domingo, 18 de outubro de 2015

Momentos duma visita a uma prisão

É sábado, 17 de outubro. Às nove horas passo o portão do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, após o que se segue a travessia do pórtico de detecção de metais antes de me embrenhar nos múltiplos espaços desta prisão (antiga colónia penal). Sou voluntário e cumpro mais uma das minhas visitas semanais. Ao sábado de manhã a primeira acção é a participação, com os reclusos, na missa celebrada na capela da prisão. (Utilizo o termo “recluso” quando me refiro à pessoa em abstracto e utilizo o termo “companheiro” quando me refiro à pessoa na sua individualidade.) É sempre um momento emocionante pelo contacto, em ambiente de comunhão fraterna, com seres humanos que a comunidade afastou do seu convívio e que mostram sentimentos de fé e profundidade espiritual que não seriam de esperar em quem tem a conotação de criminoso e de perigo público. E nem os muitos anos que levo nesta missão me retiram a sensibilidade para a apreciação do comportamento religioso daqueles que considero como irmãos. É tocante a sinceridade com que rezam o pai-nosso (…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…). Hoje estão presentes na missa vinte e cinco companheiros, do regime comum e da clínica psiquiátrica, dos mais de 500 que estão aqui presos. Um em cadeira de rodas, outro amparado por colegas, uns com evidentes transtornos psíquicos, outros cientes da injustiça de estarem presos, acusados de crimes desde os mais leves até aos mais hediondos, todos irmanados na mesma esperança no alívio vindo do Além. Antes de iniciada a missa há que preparar o espaço e disso se encarregam duas voluntárias e alguns reclusos. Elas varrem o chão e colocam nas jarras as flores que trouxeram. Eles preparam o altar e abrem o missal nas leituras do dia, assim como distribuem os cadernos com os cânticos que vão ser entoados. É distribuído um folheto com a mensagem dominical, elaborado pelo capelão prisional, P. João Matias, que permite o acompanhamento dessas leituras do dia. Na reflexão constante do folheto de hoje, a partir da leitura do evangelho segundo S.Marcos (10,35-45), o P. Matias ressalta a noção de quem são os maiores: “É maior quem serve mais. A grandeza não vem pois nem do dinheiro, nem dos cargos elevados, nem dos títulos académicos, nem de talentos de garantida cotação social. Vem, simplesmente, do grau de amor com que procuramos ser úteis e servir. Grandes são aqueles Pais que arranjam sempre tempo para estar com seus filhos, para os escutar e responder às suas infinitas perguntas, para brincar com eles e, junto deles, descobrirem de novo a vida. Grandes são aquelas Mães que enchem o lar de calor e de alegria; mulheres que não têm preço, pois sabem dar a seus filhos o que eles mais precisam para enfrentarem confiadamente a vida. Grandes são os Casais que vão amadurecendo o seu amor dia a dia, aprendendo a ceder, cuidando generosamente da felicidade do outro, perdoando-se mutuamente nos mil atritos da vida. Grandes são aquelas pessoas, jovens e adultos, que nas nossas comunidades mantém de pé e com vida os serviços, a ajuda fraterna. Aqueles jovens e adultos que dão vida a clubes, associações, movimentos e sindicatos, por onde passa o convívio são, a cultura, a solidariedade, a luta pela justiça e pelo progresso, gente anónima sem a qual este mundo seria mais pobre, mais triste, mais cínico. Mais agreste e desumano.” Este apelo à grandeza calou fundo em muitos dos presentes. E não deixou de trazer a lembrança da ausência da visita de muitos pais, irmãos, cônjuges, filhos e amigos, no apoio a quem se encontra na situação deprimente de internado na prisão. A participação dos reclusos, quando lhes é dada a oportunidade de serem ouvidos, revela-se de grande qualidade e mostra a desumanidade em que estão colocados no ambiente prisional. Tal qualidade voltou a evidenciar-se quando visitei a seguir a ULD (Unidade Livre de Drogas) e estive a falar com um grupo de companheiros lá internado. Dramas, carências e necessidades são mais que muitas. Desde o pouco, ou quase nulo, apoio psicológico, falta de assistência jurídica, indefinição do seu futuro e atropelos ao direito à dignidade, tornam a vida dum recluso em sub-humana. Falamos dos seus casos, das alegrias e tristezas da vida, dos factos relevantes acontecidos e do que se pode fazer para melhorar a sua condição e das suas famílias. E não posso referir aspetos pessoais mais concretos para não lesar o direito à privacidade nem prejudicar aqueles que já estão profundamente lesados. É que as retaliações são moeda corrente nas prisões. Saio da ULD com mais um pedido: a bola de futsal utilizada no recreio, que a O.V.A.R.(obra vicentina a que pertenço) tinha oferecido, rebentou e pediram-me se eu a poderia mandar consertar. Não a pude trazer pois torna-se necessária a autorização da pessoa responsável e, como é sábado, não estava presente no estabelecimento prisional. Na próxima visita espero já poder corresponder ao solicitado. No caminho para a prisão passo num quiosque e compro os jornais do dia, de acordo com as preferências dos companheiros com quem me vou encontrar. Para uns o Jornal de Notícias, para outros o Jogo, para outros, ainda, o Le Monde Diplomatique, o Público ou o Expresso. É que há reclusos com diversos níveis de gosto e instrução. As voluntárias também são portadoras de revistas. Hoje, um companheiro pediu-me um dicionário de Português-Inglês pois quer aprofundar o conhecimento nesta língua (na próxima visita ser-lhe-á entregue). Em quase todas as visitas levo livros escolares que me são oferecidos por amigos ligados ao sistema educativo (Bem hajam!), no sentido de estimular o prosseguimento dos estudos. No dia de hoje dois factos tornaram mais saliente a minha visita. Um deles relacionou-se com um pedido que há quinze dias tinha feito a um companheiro para registar as refeições que lhe foram fornecidas durante duas semanas. Pois, mal ele me viu veio ter comigo e entregou-me um rol de folhas com as ementas desse período, com apreciações qualitativas e quantitativas, comprovando a debilidade da alimentação. Não tenho razão de queixa do respeito que os reclusos têm tido para comigo sobre os compromissos que assumem. Mas sensibilizou-me o cuidado e o rigor com que o meu pedido foi satisfeito. Não digo o nome do companheiro, pelas razões atrás expostas, mas redobrarei a minha dedicação por ele. Fiquei com mais elementos para a minha luta contra este sistema de punição. No outro caso, ocorreu uma situação que me deixou profundamente entristecido. Um companheiro tinha-me pedido para falar com o seu advogado (defensor oficioso) no sentido de o sensibilizar para dar maior atenção à sua situação jurídica, no sentido de desencadear o processo de liberdade condicional que, na sua opinião, já lhe deveria ter sido concedida. Hoje levava o resultado do contacto que mantive com o advogado. Este prometeu-me que iria proceder em conformidade, apesar de alegar que não poderia deslocar-se à prisão para falar com o recluso, pois o tempo que esta deslocação exigiria não é suficientemente compensado monetariamente. Quando pedi para chamarem o companheiro foi-me dito que se encontrava internado em cela de isolamento, já que ontem se tinha tentado suicidar. Fiquei desolado! Eu, que pensava ir dar-lhe uma notícia que o animasse, fui confrontado com mais uma queda. Coragem companheiro! Vou continuar a apoiar-te. Saí ao fim da manhã do estabelecimento prisional, com um sentimento misto de amargura e de querer perseverante. Há muitos anos que, de forma semelhante, saio das visitas às prisões. Move-me a reflexão de Emídio Santana sobre as prisões, deixada no seu livro “Onde o homem acaba e a maldição começa”. No prefácio a este livro começa por dizer-nos Emídio Santana: “…É afinal o submundo dos ex-homens, dos malditos e dos proscritos, o lugar onde o homem acaba e a maldição começa com o seu quotidiano e onde todos os problemas humanos se enxergam e se colhem, numa infernal cultura ou nos pormenores de várias tragédias humanas arquivadas nos registos judiciais que, quando vistos em separado, se tornam nítidos e explícitos.” Dou conforto a esse sentimento assimilando a exortação de Frederic Ozanam; “Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas”. Continuarei, sem juízos pré-concebidos sobre as faltas dos outros (o que eu tenho é de pedir perdão pelas faltas que cometo), a partilhar as minhas alegrias e a levar o consolo a quem dele precisa. Por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros.