quinta-feira, 23 de outubro de 2014

ONGs – Passado e Presente - Uma experiência pessoal

I- O Despertar para a necessidade de pertença a ONGs ................................................................................... O mundo assistiu, a partir do início da segunda metade do século XX, a um florescimento de organizações, ditas do terceiro sector, a um ritmo e dimensão tais que as tornaram um pilar fundamental da vida em sociedade. Desde associações de direitos humanos, ecologistas ou de defesa do consumidor, até às fundações, instituições de solidariedade social e agremiações de beneficência, estas organizações dispõem hoje dum poder que as torna apetecidas por quem detém o comando governamental dos mais variados países. Muitas delas têm já ramificações internacionais que as tornam verdadeiras multinacionais da sua área de actividade, ombreando em capacidade de influência com muitas multinacionais da economia com fins lucrativos. Não é por acaso que estas se envolveram nos últimos anos com entidades agregadoras de políticas de responsabilidade social. Além das conhecidas pela sigla ONGs (Organizações não Governamentais), outras existem com um vínculo mais próximo do poder político, como as OIGs (Organizações Inter-governamentais, como o Conselho da Europa), as OQGs (Organizações Quase Governamentais, como certas Entidades Públicas), as OPGs (Organizações Para-governamentais, como as Entidades Reguladoras) e outras com perfis de maior ou menor independência dos Estados. Havendo, muitas vezes, uma fronteira difusa entre estes tipos de organizações, que gerem bens e serviços de interesse público e privado sem propósitos lucrativos, normalmente têm como ponto comum o objectivo de prestação de serviço público. Um estatuto especial deve ser concedido às organizações de cariz religioso, devido ao seu carácter identitário reconhecido pelo ordenamento jurídico internacional, resultante do poder espiritual que detêm sobre os seus fiéis e da capacidade económica que supera a de muitos Estados. Chegados ao segundo decénio do século XXI interessante é verificar alguns passos da evolução histórica destas organizações, assim como perspectivar o seu papel no futuro próximo. Tendo muitas das ONGs nascido ligadas a nobres objectivos, esse seu cordão umbilical tem-lhes garantido a sobrevivência apoiada em actividades que fazem a ponte entre o passado e o presente. No entanto, mesmo que algumas das actividades que desenvolvem continuem a ser de interesse para comunidade, a sua existência tem-se vindo a tornar de grande relevância para a credibilização do sistema político vigente (pretensamente democrático), tonando-se numa muleta fundamental para a sustentação do modelo político-económico-social em vigor na generalidade do mundo ocidental, perdendo o estatuto reconhecido ainda não há muito tempo de organizações temidas pelas instâncias governamentais. Não é por acaso que as ONGs estão a passar de organizações independentes e respeitadas para parceiros que contestam algumas medidas mas não põem em causa os pilares do sistema. Assim sendo, é esperança vã que as ONGs que conheço possam ser protagonistas de primeira linha numa tentativa de melhoria significativa do actual modelo de sociedade. Tendo vivido a infância e juventude (até aos 27 anos) sob um regime político cerceador das liberdades de expressão, associação e de manifestação, onde a prática da tortura, da censura e da arbitrariedade eram pilares do regime, não era fácil, nessa altura, fazer nascer ou pertencer a uma qualquer organização, nomeadamente quando o seu estatuto poderia colidir com qualquer das facetas do Estado autoritário. Esta dificuldade mais acicatou o meu querer de pertencer a organizações que preenchessem e desafiassem as limitações e proibições desse Estado. A militância nas organizações de estudantes dos finais dos anos 60 é disso um exemplo. Esta postura de desagrado relativamente ao modelo político vigente em Portugal começou por expressar-se, enquanto estudante, nas acções promovidas pela Comissão de Sebentas do Instituto Industrial do Porto (CSAIIP) e agravou-se com os mais de três anos de serviço militar obrigatório que implicaram uma afectação profunda na vida estudantil, profissional e familiar. A passagem pelo Banco Borges e Irmão, em 1972/73, permitiu já alguma militância no Sindicato dos Bancários do Norte no contributo para a eleição duma direcção democrática após a intervenção administrativa do Governo no sindicato. Com a revolução do 25 de Abril de 1974 abriram-se as portas para o nascimento e participação em múltiplas organizações. Logo em 1974 e 1975, com a coordenação da Comissão de Trabalhadores da Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre e a inscrição como associado da DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor pouco tempo após a sua fundação, foram dados os primeiros passos significativos para a militância nas ONGs. Após este desabrochar tenho vindo a ter participação activa, de natureza voluntária, em inúmeras entidades de âmbito social, humanitário e de serviço à comunidade, cuja síntese consta do capítulo final deste livro. Outras considerações sobre questões de cidadania não constam com o desenvolvimento que mereceriam, por razões de síntese temática, de que o ataque à privacidade pode ser um exemplo que não tem encontrado a resposta adequada por parte das ONGs. Não é por acaso que tento atrapalhar a devassa à minha pessoa, usando composições diferentes do meu nome ao longo do tempo, das circunstâncias e das relações pessoais em que me envolvo (Na internet encontram-se referências à minha pessoa em fontes com denominações diferentes). Ao longo destes quarenta anos de activismo fui acompanhando a evolução do posicionamento destas organizações na sociedade. É da experiência nelas vivida, como activista e dirigente, que me permito fazer as constatações que se seguem. A sua extrapolação ou generalização, sendo possível em muitos casos, merece alguns cuidados tendo em conta muitas das suas especificidades. A abordagem casuística é, nalguns casos, acompanhada de artigos publicados em órgãos de comunicação social ou suporte de palestras e conferências, retratando o entendimento na altura da publicação e actualizando-o. Estes artigos tratam diversos aspectos da situação política, económica e social, sendo o propósito da sua inserção neste livro constatar o cada vez maior afastamento e ineficácia das ONGs no enfrentamento das questões abordadas. Por vezes o mesmo tema é abordado em mais de um artigo, ou partes são repescadas dum artigo para outro. Tal é reflexo da manutenção da sua atualidade. ................................................................................................................................. II - O objecto social identitário e a desvirtuação da autenticidade ética .................................................................................................................................... Na época dourada da explosão do activismo genuíno (dos anos setenta aos anos noventa do século passado), as ONGs nasceram fruto da constatação da necessidade da sua existência para pressionar o poder político, no sentido das causas que estavam na sua identidade pudessem merecer uma maior atenção, como entidades específicas de âmbito nacional ou como ramos de organizações internacionais já existentes na área de intervenção. A iniciativa da sua criação partiu dum conjunto de pessoas idealmente motivadas por uma causa, sem interesses de espírito lucrativo ou de poder pessoal. A adesão a essa entidade foi feita partilhando a comunhão dos princípios, na base da igualdade associativa, quer na expressão de opiniões, quer no acesso aos lugares de direcção. Esta era composta por activistas do respectivo sector de actividade, exercendo os cargos directivos sem qualquer remuneração ou incentivo monetário, em acumulação com a ocupação profissional respectiva. A maioria nem sequer utilizava o direito de faltar ao trabalho nos sectores em que o quadro legal tal permitia. As instituições traduziam uma identificação total com as causas a que se dedicavam, sendo estas sustentadas em princípios e valores de adesão profunda, gerando credibilidade e consistência na sua aceitação. A sua gestão, que continha como receitas apenas as quotas dos associados e algum eventual donativo, pautava-se pela defesa da causa como objectivo quase único, sem obediências excessivas a critérios de rentabilidade, de aplicações financeiras ou de constituição de património para rentabilização de capital (por exemplo, a Amnistia Internacional Portugal tem, há anos, várias centenas de milhar de euros em depósitos a prazo que deveriam estar a ser utilizados em campanhas em prol das vítimas de direitos humanos). Esses activistas pautavam-se pela dedicação generosa a causas no verdadeiro sentido do termo. Esta postura das instituições e dos seus dirigentes tem vindo a sofrer uma desvirtuação profunda. Por um lado, as ONGs tendem a tornar-se dependentes do modelo economicista, quer em sistemas de gestão, quer na implementação de regras dos mercados de que a angariação de fundos é um exemplo. A ética dos processos e as causas de base da existência das ONGs ficaram hipotecadas a este modelo (O Clube Bilderberg integra nas suas reuniões anuais membros das mais influentes ONGs mundiais). Por outro lado, os seus dirigentes e ativistas tendem a deixar de ser militantes da causa mas sim interesseiros nos resultados e nos processos utilizados. A gestão e vivência no interior das organizações passaram a incorporar muitas práticas das empresas de teor neoliberal, quase apagando a base humanista que as devia nortear. A esta mudança do paradigma de funcionamento não escapam ONGs que granjearam credibilidade e cujo prestígio obtido permite ainda alguma notoriedade pública. Quase se pode dizer que vivem à custa do capital de reconhecimento alcançado no passado. São disto exemplo ONGs de direitos humanos, sindicais, de defesa do consumidor, de serviço à comunidade e de certas obediências da Maçonaria, cujas práticas utilizadas, na importância que é dada à sobrevivência institucional, à gestão financeira, à angariação de fundos e à constituição de provisões e aplicações financeiras de montantes excessivos e em instituições financeiras de duvidosa postura ética, ou no recrutamento de novos membros/associados sem identidade ideológica, quase faz parecer que o que é importante é ter muitos associados e o recebimento do valor da jóia e quotas, ou, ainda, utilizando na sua estrutura de funcionamento posturas pouco recomendáveis na gestão de pessoal, recorrendo a trabalhadores precários e/ou independentes ao arrepio das funções efectivamente exercidas. Ao longo deste livro vários exemplos mostrarão que muitas ONGs estão a passar de organizações fraternas a organizações quase sem calor, sem afecto, sem amor, sem alma, tratando as temáticas do seu objecto social quase de forma tecnocrática, ainda que este trabalho continue a revelar-se de interesse para a comunidade. Tal pode ser constatado no apagamento que se assiste nestas organizações perante o atropelo em curso das mais elementares regras de cidadania, de que os artigos seguintes, redigidos e publicados nos últimos anos, são disso retrato, apagamento esse que se torna conivente com uma vivência em sociedade ao arrepio dum todo harmonioso. ........................................................................................................................... III - ONGs - As relações entre associados, dirigentes e secretariados ................................................................................................................................ A par com a evolução de filosofia de gestão, tem-se vindo a assistir, também, a uma alteração nas relações entre associados, dirigentes e funcionários dos secretariados. Como exemplos podem-se evidenciar a diminuição abissal da participação dos associados na vida das instituições, a “profissionalização” e a pouca rotação de muitos dirigentes, assim como o poder dos seus secretariados. Relativamente à diminuição do contributo dos associados tal pode ser constatado com a escassa participação nas assembleias gerais e nos actos eleitorais nos casos em que essa participação tem carácter voluntário. Basta referir que três grandes ONGs, como são a secção portuguesa da Amnistia Internacional (A.I.-P.), a DECO – Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor e o Automóvel Clube de Portugal (ACP), com muitos milhares de associados, tiveram as suas últimas assembleias gerais, de aprovação de contas e de planos de actividades, com a presença de poucas dezenas de sócios. Noutras organizações, como, por exemplo, os clubes rotários, as eleições e a decisão dos planos e contas das governadorias distritais e da fundação rotária são feitas pelos clubes e seus delegados e não pela universalidade dos companheiros, estando a participação nas assembleias e conferências distritais muito abaixo do total de companheiros existentes em todos os clubes rotários. Recuando no tempo, verifica-se uma alteração significativa nessa participação, diminuindo a participação democrática dos associados na vida das entidades a que aderem. Um outro factor preocupante na cristalização da vida associativa prende-se com a reduzida rotação de dirigentes. Isto deriva da já referida pouca participação dos associados, do “assalto e conservação” do poder pelos dirigentes instalados e da especialização do exercício das funções directivas que dificulta a ascensão de novos dirigentes. Acresce a isto que a manutenção em exercício dos mesmos dirigentes interessa ao poder político/económico, pois as relações pessoais que se vão criando inibem posturas de contestação que se justificariam em certas circunstâncias. Esta relação facilita a promiscuidade crescente entre entidades que se quereriam independentes, deixando uma imagem de hipocrisia nalguns ditos defensores dos direitos ambientais, humanos, do consumidor ou do sector social. Já sobre o poder crescente dos secretariados das ONGs (funcionários e dirigentes com funções executivas) tal tem a ver com a especificidade do seu trabalho que faz com que, ao fim de pouco tempo, raros são os associados que conseguem manter-se actualizados e operantes em pé de igualdade com os membros dos secretariados que, trabalhando a tempo integral, acompanham e participam nos assuntos a um nível difícil de acompanhar por associados que apenas dedicam alguma parte do seu tempo livre. Também se vem assistindo, desde há alguns anos, à “tomada do poder” por dirigentes/funcionários com interesses no poder político/económico, actuando, muitas vezes, como “comissários” destas entidades, além de utilizarem a sua ligação às ONGs para potenciarem e subirem nas suas carreiras profissionais, nos sectores privado e público. Tem-se vindo a assistir, também, à utilização abusiva de voluntários para funções de carácter profissional inerente às necessidades essenciais do funcionamento das ONGs, assim como ao uso condenável de contratos de trabalho precário e de trabalho a termo certo para funções permanentes dos secretariados. Como exemplo, ainda recentemente o presidente da Cruz Vermelha Portuguesa divulgou que esta instituição tem 1.300 funcionários e entre 7.000 a 13.000 voluntários. Maquiavelicamente, tem-se vindo a assistir a este alastrar de utilização de mão de obra gratuita, que consubstancia uma prática análoga à escravatura, de que o exemplo recente de aplicação de penas de prestação de serviços à comunidade a que alguns condenados em processo penal são sujeitos, permite às entidades onde são colocados (muitas delas ONGs) utilizá-los no seu trabalho quotidiano sem encargos e obrigações inerentes a um trabalhador normal. E aquilo que poderia ser uma medida positiva (evitar o cumprimento da pena em estabelecimentos prisionais, instituições estas que que são um resquício de organizações medievais de tortura e degradação do ser humano), acaba por ter os efeitos perniciosos de permitir a utilização de trabalho escravo. ............................................................................................................................... IV - As Relações com o Poder Político/Económico ................................................................................................................................. Já não é com surpresa que se assiste a um incremento das relações promíscuas entre muitas ONGs e entidades do poder político/económico. O afastamento da preocupação pela fidelidade aos princípios, a tomada do poder por dirigentes com pouca exigência ética e sensíveis às benesses desse poder, assim como o assédio que as ONGs sofrem por parte daqueles de quem deviam ser os juízes e os escrutinadores, têm-nas tornado cada vez mais marionetes e serviçais da estratégia do poder político/económico. O estreitamento dos vínculos faz com que já se tenha perdido o temor e o respeito que as ONGs detiveram até um passado recente. Temor pela denúncia dos atropelos aos direitos dos cidadãos, que obtinha cobertura relevante nos órgãos de comunicação social, e respeito pelo carácter íntegro das organizações e seus dirigentes. Quase se pode dizer que se inverteu a relação de temor, parecendo que hoje são as ONGs que têm medo de ofender o poder político-económico-financeiro. Este estreitamento de relações conduz já à fusão de interesses, nomeadamente na gestão das participações financeiras das ONGs. Esta preocupação na constituição de activos e sua gestão leva a que não se olhe à credibilidade das instituições com quem se negoceia. Prova disto são as aplicações de vulto que as ONGs fazem em bancos e instituições financeiras envolvidas em actos censuráveis do ponto de vista ética e até criminal. Basta referir as entidades envolvidas na “Operação Furacão” e “Monte Branco”, que ainda decorre em Portugal, possuidoras de aplicações de ONGs, assim como da descoberta dos activos de grande risco destas ONGs, aquando do descalabro do Lehman Brothers, que pôs em causa programas fundamentais da vida das instituições, de que é exemplo o caso de Rotary International cujas perdas financeiras levaram à redução e suspensão de programas em curso na altura. Estas aplicações financeiras foram reconhecidas como de grande risco, inaceitáveis em organizações que querem fazer com que o rigor e idoneidade sejam parte importante da sua imagem pública. À vulnerabilidade que atitudes deste tipo arrastam para as ONGs acrescem os privilégios que lhes têm vindo a ser atribuídos pelo poder político, nomeadamente de natureza fiscal e de benefícios específicos de natureza material e pessoal, afectando a independência que devia ser a bandeira dessas organizações e dos seus dirigentes e associados. Disto são exemplo as múltiplas formas de subsídios para parcerias, acções de formação e estágios profissionais, e os apoios para a realização de acções que visam colmatar insuficiências na sua área de intervenção, revelando um oportunismo pouco consentâneo com a elevada postura ética exigível a organizações que se querem credíveis, acções estas difíceis de denunciar politicamente já que são tratadas de forma abonatória pela opinião pública. .................................................................................................................................. V - A influência dos lobbies ................................................................................................................................... Para a afectação da imagem de independência, isenção e imparcialidade das ONGs tem contribuído, significativamente, a acção dos diferentes tipos de lobbies que se têm desenvolvido a um ritmo sempre crescente. O lobby gay e as variantes LGBTI, o lobby económico, o lobby ambientalista, o lobby militar, o lobby social enquadrado pelas IPSS, etc…, são hoje forças poderosas que influenciam fortemente o poder político e condicionam as ONGs que operam nessas áreas (em Portugal tivemos um exemplo recente com o projecto de lei sobre a coadoção, em que o que se relevou foi a defesa da não discriminação dos casais do mesmo sexo, quase omitindo que o que estava em causa, fundamentalmente, eram os direitos das crianças, já que são estas que têm o direito a serem adotadas e não são os adultos que têm o direito de adotar. O lobby LGBTI quase conseguiu apagar a abordagem pelo lado dos interesses das crianças, parecendo que estas eram mera mercadoria). Aliás, muitas destas ONGs já estão a ser orientadas e dirigidas por esses lobbies em muitas das suas posições. Para este facto muito contribui a dependência destas ONGs dos apoios institucionais que obtêm, quer seja de natureza económica, do recurso ao trabalho voluntário ou do próprio marketing da sua promoção. O poder dos lobbies na vida da ONGs leva já à participação de grandes multinacionais nas suas actividades, gerando um pântano que já ganhou direito a denominação atractiva como são as políticas ditas de responsabilidade social. Para promover este pântano constituem-se entidades, como são a BCSD Portugal e a GRACE Portugal, agrupando grupos económicos poderosos, que, sob a capa do altruísmo, albergam empresas frequentemente alvo de denúncias de comportamento censurável. Basta consultar os sítios na Internet destas entidades para termos conhecimento de quem quer fazer passar a mensagem de que pratica políticas de responsabilidade social, ao mesmo tempo que praticam dumping social, trabalho precário, salários de miséria, marketing pouco ético, etc . A evolução desta estratégia dos lobbies leva a que o próprio poder político acabe por ficar refém e, até, interessado nesta conjugação de interesses entre os lobbies e as ONGs, colocando estas como entidades credibilizadoras do sistema político vigente. Condicionadas as ONGs, mais à vontade ficam os Estados para a execução de políticas autoritárias e desrespeitadoras dos direitos dos cidadãos, passando a serem Estados que se impõem pelo temor. Esta liberdade de acção para os Estados permite-lhes gerir a manipulação da opinião pública, escamoteando temas que lhes possam ser incómodos. Como exemplo, refira-se o baixar de braços relativamente às dependências das drogas, com a irrelevância das campanhas de esclarecimento e dissuasão, nomeadamente nas escolas que, com esta inacção, abrem campo ao arrebanhamento dos jovens tornando-os vítimas duma praga de que dificilmente se libertarão. A importância destes lobbies acaba por ditar a agenda política das ONGs, colocando os seus temas na primeira linha da actualidade e não deixando espaço para outros temas mais relevantes mas que não servem ou seus propósitos e interesses. Como exemplo refira-se a insuficiente importância que a problemática dos direitos humanos das crianças tem nos programas nacionais e calendário das organizações de direitos humanos, comparativamente com as causas em que lobbies poderosos estão instalados nessas organizações. Um outro exemplo pode ser a imposição da concorrência como o primado da defesa dos consumidores que tem vindo a ser seguido pela generalidade das associações de consumidores, colocando em plano secundário, ou até esquecendo que há bens e serviços que não podem ficar sujeitos à selva da concorrência, de que são exemplos a água, a energia e a generalidade dos serviços públicos essenciais – o argumento de que entidades reguladoras poderão disciplinar os sectores em questão tem-se revelado uma falácia. Acresce ainda a dependência dessas entidades reguladoras do poder político, quer na nomeação dos seus responsáveis, quer do quadro legal que cerceia a sua independência e capacidade de decisão. A ineficácia, que estas entidades reguladoras e de supervisão têm vindo a demonstrar, está patente na realidade escandalosa que se vê no sectores financeiro, dos combustíveis, das telecomunicações, da energia, etc…, fazendo-se acompanhar de igual ineficácia nos mecanismos judiciais que são chamados a ajuizar os procedimentos praticados. .............................................................................................................................. VI - A obsessão pela governança ............................................................................................................................... Uma das mais significativas alterações no quotidiano das ONGs centra-se no deslocar do enfoque das motivações nos ideais para a nova palavra na moda que é a governança. Esta preocupação pelas novas técnicas de gestão utilizadas nas instâncias do poder económico-financeiro aproxima, também aqui, as ONGs dessas instâncias, fazendo-as dedicar parte significativa dos seus recursos à governança, fragilizando a sua dedicação prioritária às causas que foram a sua génese. A prova encontra-se nos recursos humanos dedicados a este modelo de gestão e nos meios que lhe são postos à disposição, assim como na consideração que é dada à angariação e aplicação dos meios financeiros, retirando capacidade ao trabalho da causa que deveria ser a sua principal motivação. Este enfoque da governança em detrimento do objecto que deveria ser a razão de ser da existência, é mais um fator de afastamento dos associados, já que o excessivo tempo e energia que se despende afeta a mobilização e a participação dos associados, sendo mais uma machadada na democracia que devia imperar no seu quotidiano. Uma das consequências deste primado da governança reflete-se no peso crescente das despesas de estrutura nos custos de funcionamento das ONGs, diminuindo cada vez mais a quota parte das disponibilidades financeiras para as ações que são a razão de ser da sua existência. As próprias acções de angariação de fundos, com um poder de sedução resultante duma formação dos angariadores assente nas mais eficientes técnicas de marketing, acabam por se traduzir num peso financeiro elevado que consome uma parte significativa dos fundos angariados. Aliás, esta é, também, uma das profissões nascidas nos tempos recentes, havendo angariadores que durante um ano surgem em acções diferentes de entidades de combate a doenças específicas, organizações de direitos humanos, associações de benemerência, etc…, fazendo com que a sua ligação às entidades em que participam tenha apenas um conteúdo profissional (de natureza precária e pontual na maioria dos casos), sem que se estabeleça uma verdadeira empatia com a causa das organizações em que participam. Mesmo naqueles que o fazem em regime de voluntariado, já é visível algum cansaço e desmotivação em muitos casos. Esta importância crescente do peso da estrutura das ONGs leva a que os seus dirigentes acabem por gastar muito do seu tempo disponível nas exigências da gestão, dedicando cada vez menos tempo aquilo que é o objecto da entidade, o que faz com os dirigentes estejam a ser suplantados pelos secretariados na definição e execução das políticas a serem desenvolvidas. Uma das outras consequências da importância dalguns modelos de governança reflete-se nas despesas financeiras bancárias de gestão, já que a passagem de ativos volumosos pelo sistema bancário envolve pagamentos de comissões de cobrança, de gestão de aplicações da conta e de transferências bancárias de dimensão significativa, ultrapassando, muitas vezes, o rendimento das aplicações financeiras (depósitos à ordem, a prazo, subscrição de títulos, etc…) que as ONGs utilizam para rentabilização dos capitais disponíveis.. ................................................................................................................................ VII - As ONGs como organizações económico-financeiras ................................................................................................................................ A importância económica de muitas ONGs está a torná-las, em muitos casos, verdadeiras “empresas” muito semelhantes na gestão às empresas com fins lucrativos, tonando-as apetentes para o poder político no sentido de as colocar na sua órbitra de influência. Por isso se assiste ao namoro sub-reptício a que são sujeitas pelo poder político-económico-financeiro. Ainda não há muitos anos as ONGs caracterizavam-se por serem organizações que viviam das quotas dos seus associados e do voluntarismo dos seus dirigentes, dedicando-se exclusivamente à causa para que foram criadas, com um secretariado reduzido ao mínimo tendo em conta que uma grande parte do trabalho era efectuado graciosamente pelos seus dirigentes. A importância da gestão económica não era prioritária e a área financeira quase só se limitava às receitas e despesas correntes (Quando muito faziam-se algumas aplicações em depósitos a prazo mas sem peso significativo na dimensão global da associação). Na actualidade, não só os dirigentes quase deixaram de trabalhar na vida quotidiana das associações, agora servidas por secretariados profissionais com alguma dimensão, como passaram a exigir volumosos meios financeiros cuja gestão segue o modelo que privilegia as aplicações de capitais, mesmo que tal redunde em diminuição das acções em prol da razão de ser da entidade. Esta característica agora relevante aumenta o apetite do poder político-económico-financeiro pelo seu controle, infiltrando com os quadros dos seus aparelhos os órgãos de direcção e secretariados das ONGs. Esta interpenetração facilita a permuta e o acesso a processos de obtenção de meios financeiros, de que a utilização de fundos para formação e realização de estudos e projetos são exemplos nalguns casos. Acresce a realização de campanhas de angariação de fundos, com ampla cobertura pública, assim como a venda de produtos com algum tipo de associação ao objecto da entidade. Por outro lado, à medida que a organização adquire dimensão abre-se o campo para a celebração de protocolos com entidades fornecedoras de bens e serviços, o que contribui para o aumento da sua dimensão económico-financeira, alargando a apetência para a sua tomada de poder e controle. A análise dos relatórios e contas destas entidades corrobora esta asserção. Não só as despesas para a manutenção dos secretariados e dos dirigentes profissionais adquirem uma dimensão significativa, como, nalguns casos, as aplicações financeiras, nos diversos instrumentos colocados à disposição pelas entidades bancárias e afins, assumem valores relevantes. Em síntese, podemos afirmar que existem ONGs cuja dimensão económico-financeira as coloca no campo das grandes organizações da economia com fins lucrativos, exigindo dirigentes e secretariados com competências técnicas de gestão que não necessariamente no domínio para que foram criadas, restringindo o activismo e a percepção da vida da entidade. ................................................................................................................................. VIII - O afastamento da democraticidade ................................................................................................................................. O momento histórico que atravessamos caracteriza-se por uma falsa denominação de democracia nos regimes políticos do mundo dito civilizado (nos noutros países a cleptocracia, o despotismo e as ditaduras das mais diversas matizes marcam a sua presença indisfarçável), característica esta que se estende a muitas ONGs. E assistimos à denúncia dessa falsidade, da prática de políticas ao arrepio dos compromissos assumidos, inclusivamente por organizações intergovernamentais, como por ex; o Conselho da Europa, o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), a OCDE, etc… .Um dos exemplos mais chocantes passa-se no sistema educativo em que, apesar das denúncias destas entidades de que as crianças e os jovens não estão a ser o foco das políticas educativas, os governantes insistem no modelo ultrapassado do ensino predominantemente expositivo, ignorando que os jovens de hoje adquirem a maioria da sua formação através das tecnologias de informação e comunicação. Assiste-se até a algum retrocesso em experiências positivas e elogiadas por entidades de mérito reconhecido, como foram o programa de dotação de computadores “Magalhães” na generalidade do ensino básico em Portugal, assim como à extinção do Programa “Novas Oportunidades” que trouxe para o sistema educativo muitos jovens e adultos que se encontravam já em processo de afastamento de aprendizagens académicas. Estes exemplos, que se podem alargar a outros como a Universidade Aberta, Canais de TV temáticos, motores de busca direccionados, etc. que, utilizando meios audiovisuais mais assertivos, profundos, disponíveis e abrangentes do que qualquer aula presencial, mostram como o êxito do sistema de ensino está a ser posto em causa por políticas míopes centradas num economicismo de curto prazo que hipoteca o futuro das novas gerações, violando o direito à educação constante de referenciais jurídicos internacionais a que os Estados estão obrigados e provocando o afastamento acelerado do sistema de ensino da realidade quotidiana. E perante isto o que fazem as ONGs? Algumas delas limitam-se à defesa dos interesses corporativos dos seus profissionais e associados, enquanto outras entram em jogos de negociação defraudando a confiança que nelas se depositou para a defesa intransigente dos direitos dos cidadãos (adultos, crianças e jovens). Será isto próprio de sistemas políticos que se dizem democráticos e de ONGs que deveriam ser instrumentos de fiscalização e de pressão sobre estas práticas? Porque será que a abstenção é cada vez maior nas eleições nacionais e nas das ONGs? Porque será que as Assembleias Gerais das ONGs são participadas por tão reduzido número de associados que, muitas vezes, não chegam sequer ao número dos que compõem os órgãos sociais? As ONGs, tal como actualmente existem, não são organizações democráticas no seu funcionamento real. Convocam assembleias gerais (já não por carta mas por anúncio nas suas revistas ou por email), realizam eleições, difundem comunicados, editam revistas ou newsletters, mas os associados pouco ou nada participam. Em consequência, há pouca rotatividade de dirigentes, provocando a tomada do poder por militantes com interesses diretos nessa qualidade, como trampolim para outros voos, introduzindo uma promiscuidade de interesses nada prestigiante para o objecto específico da ONG. ................................................................................................................................. IX –Organizações Religiosas ................................................................................................................................. É inegável o papel das confissões religiosas na formação da opinião e das posturas dos cidadãos em todas as áreas da vida em sociedade, incluindo aquelas que são o objecto de ONGs, nalguns casos sendo até directamente influenciadas por essas confissões. Com a importância que lhe é reconhecida destaca-se, em Portugal e em muitos outros países, a Igreja Católica. Com a sua organização multifacetada, cobrindo praticamente todos os domínios, a Igreja Católica influencia não só os seus fiéis como os órgãos de poder e as próprias ONGs. E não se diga que esta influência é homogénea pois tal não se verifica. A própria Igreja Católica tem no seu seio uma multiplicidade de organizações com formas de pensamento e acção muito distintas. Bastará referir o movimento internacional “Nós Somos Igreja” que é favorável à ordenação de mulheres, ao casamento de padres e tem uma posição de abertura à discussão sobre o aborto. Ou um outro exemplo é a Sociedade de S. Vicente de Paulo cuja sede internacional é em Paris e não em Roma, sendo os seus dirigentes eleitos a todos os níveis pelas bases respectivas (A Regra da Sociedade de S. Vicente de Paulo não permite que padres desempenhem cargos dirigentes na organização, aconselhando todavia a existência de padres como conselheiros espirituais). Esta diversidade, desconhecida da generalidade da opinião pública, permite uma intervenção alargada e transversal em todos os setores da sociedade, influenciando e o poder político-económico-financeiro, alargando o seu âmbito de poder a todos os níveis. Não ignorando a caracterização política do Vaticano como cidade-Estado, com representações diplomáticas em quase todos os países do mundo, as suas organizações que atuam dentro de cada país assumem um papel da maior relevância, atuando, em muitos casos, com total independência da hierarquia da Igreja Católica e mesmo, até, com posições divergentes. Por isso se diz, com plena propriedade, que os maiores críticos da Igreja estão dentro dela própria, com a particularidade de saberem do que falam. A dimensão humana e económico-financeira é extremamente relevante. Por exemplo, estima-se que as IPSS em Portugal, na maioria ligadas à Igreja Católica, empreguem mais de 200.000 pessoas, tonando-as um lobby poderoso e incontornável para qualquer governo, já que só na denominada economia social gravitam cerca de 50.000 organizações que, recebendo, do Estado, mil e duzentos milhões de euros por ano, movimentam anualmente cerca de três mil milhões de euros. A acção das organizações ligadas à Igreja Católica estende-se, através das dioceses ou de instituições eclesiais, a 24 hospitais; 136 ambulatórios e dispensários; 908 casas de idosos, doentes ou deficientes; 102 orfanatos ou centros de infância, 602 creches; 90 consultórios e centros de defesa da vida e da família; 29 centros especiais de educação ou reinserção social e 496 outras instituições. Acresce ainda a multiplicidade em que se desdobram as instituições, tomando, por exemplo a Sociedade de S. Vicente de Paulo que, através dos seus 15.000 membros, agrupados em cerca de 1.000 conferências vicentinas, apoia os mais pobres e necessitados em todo o país. Uma parte significativa das organizações religiosas têm regimes fiscais específicos. Em muitos casos de isenção de impostos e, até, de não exigência de contabilidade organizada, ficando-se pela escrita de “merceeiro” do Deve e Haver. Muitas das suas angariações de fundos e de bens não têm qualquer suporte de passagem de recibo formal nem comprovativo de recebimento com as características fiscais exigíveis, confiando-se na idoneidade das pessoas intervenientes. Muitas das considerações referidas para as ONGs aplicam-se, também, às organizações ligadas às confissões religiosas, acrescendo-lhes a sua particularidade específica. .................................................................................................................................. X –Estar ou Sair? .................................................................................................................................. Face à postura crítica exposta nos capítulos anteriores, é pertinente a questão: O que é melhor relativamente à pertença a estas organizações? Continuar como ativista mesmo que a organização tenha posições criticáveis ou apresentar a demissão? A linha geral que defendo é a de que, normalmente, é preferível estar dentro das organizações, pois tal permite acompanhar de perto a sua vida e tomar conhecimento de todas as suas facetas. A exceção é quando a presença é fonte de conflitos com prejuízo relevante para qualquer das partes. A continuidade da minha pertença na maioria das organizações em que me filiei tem, pois, a ver com o interesse que continuo a manter no acompanhamento da sua vida, dando o meu contributo para a melhoria da sua ação. Acresce o facto de ter desempenhado funções dirigentes em várias delas, o que me permitiu deter um conhecimento aprofundado de todas as suas vertentes e a criação de laços afectivos que devem ser acarinhados. Sinto, com apreensão e tristeza, o seu afastamento relativamente às razões que justificaram o seu aparecimento. A imparcialidade, a isenção e a independência estão hoje muito afectadas pelas suas ligações ao poder político, quer através do “assalto” por dentro com a infiltração de quadros ligados aos partidos políticos, quer pela postura “cordata”, pouco firme, na defesa das suas posições. O poder excessivo dos secretariados, a falta de participação dos associados, o reforço do centralismo na tomada de decisões e a influência do poder político-económico-financeiro na vida das ONGs, está a retirar-lhes o protagonismo que foi seu timbre no passado. Na actualidade, as ONGs passam tempo excessivo nas negociações nos corredores do poder, perdendo capacidade e autoridade moral para uma postura firme e interventiva. As ONGs estão a ser engolidas pelo neoliberalismo dominante que se está a mostrar nada democrático, tendo razão de ser a caracterização dos sistemas políticos vigentes na maioria dos países ocidentais como ditaduras assentes em parlamentos pluripartidários, que se limitam a avalizar como pretensamente democrático aquilo que não passa de sistemas autoritários, resguardados em forças de segurança cada vez mais numerosas com pretensões de dissuasão de protestos inflamados. O medo e o autoritarismo são cada vez mais características do actual modelo de sociedade. O estar por dentro das ONGs permite constatar o aumento da sua ineficácia, ainda que por vezes apareçam com posições de interesse público, ficando o seu papel reduzido à defesa dos interesses da burguesia que dentro delas se instala ou que a elas se mantém ligada na mira da defesa dos seus interesses corporativos, sem que isto implique algo mais que o pagamento da quota e participação nalguma manifestação ou greve pontual, mas de forma a que o poder político não se sinta muito incomodado nem obrigado a mudar de política (as manifestações passaram a ser meros actos de “folclore” sem qualquer efeito prático). Resta saber quantos são aqueles que estão dispostos a pagar o preço do incómodo de pertencer a uma organização com posturas discordantes, já que se está a perder a esperança de que se processe qualquer inflexão na sua conduta. Importa, contudo, ter presente o que já Agostinho da Silva dizia: “ A mais eficaz de todas as acções é estar”.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Uma mudança de paradigma

“Uma mudança de paradigma: Considere as crianças parceiros competentes, cultivando a responsabilidade pessoal mais do que a submissão.” Learning for well-being – Fundação Calouste Gulbenkian A preocupação pela qualidade de vida na infância e na juventude tem merecido grande atenção desde o início do século XX. Para isso muito contribuiu o retrato traçado por grandes escritores de que Charles Dickens é, provavelmente, o mais significativo. Em Portugal não nos podemos esquecer da beleza da “Balada da Neve” de Augusto Gil. E porque não, também, Fernando Pessoa “Grande é a poesia, a bondade e as danças, mas o melhor do mundo são as crianças”?. Estamos no início de 2014. Como será o retrato, que deixaremos para a história, do momento que atravessamos? Três importantes relatórios viram a luz do dia recentemente. Da OCDE foi-nos dado a conhecer a situação da educação em Portugal em 2012; da Fundação Calouste Gulbenkian surgiu a edição do estudo do novo paradigma para a educação “Aprender para o Bem Estar”; o Comité dos Direitos da Criança das Nações Unidas divulgou o seu relatório sobre Portugal relativamente à (in)observância da Convenção dos Direitos da Criança. Das centenas de páginas destes relatórios respiguemos três parágrafos: OCDE - Reviews of Evaluationand Assessment in Education - PORTUGAL “Pg. 139 -An important challenge is that it is unclear that students are at the centre of the evaluation and assessment framework. Teaching, learning and assessment still take place in a somewhat “traditional” setting with the teacher leading his/her classroom, the students typically not involved in the planning and organisation of lessons and assessment concentrating on summative scores. The opportunity given to parents and students to influence student learning is more limited than in other OECD countries. The review team formed the perception that relatively little emphasis is given to the development of students’ own capacity to regulate their learning through self- and peer-assessment….” Fundação Calouste Gulbenkian – Aprender para o Bem Estar “Pg. 83 - Percebemos cada vez melhor que as escolas precisam de apoiar não só uma aprendizagem cognitiva, mas também um amplo leque de competências que permitam aos indivíduos participar bem na sociedade. Uma abordagem baseada em competências permite que os alunos não só adquiram conhecimentos sobre determinados temas, mas também que os compreendam, utilizem e apliquem no contexto mais amplo da sua aprendizagem e da sua vida. Também oferece aos alunos uma forma de aprendizagem mais holística e coerente, que lhes permite estabelecer ligações e aplicar os conhecimentos em várias áreas. Isto também inclui tornarem-se multiletrados num ambiente de aprendizagem digital. (…)” Comité dos Direitos da Criança da ONU – Relatório sobre Portugal - 2014 Ponto 31 - The Committee is concerned, however, that the respect for the views of the child is not adequately implemented in practice in all relevant areas and at the national and local levels. It is also concerned that the views of the child are not being sufficiently taken into consideration regarding the education system and its reform, as well as the insufficient training of professionals working with and for children regarding the right of the child to be heard.(…) Como fio condutor destas constatações ressalta a necessidade de mudança na perspectiva de como estamos a querer educar as nossas crianças e os nossos jovens. Está o foco do sistema educativo centrado na individualidade de cada criança ou antes no cumprimento dum programa insípido e pouco motivador? A quem imputar a principal razão determinante do comportamento inadequado dos jovens como é a negligência dos adultos (pais, professores, decisores, agentes sociais, etc…)? Desde há muito tempo que a Comissão Nacional para a Proteção de Crianças e Jovens em Risco nos vem alertando para os cerca de 70.000 jovens portugueses que todos os anos constam das suas listagens, em que o principal fator volta a ser a negligência dos adultos, seguida da exposição a modelos de comportamento desviante. E aqui coloca-se o quase baixar de braços perante o flagelo das dependências das drogas e do álcool. Quantas campanhas de grande destaque temos visto nas nossas escolas para a prevenção do tabagismo? É que é consensual que o tabaco é a porta de entrada para todas as outras drogas. Temos de mudar de paradigma! Os alertas de instituições credíveis não podem cair em saco roto. As nossas crianças, os nossos jovens, todos nós, temos o direito à felicidade. Que cada um faça a sua parte.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tempo de Desassossego

Sendo a liberdade, a igualdade e a fraternidade os valores cimeiros que devem nortear todas as pessoas, importa analisar algumas das suas facetas e a real correspondência na actualidade tendo em conta a relevância que é dada à sua implementação. Mesmo numa abordagem sintética da história da humanidade encontramos, quase permanentemente, a presença de formas de escravatura nas diferentes relações económicas e sociais, com todo o seu cortejo de manifestações de violência, de exploração e de desumanidade, com grave atropelo à liberdade, à igualdade e à fraternidade. Também, ao longo da história, encontramos sempre relatos de protesto, de insubmissão e de revolta contra este tipo de aproveitamento do ser humano em proveito daqueles a quem coube o sortilégio de se situarem nos escalões mais elevados da escala social. Nos períodos seguintes às duas guerras mundiais do século passado, a corrente humanista que teve alguma importância no mundo conseguiu fazer aprovar a Convenção sobre a Escravatura em 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura em 1956, nas quais os Estados assumiram compromissos de nunca mais autorizarem determinadas práticas desumanas nas relações entre as pessoas e nas instituições. Tais compromissos foram sucessivamente alargados e aprofundados em muitos instrumentos jurídicos internacionais das Nações Unidas, do Conselho da Europa, da União Europeia, da Organização Internacional do Trabalho, etc… E o que vemos neste início do século XXI? Será que os princípios subjacentes a estes referenciais jurídicos estão a ser respeitados? Infelizmente a resposta é negativa. O modelo de sociedade que hoje prepondera assenta em novas formas de escravatura e desumanidade que torna urgente a reflexão sobre a injustiça de uns viverem desafogadamente à custa do sofrimento e da míngua de recursos de muitos seres humanos. O desemprego, o trabalho precário, a prática de baixos salários, os horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, a substituição do direito ao trabalho pela liberalidade na rescisão do contrato de trabalho, são situações censuráveis que não encontram respaldo nas grandes orientações que devem balizar a convivência humana. Por outro lado, assiste-se ao reforço da exploração económica dos cidadãos com a prática de preços nos serviços públicos essenciais (habitação, água, energia, transportes, comunicações, etc…) que cerceiam o seu acesso a quem somente dispõe de recursos escassos, tornando, por exemplo, quem tem rendimentos próximos do salário mínimo em carenciados sem condições de vida digna. A situação social que caracteriza este início do século XXI coloca-nos em presença de novas formas de escravatura e de relações sociais desumanas, sendo urgente lançar um repto a todos aqueles que se encontram a viver desafogadamente no sentido de examinarem a sua consciência, reflectindo sobre se não os incomoda viverem num mundo tão desigual e desumano. Ainda por cima, quando o seu viver desafogado assenta, por exemplo, em possuir bens produzidos em países com condições laborais desumanas, em ter empregadas domésticas exploradas nas mais variadas vertentes, em ter o seu lixo recolhido por lixeiros de baixa remuneração, em ter as suas cartas entregues por carteiros precários mal pagos, e, cúmulo das contradições deste modelo de sociedade, em poder ter sangue disponível para quando precisar, dado, gratuitamente, em esmagadora maioria pelos mais pobres e necessitados. Que gratidão se vê para com estes explorados? Já pensaram no poder de que podem dispor as empregadas domésticas, os lixeiros, os carteiros, os dadores de sangue e outras pessoas socialmente desvalorizadas? E quando estas pessoas e outras do mesmo perfil decidirem usar o seu poder? Temos de rapidamente inverter este modelo assente em novas formas de escravatura e de práticas desumanas nas relações entre pessoas. A corrente que hoje domina, obsessivamente assente em primados economicistas de défices, dívida pública, mercantilização da saúde e da educação, competitividade selvagem e saque dos bens públicos, tem de dar lugar a uma nova ordem política, económica, social e cultural em que o ser humano seja efectivamente portador duma dignidade por todos reconhecida. António Sérgio dizia que “unicamente os bons cidadãos podem reivindicar com justiça os benefícios dum bom governo”. Com o modelo actual em que o que é importante é caçar votos, é irrelevante saber se são de bons cidadãos. Estamos numa nova faceta na luta pelo poder e no seu exercício, em que bons ou maus cidadãos são iguais instrumentos, servindo a prática do bem apenas para a paz de consciência dos que o praticam. Tudo isto em nome da eficácia dum modelo de sociedade fria, oca, tecnocrática, que só apraz a quem dela tem oportunidade de se aproveitar. Uma sociedade de mortos. Mortos de sentimentos, indiferentes, mortos de humanismo. Mortos ou narcotizados. Mortos ou anestesiados. Mortos ou inactivos. Mas mortos que votam! Já Afonso Botelho em “Origem e Actualidade do Civismo” dizia:“... . Na fraternidade profana em que vivemos só o acaso poderá permitir que a maioria coincida com o juízo de Deus ou com a razão verdadeira. Quase sempre corresponde a uma vitória do mais forte que não será, como é evidente, o mais justo. Por ser assim, é que encontramos tão frequentemente usada a expressão: maioria esmagadora. Não se repara, tal é o hábito, que ao usarmos esta expressão não estamos a fazer o elogio da maioria mas a condená-la como, assim desprevenida de qualquer virtude, efectivamente merece”. E Almada Negreiros dizia a propósito da Arte: “A opinião... abrange uma tão colossal maioria que receio que ela impere por esmagamento.” Uma sociedade assim conduz, inevitavelmente, à desigualdade, à insegurança e à repressão. E isto é visível nas nossas cidades e nos cidadãos. O leque entre ricos e pobres aumenta na sua acentuação, a segurança aparece como a principal aspiração de cidadania apesar de nunca ter havido tantos presos nas cadeias, a liberdade é cada vez mais, camufladamente, condicionada, as crianças continuam a serem maltratadas, etc,etc,etc... . A desigualdade no acesso ao desenvolvimento acentua-se, com o desencanto de se manipularem as estatísticas para demonstrar que o desemprego não é tão alto quanto isso. E como se fazem as estatísticas? E os que estão fora das estatísticas? E o crescimento do emprego precário? Não são seres humanos os arrumadores, os mendigos, os excluídos, os trabalhadores a recibo “verde”? É que de acordo com o artº lº da Declaração Universal dos Direitos Humanos “ Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. A sociedade de hoje não pode explorar os seus cidadãos nem vê-los como potenciais criminosos ou delinquentes, vigiando-os e controlando-os. É inaceitável que se assista, à boa maneira orwelliana, à colocação de satélites e de câmaras de vídeo nas ruas das cidades, deixando a liberdade e a privacidade de qualquer cidadão à mercê de quem não sabemos. E não se diga que os inocentes não têm de ter medo. O simples facto de serem inocentes não os pode colocar como suspeitos. Os mecanismos de protecção dos cidadãos têm de ser encontrados no reforço da educação para a cidadania e não no aumento da vigilância e da repressão. Temos de dizer não à sociedade do medo, da intolerância, policial, repressiva e agressiva. O repensar, o discutir, o questionar do papel da sociedade e do cidadão é a chave para criação duma sociedade mais humana, em que o cidadão goste verdadeiramente de nela viver. Tendo acabado de se comemorar o 65º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importa ter presente que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes. Isto quer dizer que a eficiência económica não pode ter o primado do que quer que seja. Os cidadãos devem assumir-se como cidadãos enquanto é tempo. O pesadelo de George Orwell, em 1984, não deve ser o guia da sociedade e do cidadão.” Estamos em tempo de desassossego!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Salva-me, por piedade!

Amanhece no primeiro dia do ano de 2014. Os canais de televisão relatam as diferentes festividades de passagem do ano. Frivolidades, exibicionismos e ostentações enchem os écrans, ignorando os dramas, sofrimentos e dores que ainda há dias, no Natal, ocupavam esse espaço televisivo. No Natal o que vende é a lágrima ao canto do olho enquanto uma semana após o produto é substituído pelo divertimento da burguesia. Como é ridículo, hipócrita e desumano o comportamento duma franja alargada da sociedade. Num dos canais de TV exulta-se com o elevado share conseguido no seu programa de fim de ano com o último episódio da Casa dos Segredos. Como qualificar quem se deixa arrastar pela indigência de tais programas? Como podem os seres humanos descer tão baixo? E a isto soma-se a preferência, desde há muito tempo, por programas de igual calibre tais como jogos de futebol ou telenovelas escabrosas, que ocupam o 1º lugar nas audiências de todos os canais generalistas e em todas os grupos sociais, incluindo a denominada classe A! Estas audiências ouvem já, com indiferença e sem grande preocupação, as notícias que dão conta do agravamento dos males da sociedade. Desemprego, miséria, escravatura e todo o rol de desumanidades não preocupam, mais do que o tempo da notícia, esses telespectadores alienados. Até ao dia em que o infortúnio lhes bate à porta. Nesse dia querem para si todo o apoio do mundo, invocando até a intervenção divina. São onze horas da manhã deste dia de ano novo. O Canal Mezzo transmite o Requiem de Mozart. Acabou de ser cantado o movimento Rex Tremendae Majestatis que na sua parte final nos arrepia com a prece aflita ao Divino: “Salva-me, por piedade!” Será que os seres humanos que pautam as suas vidas pela mediocridade, indiferentismo e acefalia serão tocados pela aflição e também pedirão para serem salvos?