendicidade institucionalizada e dum número crescente de sem abrigo? O que dirão de nós que sabemos do despejo de famílias que deixaram de poder pagar as prestações das suas casas, ficando estas vazias anos e anos após o despejo? O que dirão de nós que exultamos com o bom negócio que fazemos ao arrematarmos por tuta-e-meia, em leilões concorridos, os bens penhorados a quem deixou de os poder pagar? O que dirão de nós que sabemos que esta pobreza coabita com ricos, podres de ricos, e governantes bem instalados na vida? O que dirão de nós que sabemos que esta pobreza convive com situações escandalosas de corrupção, confisco, nepotismo e compadrio? O que dirão de nós que continuamos a mandar para prisões medievais os desafortunados da vida? O que dirão de nós que criamos um sistema dito democrático mas que tem agravado a injustiça e as assimetrias sociais? O que dirão de nós que criamos organizações de direitos humanos, de consumidores, de rotários, de obediências maçónicas, de confissões religiosas, etc., que deviam impedir que isto acontecesse mas que parece que se auto comprazem com pouco mais do que a sua mera existência, já quase não restando esperança de que estas organizações possam protagonizar alguma dinâmica de resistência ao retrocesso civilizacional em curso?
Muitos dos responsáveis de há setenta e cinco anos, da II guerra mundial, alegaram que desconheciam a situação. Nós não vamos poder apresentar a mesma desculpa. Como disse a poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen "Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar".
E não temos vergonha de estarmos a ter este comportamento cúmplice e comprometedor? Não temos vergonha do que vão dizer de nós no futuro? Que raio de sociedade esta em que vivemos!

Analisando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, vemos que estamos a regredir da evolução conseguida em muitos aspectos nela consignados. Os seus defensores têm de se assumir, afastando os hipócritas envergonhados, não abrindo caminho aos seus opositores declarados, não premiando os silenciosos oportunistas. O crescente apagamento das ONGs em geral, e da Maçonaria em particular, tem significativa  importância no estado atual dos direitos humanos e na expectativa da sua evolução, já que a postura reinante na esmagadora maioria dos responsáveis políticos que conduzem o mundo não augura um futuro auspicioso para a vida quotidiana dos cidadãos, pelo que ressalta a necessidade de repensar a cidadania na base do voluntariado nas ONGs, aprofundando a prática efectiva da liberdade, igualdade e fraternidade no seu quotidiano, com isenção, independência e imparcialidade. A Maçonaria, como ordem universal, filosófica e progressista, não se pode alhear da importância e influência dessas organizações, sob pena de apagamento dos seus valores na condução dos destinos da sociedade.

A evolução política verificada, nos últimos anos, nalguns países, vai tornar mais necessária a acção das ONGs, fazendo-as voltar aos grandes valores, ainda que tal se possa ressentir na diminuição da adesão dos cidadãos, já que o medo pode voltar a instalar-se como condicionante do seu comportamento. Tempos difíceis se avizinham e é nessas circunstâncias que a resistência à violação dos direitos humanos se torna mais necessária. Contudo, a história mostra-nos que é nessas alturas que a generalidade das pessoas de acobardam, ou, até, se colocam ao lado do poder instalado, ficando uma minoria de corajosos humanistas sujeitos às arbitrariedades do poder político despótico. A recente proposta do partido político PAN sobre a declaração de pertença a organizações discretas, dando como exemplo a Maçonaria, viola direitos fundamentais, pois qualquer obrigatoriedade de declaração de pertença, seja a que entidade for, viola a liberdade de associação e o direito à proteção da vida privada. Tal ressalta claramente dos referenciais jurídicos internacionais de direitos humanos. Os requisitos para a identificação das pessoas, devem ser, somente, os exigidos para documentos pessoais (cartão de cidadão, carta de condução e passaporte). Se qualquer pessoa é suspeita de pertencer a uma associação para a prática de atos ilícitos, pode, na situação atual, ser sujeita a uma investigação e acusação. O que não se pode é colocar todos os que pertencem a essa associação como potenciais criminosos.
A actualidade da filosofia e dos valores consignados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e a promoção da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, tem de envolver todas as pessoas corajosas na sua defesa e aprofundamento, com a força, beleza e sabedoria necessárias a todo o empreendimento de base humanista.

Como nos exorta o filósofo contemporâneo Michel Onfray  “Mais do que nunca, a tarefa da filosofia é resistir, mais do que nunca ela exige a insurreição e a rebelião, mais do que nunca ela deve incarnar os germes da insubmissão.”

Manuel Hipólito Almeida dos Santos 
14/03/2020