quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Prémio Direitos Humanos 2018 - Intervenção na Assembleia da República


 Obra  Vicentina  de  Auxílio  aos  Reclusos – O.V.A.R.
                  Rua de Santa Catarina, 769 - 4000-454  Porto -  Tel./Fax 222006255 – o.v.a.r.reclusos@gmail.com
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                                               “Quem nunca errou que atire a primeira pedra” (Jo 8,7)



Excelentíssimo Senhor Dr. Ferro Rodrigues
Digníssimo Presidente da Assembleia da República
Excelentíssimas entidades convidadas
Senhoras e senhores deputados
Caras e caros, reclusas, reclusos e ex-reclusos;
Vicentinas e vicentinos da Sociedade de S. Vicente de Paulo
Minhas senhoras e meus senhores

A gratidão é um dos princípios subjacentes ao reconhecimento pela atribuição de distinções, nomeadamente quando se trata de elevados valores humanos. Neste sentido, estamos muito gratos com a atribuição do Prémio Direitos Humanos 2018, pela Assembleia da República, reconhecendo a nossa contribuição para a humanização do sistema prisional e a reinserção dos reclusos, partilhando esta distinção com todos os que são sensíveis ao respeito pelos direitos humanos.
A O.V.A.R.- Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, integrando o Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo, exerce a sua missão, tendo em conta o legado de S. Vicente de Paulo e a exortação do seu fundador, Beato Frederic Ozanam, de quem herdamos o lema “Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas”.
Numa visão humanista sobre o sistema prisional, constatamos que há um grande trabalho por fazer. A existência de situações ao arrepio dos valores civilizacionais constantes dos referenciais universalmente aceites, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de que comemoramos hoje o seu 70º aniversário, exige de nós um esforço acrescido para a sua superação.

Por exemplo, continuamos a não ter a garantia do direito generalizado à própria defesa violando o artº 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte. Assiste-se ao desrespeito do espírito da Constituição da República Portuguesa e do Código Penal, com a permissão de que o tempo consecutivo de permanência na prisão exceda 25 anos, nos casos das penas sucessivas e das medidas de segurança, configurando a prisão perpétua constitucionalmente proibida. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da média da U.E.). Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade. Mantem-se a fragilidade do apoio judiciário, situação agravada com a impossibilidade do direito à própria defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação. Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência. Por outro lado, o passo positivo dado, há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia não punitiva mais alargada, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera e negativa, ao invés de encarar a realidade enquadrando legalmente a sua produção e comercialização e dinamizando uma política de sensibilização para as consequências da dependência (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool que podem servir de guia para uma nova política sobre as drogas), sendo as drogas, juntamente com a pobreza, autênticas chagas e as principais responsáveis no abrir do caminho para as prisões. As limitações às comunicações telefónicas, às visitas familiares e à assistência espiritual e religiosa, agravam as dificuldades para a reinserção social e à manutenção dos laços afetivos. A dinâmica de reinserção social nas prisões é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs. O trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo. A aposta numa dinâmica da educação ressente-se da inacessibilidade às TIC e da falta de meios, quer materiais, quer de recursos humanos, carências estas extensivas a muitas outras áreas das prisões. A alimentação e os serviços de saúde são manifestamente  pobres  e  insuficientes.  Há uma  aceitação  acrítica  sobre  a  vivência  de  bebés  no  interior das prisões acompanhando o cumprimento de penas de suas mães. E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
  
As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas, apoiando-se numa parte da opinião pública que apela à vingança, à repressão, ao terror e ao medo, apesar das medidas e dos esforços que são feitos. As prisões não reinserem, têm pouco efeito dissuasório e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem uma dimensão elevada em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa, desviando o foco do criminoso para a prevenção do crime e reparação dos seus danos. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada. Por outro lado, a educação para a cidadania, como base para a prevenção da prática de atos anti-sociais, tem de ter lugar relevante e transversal numa sociedade sem vítimas nem criminosos.
O actual sistema prisional e de justiça é aterrador, frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os arguidos e os reclusos mais frágeis, secundarizando a equidade como valor relevante. As cerca de 70.000 crianças e jovens que anualmente são acompanhadas nas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens estão a constituir uma grande fonte para o elevado número da população prisional. Ainda, em Junho do corrente ano, a Provedora de Justiça declarou que a realidade nas prisões portuguesas é chocante. Um ex-ministro da Justiça, Dr. Alberto Martins, admitiu, num debate, que se há inferno neste modelo de sociedade ele está nas prisões. O Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, Dr. Celso Manata, quando questionado sobre a situação nas prisões lembrou, na audição parlamentar em Maio deste ano, que foi enviado para a Assembleia da República o documento sobre os investimentos prioritários nas prisões para os próximos anos, aguardando-se a concretização do programa subjacente.
Portugal é dos países que mais tratados, convenções e protocolos de direitos humanos tem assinado e ratificado e ainda bem que é assim. Estes referenciais não são só meros documentos indicativos. São normativos jurídicos e, portanto, têm de ser cumpridos. 
Chegados a 2018, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas, enquanto não se acabar com as prisões. A alteração profunda da legislação penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes, esperando-se que haja sensibilidade política para a sua realização.
Temos de centrar a atenção nas implicações concretas das prisões na vida dos reclusos, nas suas famílias, nas vítimas dos crimes e na ineficácia no ressarcimento dos danos provocados pelo crime. Fiódor Dostoiévsky constatou que “O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente”. Ora, os doentes precisam de ajuda para o tratamento e não de serem encerrados em prisões. O Papa Francisco, na visita ao campo de concentração de Auschvitz, alertou para a desumanidade com que vivem os encarcerados de hoje, não podendo serem as prisões a Auschvitz do nosso tempo.
Concluindo, o que estamos aqui a dizer temo-lo vindo a declarar desde há muitos anos, na linha do que fazem várias ONGs, os Comités sobre a Tortura do Conselho da Europa e das Nações Unidas e a Provedoria de Justiça através do Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura, ainda que esta estrutura tenha um funcionamento a carecer de revisão. Como instituição cristã revemo-nos em Jesus Cristo que, também, foi preso, torturado e cruxificado. O nosso patrono é S. Dimas, o bom ladrão cruxificado ao lado de Jesus Cristo. Temos de ter presente que Deus condena o pecado mas perdoa e recupera o pecador. O exercício do nosso voluntariado acresce-nos mais obrigações de cada vez que entramos numa prisão, já que, por muito que façamos, saímos sempre mais ricos com a experiência humanista obtida nos contactos dentro das prisões. Ganhamos mais do que o que damos o que nos obriga, moralmente, a um maior empenhamento, dando de nós sem pensar em nós, dando com uma mão sem que a outra mão veja. No próximo ano esta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos perfaz cinquenta anos na sua missão. A experiência obtida aponta no sentido duma dinâmica de abolição das prisões, duma sociedade mais fraterna e solidária, em que o ódio, a vingança e o crime não tenham lugar. Será uma utopia? A resposta pode ser dada recuperando e adaptando a expressão do falecido Dr. António Arnaut, que foi deputado nesta Assembleia da República: “Utopia? Talvez. Mas utopia (…) não é o impossível. É o lugar do encontro. E esse lugar está dentro de nós”.
Nos grandes valores civilizacionais que devem nortear as relações entre todas as pessoas, incluindo na justiça e nas prisões, tem de estar o lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, de apelo ao perdão e misericórdia, extraído do evangelho segundo S. João:
“Quem nunca errou que atire a primeira pedra”.

Muito obrigado
10/12/2018 – Manuel Hipólito Almeida dos Santos – Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos