Obra Vicentina
de Auxílio aos
Reclusos – O.V.A.R.
“Quem nunca errou que atire a primeira pedra” (Jo 8,7)
(Prémio “Direitos Humanos 2018”- Assembleia da
República)
(Prémio “Terra Justa – Causas e Valores da Humanidade
“ 2019)
Audição Pública – Assembleia da República
Senhoras deputadas
e senhores deputados
Agradecendo o
convite para esta audição parlamentar, felicito V. Exªs. pela iniciativa,
trazendo para a ordem do dia um tema para o qual a sociedade olha com incómodo.
A O.V.A.R. - Obra
Vicentina de Auxílio aos Reclusos, mantém, na colaboração dos seus membros com
os reclusos do sistema prisional, o seu cariz vicentino de ajuda concreta
imediata aos mais pobres e necessitados, complementada com a abertura de
condições para a sua saída da condição de pobreza e exclusão social, não nos
limitando ao apoio, ainda que positivo, que não ambiciona alterar a situação
vigente. A desumanidade a as violações de direitos humanos vividas nas prisões
portuguesas não se compadecem, apenas, com acções de remedeio. É necessária a
ajuda mas tem de se alterar a situação que a motiva.
Tal como temos
vindo a alertar, desde há alguns anos, o sistema prisional português tem
características evidentes de desumanidade e incongruência, violadoras dos
referenciais jurídicos nacionais e internacionais, situação esta reconhecida
por entidades como a Provedoria de Justiça e os Comités das Nações Unidas e do Conselho
da Europa para as questões da tortura e dos direitos humanos. O exposto a
seguir não esgota a panóplia daquilo que é necessário mudar no sistema
prisional, já que o modelo civilizacional construído nos finais do século XX
aponta no sentido da abolição das prisões, já que são instituições retrógradas,
medievais, desumanas e violentas.
Façamos um périplo
pelo interior das prisões, considerando que o retrato difere de prisão para
prisão e do ambiente que nelas vigora.
- É importante a
criação duma dinâmica de prevenção da criminalidade baseada numa via formativa
e não punitiva (utilização da sedução e não da repressão), relevando o respeito
pelos outros, substituindo o ódio e o egoísmo pela amizade e partilha,
permitindo a satisfação de necessidades básicas com recurso a rendimentos
lícitos, eliminando a pobreza e a exclusão social.
- É urgente
terminar com a possibilidade de cumprimento de prisão perpétua, proibida
constitucionalmente, nos casos de penas sucessivas e medidas de segurança
aplicáveis a inimputáveis, cumprindo, objectivamente, o disposto no Código
Penal da pena máxima de 25 anos consecutivos, assim como as disposições da
Constituição da República Portuguesa. A dimensão do problema, apesar da
promessa do seu levantamento pelo actual director-geral da DGRSP, ainda não é
conhecida.
- Deve-se terminar
rapidamente com a violação do Direito Internacional no que toca à garantia do direito generalizado à
própria defesa, previsto no artº 14º, nº3,d), do Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte, pelo que temos sido
acusados pela ONU pelo seu incumprimento, sendo os reclusos particularmente
injustiçados com tal situação, independentemente da melhoria do apoio
judiciário que se tem revelado frágil e inadequado.
- É necessária uma
modificação profunda na abordagem duma política sobre drogas (responsável pela
maioria esmagadora da população prisional, pois a obtenção de dinheiro para a
compra de droga está na base do pequeno tráfico e dos crimes contra as pessoas,
contra o património e contra a sociedade), encarando a não criminalização de
todo o circuito produtivo e comercial (a exemplo do tabaco e do álcool) e
promovendo uma campanha alargada de sensibilização para as consequências de
todas as dependências. Faz algum sentido continuar uma guerra, que já dura há
dezenas de anos, sem perspetiva de a ganhar, antes pelo contrário, quedando-nos
a olhar para o nosso umbigo embevecidos com o passo positivo dado da
descriminalização do consumo? Não estamos a querer ver o falhanço da estratégia
para ganhar essa guerra pela via punitiva de combate e da repressão. Mais,
estamos a sustentar estruturas envolvidas nesse combate que não têm interesse
no fim da guerra, pois tal terminará com o seu modelo de negócio. Quer a Alta Comissária
das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, quer M.
Kazatchkine, da Comissão Global de Políticas de Drogas, declararam, em Maio
último na 26ª Conferência sobre a Redução de Danos, que a guerra às drogas
fracassou, sendo favoráveis à legalização das drogas, mesmo das mais
pesadas.
- Há que ter em
consideração de que todas as formas em uso nas tecnologias de informação e comunicação devem ser acessíveis aos
reclusos, incluindo o uso alargado dos equipamentos (telemóveis e
computadores), permitindo uma efectiva praxis para a ressocialização e
acompanhamento da vida no exterior, tendo em conta que a aplicação de penas de
prisão efectiva tem como consequência, apenas, a privação da liberdade de
circulação, mantendo o recluso todos os demais direitos de que dispõem os
cidadãos em liberdade plena (ver artigo de Diretor Geral
da DGRSP no jornal Pùblico -
11/06/2019 –
Um novo paradigma
para o uso de telefone e privação da liberdade). É positivo o aumento de
períodos de comunicação telefónica dos reclusos, ainda que este passo não vai
impedir a continuação da entrada clandestina de telemóveis nas prisões, já que
as potencialidades destes equipamentos não são supríveis com as comunicações
telefónicas tradicionais (estas não permitem as novas tecnologias de
comunicação e não possibilitam os contactos quando os reclusos estão fechados
nas celas).
- Relativamente à
política de fomento da valorização académica dos reclusos e de contactos com o
exterior, saúda-se o protocolo de colaboração da DGRSP com a Universidade
Aberta, esperando-se que os estabelecimentos prisionais criem as condições para
a adesão dos reclusos ao prosseguimento dos estudos.
- Tendo o crime de
condução de veículos automóveis, sem carta de condução, significativa expressão,
deve-se procurar proporcionar ao recluso, preso por este crime, a possibilidade
de obtenção dessa habilitação enquanto se encontra em cumprimento de pena.
- É urgente a
admissão da necessidade de alargar a formação para os direitos humanos dos efectivos
prisionais e de concretizar o recrutamento de recursos humanos para as áreas de
apoio aos reclusos (médicos, psicólogos, assistentes sociais, etc…). É
necessária a promoção dum clima de dignidade e humanismo, com a melhoria das
condições prisionais e de respeito pelos normativos aplicáveis dentro das
prisões, nomeadamente o CEPMPL, acabando com a ideia de que o Estado de Direito
fica à porta das prisões. As instituições nacionais e internacionais de
direitos humanos (Conselho da Europa, Nações Unidas, Provedoria de Justiça ,
etc…) continuam a manifestar a sua insatisfação e perplexidade com a situação
existente.
- As prisões devem
ter uma dimensão e localização que permitam a proximidade do recluso à sua área
de residência, promovendo uma política de transferências de reclusos para tal,
assim como evitando instalações de dimensão elevada que introduzam grandes
aglomerados de reclusos dificultando a humanização da vida prisional, assim
como combatendo a existência de grupos de liderança que praticam a extorsão e a
violência nas prisões. Para análise individual de cada estabelecimento
prisional, o relatório de actividades anual, publicado pela DGRSP, deveria
incluir o relatório pormenorizado de cada estabelecimento prisional a exemplo
do que foi feito até ao ano de 2010, tornando transparente a sua situação e o
conhecimento da vida interna que tal desenvolvimento do relatório permitiria.
- Sendo Portugal
frequentemente visado pelas organizações internacionais de direitos humanos de que faz parte,
nomeadamente das Nações Unidas e do Conselho da Europa, os relatórios
produzidos por estas instituições só podem ser divulgados depois da autorização
do governo português, o que não abona a favor da transparência e da boa fé.
Torna-se necessário que Portugal prescinda desta prerrogativa e retire a
restrição à divulgação desses relatórios logo que essas instituições os
produzem.
- Há que considerar
a aplicação das Regras
de Bangkok (Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres
presas e
medidas não privativas de
liberdade para
mulheres
infratoras) às reclusas
com filhos, abolindo o cumprimento de penas de prisão que, por arrastamento,
cumprem as crianças inocentes.
- Os tribunais de execução
de penas persistem em decisões restritivas na concessão de licenças
jurisdicionais (precárias) e na liberdade condicional, ao arrepio do
recomendado pelos instrumentos de reinserção social, raramente concedendo uma
licença com 25% do cumprimento de pena, apesar de tal possibilidade ter
consagração legal, sem possibilidade de recurso por parte dos reclusos, além do
desrespeito dos prazos processuais. Por outro lado, deveria ser obrigatória a
presença física dos reclusos e seus advogados
em todas as reuniões que apreciam o seu caso, assim como de ser-lhes
fornecida cópia dos relatórios e pareceres que lhes dizem respeito, com a sua inclusão
no respectivo processo individual existente no estabelecimento prisional.
- Continua a retenção indevida do
dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do
direito de propriedade, com o argumento da constituição dum fundo de reserva.
Tal só deveria ser feito com a concordância do recluso. Por outro lado, o trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com
valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a
trabalho escravo, além de que os bens produzidos pelos reclusos, ao serem
vendidos, configuram concorrência desleal com as entidades que produzem o mesmo
tipo de bens tendo de suportar salários e encargos legais.
- Assiste-se, no interior das prisões, a
alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada,
violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e
prepotência, situações inaceitáveis que urge acabar.
- A dinâmica de
reinserção social em muitas prisões, a partir do início do cumprimento de pena,
é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que
continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do
poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral
de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de
actividades, quer de algumas ONGs, situação esta agravada pelo recurso a
técnicos com vínculo precário.
- Os serviços de saúde
são objecto de grandes limitações, em recursos materiais e humanos, como, por
exemplo, no fornecimento de próteses dentárias, auditivas e oculares, situação
esta agravada pelo recurso a técnicos com vínculo precário.
- É imperioso que se dê
andamento à implementação de protocolos com autarquias visando a criação de
“casas de saída”, permitindo a existência dum local aonde os reclusos podem
recorrer quando não dispõem duma morada no exterior, permitindo a sua
ressocialização e reintegração, minimizando os custos sociais do crime e da
reincidência.
- A alimentação é
manifestamente pobre e insuficiente, em qualidade e quantidade, bastando
constatar que o valor diário, por recluso, para as quatro refeições, fornecidas
por entidades com fins lucrativos, é
inferior a € 4,00.
Em acréscimo a
estas questões, importa ter em conta o que temos vindo a declarar nas
sucessivas intervenções em que nos envolvemos.
Em
Abril último fomos homenageados com o prémio “Terra Justa – Causas e Valores da
Humanidade” (Fafe - 04/04/2019) pelo nosso contributo para a humanização do sistema
prisional, onde proferimos a seguinte declaração:
(…)
“Permitam-me um
prólogo à intervenção protocolar nesta cerimónia de homenagem à O.V.A.R. – Obra
Vicentina de Auxílio aos Reclusos, promovida pela Câmara Municipal de Fafe no
“Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade – Terra Justa” do ano
de 2019.
Já que estamos em
momento de homenagens, quero homenagear
e solidarizar-me com todas as vítimas de atos anti-sociais, e homenagear e
solidarizar-me, também, com alguns perpetradores de atos socialmente
censuráveis de quem tenho tido o privilégio de contactar, na prossecução duma
sociedade sem crimes, sem vítimas e sem reclusos, uma sociedade de paz e
liberdade.
- Recluso A – Preso
há 34 anos, considerado inimputável, manifesta a sua revolta e indignação pela
renovação, de 2 em 2 anos, da sua reclusão no estabelecimento prisional. Tem
consciência da injustiça que lhe está a ser feita. Mantenho com ele uma relação
de grande amizade.
- Recluso C –
Encontra-se preso pela 3ª vez. Quando o encontrei a iniciar o cumprimento da 3ª
pena, perguntei-lhe: “ Então você aqui outra vez? Não me tinha dito
que nunca mais
voltaria para a prisão?” Respondeu-me: “Quando cheguei a casa depois de
libertado a minha mãe disse-me: rapaz, vê lá se arranjas trabalho pois nós
somos pobres e precisamos da tua ajuda. Visitámos-te pouco na prisão pois não
tínhamos dinheiro para lá ir. No dia seguinte fui a diferentes lugares
oferecendo-me para trabalhar e todos me disseram para deixar os
meus contactos, que
logo que aparecesse
alguma coisa me telefonariam. No 2º dia repetiu-se o que
se passou no dia anterior.” Então o recluso
perguntou-me: “O senhor acha que eu
tinha coragem de voltar para casa ao 3º dia sem dinheiro nem
trabalho?”. Foi apanhado e preso uns dias depois.
- Recluso D –
Depois de 20 anos de vida atribulada, conseguiu encontrar um rumo para o seu
futuro, concluindo a licenciatura em engenharia mecânica, enquanto está preso,
estando agora a fazer o estágio curricular e o mestrado, devendo sair em
liberdade no final do corrente ano, apesar das grandes limitações a que está
sujeito para este seu percurso académico, sem poder utilizar equipamento de escrita
e de acesso às TIC .
- Recluso E
(toxicodependente) – Como não dispunha de rendimentos para usufruir de serviços públicos essenciais,
fez uma ligação clandestina
à rede pública de água. Apanhado
neste crime, foi condenado a pagar € 1.800 de multa, convertíveis em 300 dias
de prisão. Como não tinha os € 1.800 para pagar a multa, está a cumprir os 300
dias de prisão que vão custar ao Estado cerca de € 15.000, pois um recluso
custa, em média, cerca de € 50 por dia. E, entretanto, como estão a viver a
esposa e o filho? Que futuro se prevê para a família?
- Recluso F –
Encontrei uma senhora a sair da visita semanal de sábado à prisão, com ar
triste, abatido e de mágoa evidente. Perguntei-lhe se necessitava de ajuda,
respondendo-me que estava preocupada com o seu filho a cumprir pena, a que se
seguiu uma conversa amiga. Relatou-me que o seu filho tem tido problemas
psiquiátricos desde criança, com manifestações de agressividade para com ela e
para com o pai, que iam aguentando tudo pois sentiam como seu dever nunca
abandonarem o filho, confiados que, um dia, ele recuperaria a razão, apesar de
serem pobres e sem meios para grandes tratamentos. Na última vez o filho
agrediu-os e obrigou-os a sair de casa, o que os forçou a chamar a polícia com
o objectivo de lhes permitir o regresso a casa e de provocar o tratamento do
filho num estabelecimento de saúde adequado. A polícia deteve o jovem,
acusando-o de violência doméstica, apesar dos pais declararem não querer
apresentar queixa mas, apenas, que o seu filho fosse tratado. No entanto, como a
violência doméstica é crime público, o jovem foi julgado e condenado a quatro
anos, sendo considerado inimputável
e a pena a ser cumprida em
estabelecimento psiquiátrico prisional. E, agora, lá vão os pais, todas as
semanas, visitar o seu querido filho, com a consciência pesada pelo facto do
seu filho estar na prisão por culpa deles, já que nunca deviam ter chamado a
polícia. Pensavam que ele seria levado para tratamento hospitalar mas nunca
para a prisão. Carregam esta cruz com tristeza e mágoa mas com amor
incondicional pelo seu filho.
Recluso G –
Encontra-se a cumprir penas sucessivas que lhe foram aplicadas num total de 51
anos e 8 meses (após reclamações do recluso foram reduzidas para um total de 38
anos e 2 meses). Está preso há 17 anos, sem ter tido qualquer licença
jurisdicional (precárias), sempre passados dentro da prisão. Muitas entidades
conhecedoras da situação consideram que esta situação, que pode conduzir à
prisão perpétua, é inaceitável e viola o disposto na Constituição da República
Portuguesa. Este caso já tem sido tratado por alguns órgãos de comunicação
social, tendo tido um programa específico na SIC, na rubrica “Vidas Suspensas”.
O actual Diretor Geral da Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais
comprometeu-se a apresentar uma proposta legislativa que solucione a situação
dentro do quadro constitucional e do Código Penal que prevê a pena máxima de 25
anos. Aguarda-se tal proposta e, enquanto isso não acontece, o recluso continua
sem saber se algum dia sairá da prisão.
A maioria destes
reclusos estão presos, ou passaram pelas prisões, devido a problemas com
drogas, problemática esta que está na origem de mais de 80% dos presos em
Portugal.
Agradecendo a
consideração pela permissão deste prólogo, não posso deixar de iniciar a minha
intervenção protocolar sem agradecer, sensibilizado, a escolha da O.V.A.R. -
Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos (Obra Especial do Conselho Central do
Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo) para ser homenageada e felicitar
vivamente a organização deste evento “Encontro
Internacional de Causas e Valores da Humanidade, Terra Justa”, colocando Fafe
como exemplo na divulgação dos mais elevados direitos humanos, assim como por trazer para a
consciência colectiva a necessidade de pensar sobre valores base da convivência
humana em clima fraterno e solidário, procurando alertar, provocar
e envolver as
pessoas a refletir sobre
a importância das causas
e valores da humanidade, fazendo jus à muito afamada “Justiça de Fafe”. E aqui surgem, já,
duas questões: Que tempo é este em que vivemos quando causas e valores da
humanidade como a solidariedade, a fraternidade, a caridade e o amor ao
próximo, continuam a ser valores merecedores de homenagem e não atributos
correntes na prática rotineira de todos os seres humanos? Que tipo de sociedade
é esta em que vivemos que substitui esses valores pelo hedonismo, egoísmo,
vingança e ódio?
No passado dia 10 de Dezembro, aquando da
atribuição do prémio atribuído pela Assembleia da República “Direitos Humanos
2018”, tive ocasião de referenciar, sucintamente, os atropelos à dignidade
humana vividos nas prisões portuguesas.
Permitam-me que os repita
aqui, já que a gravidade de que se revestem impõe que os tenhamos
presentes, tendo em conta de que as situações referidas
diferem dum estabelecimento prisional para outro estabelecimento prisional. (…)
E poderia continuar a
acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos
humanos. Os organismos de direitos humanos das Nações Unidos e do Conselho da
Europa são claros nos seus relatórios sobre as violações de direitos humanos
nas prisões. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
Ainda, recentemente, em artigo
publicado no Jornal Expresso, pelo psicólogo Mauro Paulino, foi divulgado que “a prevalência de
diagnósticos psicopatológicos entre reclusos é quatro vezes superior à da
população em geral, com destaque para perturbações da personalidade,
designadamente anti-social, estado-limite, paranóide e narcísica. (…) Os
reclusos tendem a desenvolver a denominada máscara prisional, quer a nível
emocional, quer a nível comportamental, o que pode originar uma instabilidade
emocional crónica e debilitante nas interações interpessoais com reflexo na
intervenção a realizar. A vivência destes indivíduos é, por vezes,
caracterizada por vários percursos criminais, com associação a culturas e
normas morais desviantes, que servem de base às relações de poder e de
interesses instituídas. Tomem-se como exemplos os diversos negócios que se
desenvolvem, uma vez que todos os produtos servem para a troca, para exercer
controlo, como sucede com o tráfico de droga ou a compra de tecnologias de
comunicação, que podem, inclusive, servir de meio para que o recluso continue a
intimidar as suas vítimas no exterior. A sobrelotação é outra variável a
considerar, podendo originar uma perda de controlo por parte da administração
prisional e o aumento do perigo de vida para o staff e reclusos. Ao nível dos
serviços clínicos, o excesso de pessoas por técnico representa uma real limitação
de atuação terapêutica, sem a possibilidade da implementação de um trabalho
psicoterapêutico mais efetivo, dado o rácio técnico/recluso. Neste quadro
surge, não raras vezes, a frustração entre os reclusos por terem
inevitavelmente menos possibilidade de acesso a outros serviços, incluindo as
ocupações (escola, trabalho), o que contribui para o aumento de competição e
sintomatologia diversa. Ainda que os serviços de vigilância procurem
supervisionar a violência, a verdade é que aqueles também denunciam a falta de
recursos humanos no exercício de funções e que as agressões existem e provocam
medo, podendo ocorrer a construção artesanal de instrumentos e armas que podem
provocar ferimentos graves e mesmo a morte. A isto associa-se a complexidade
dos negócios ilícitos já citados, os roubos, a própria monotonia e a manutenção
de relações de poder, tendo-se aqui em consideração variáveis como o número de
anos preso, o tempo que passou em instituições penais, o tipo de crime e a
idade da primeira detenção.”
O que se passa hoje
nas prisões portuguesas, como instituições
retrógradas, medonhas, arcaicas, medievais e violentas, é o reflexo da
sociedade em que vivemos. Já começa a ser lugar comum caracterizar o actual
modelo de sociedade como alienada, violenta, egoísta e vingativa, existindo
pequenas bolsas de resistentes que continuam a querer implementar o modelo
humanista construído na segunda metade do século passado, de que o Papa
Francisco tem sido exemplo destacado. Assiste-se nas relações sociais, em muitas
famílias e em muitas escolas, à prática dum clima de repressão, ódio,
intolerância, escravatura e medo. Como exemplo pode-se atentar nos indicadores
divulgados, anualmente, pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens, que
nos informam estarem a ser acompanhadas,
nestas comissões, cerca de 70.000 crianças e jovens por ano. E a sociedade
assiste, impávida e serena, a esta catástrofe! O futuro das prisões está
garantido pois muitas destas crianças e jovens têm o seu destino apontado desde
muito cedo, havendo necessidade urgente de, na área da justiça juvenil, se
repensar o processo tutelar educativo, o funcionamento dos centros educativos e
o Estatuto do Aluno e Ética Escolar que quase parece um Código de Penas para
crianças estudantes.
Por outro lado, a dimensão escandalosa da
pobreza em Portugal, resultante dos baixos salários e pensões, assim como da
precariedade crescente, constitui um grande contributo para o número elevado da
população prisional, já que a esmagadora maioria dos reclusos são pobres, a
quem a tentação do crime é mais difícil de resistir, pois, como disse o poeta
Millôr Fernandes “Ser pobre não é crime, mas ajuda muito a chegar lá”. A
pobreza existente em Portugal, país da U.E., espaço que se diz desenvolvido, é
um escândalo e gerador da prática de atos anti-sociais.
Como corolário
desta situação, em 31 de Dezembro do ano findo tínhamos 12.867 reclusos a
cumprir penas de privação da liberdade, sendo cerca de 70% superiores a 3 anos
de prisão, e em 31 de Dezembro de 2017 havia 33.143 pessoas a cumprir penas e
medidas na comunidade na área penal, das 51.413 condenadas nesse ano e dos
cerca de 340.000 crimes registados. Esta dimensão coloca-nos nos países da U.E.
com maiores taxas de pessoas em cumprimento de penas e medidas punitivas. Temos
de nos afastar, decididamente, da afirmação do médico psiquiatra Miguel
Bombarda que, há um século atrás, declarou “A
Inquisição fazia mortos mas a Penitenciária faz doidos.”
Com este quadro
aterrador é urgente uma mudança profunda, com o entendimento sobre a prevenção
da criminalidade como caminho para a abolição das prisões, invertendo a
tendência para aumentar o leque de casos e comportamentos humanos classificados
como crimes puníveis com penas de privação da liberdade. Como exemplo, podemos atentar
na problemática das drogas, que estimo em ser responsável por mais de 80% dos
crimes cometidos pelos reclusos em cumprimento de pena, tendo sido condenadas,
em 2018, cerca de 8.000 pessoas por questões relacionadas com drogas, além das
que foram condenadas por crimes contra as pessoas, contra o património e contra
a propriedade que, na maioria dos casos, se destina a obter meios que permitam
o acesso às drogas. Tenhamos em consideração que, ainda em meados do século
passado, era inexistente, ou quase residual, a sua figuração nos normativos
penais. E atente-se nos exemplos que recomendamos aos nossos alunos de figuras
famosas da literatura, das artes plásticas, da música e do desporto, que
reconhecemos como personalidades relevantes, apesar de terem tido
comportamentos e contactos com drogas que, hoje, são puníveis pela comunidade.
Além da cegueira que é a não criminalização, com perda da liberdade, do consumo
de drogas, não querendo ver que aceitando o consumo tem de se aceitar a sua
produção e comercialização. Logo, há que considerar uma nova política de
drogas, enquadrando legalmente a sua existência, desde a produção ao consumo,
simultaneamente com uma grande campanha de sensibilização para os efeitos das
dependências e suas consequências, a exemplo do que já foi, e está a ser, feito
para o tabaco e para o álcool. Os meios humanos e financeiros adstritos ao
combate às drogas, desde as
polícias às prisões e às instituições cujo
modelo de negócio assenta nesta problemática da droga e seu tratamento,
possibilitam a feitura dessa grande campanha de sensibilização.
Excelentíssimas
entidades presentes
Minhas
senhoras e meus senhores
Celebrou-se
em 10 de Dezembro o 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos
Humanos. No próximo dia 5 de Maio o Conselho da Europa também celebrará igual
aniversário. Há 70 anos os nossos pais e os nossos avós definiram os grandes
valores civilizacionais que deveriam estar presentes na vida de todos nós,
tendo os nossos Governos assinado os tratados e convenções que nos obrigam a
respeitar esses valores. Setenta anos passados continuamos a assistir ao
desrespeito desse legado, pelo que deveríamos sentir vergonha pela nossa
incapacidade e indiferença. É tempo de todos nós nos empenharmos em praticar,
quotidianamente, o reconhecimento da dignidade estabelecido no artº 1º da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, considerando o direito à liberdade
como valor absoluto.
Tenho consciência
de que o ser humano é imperfeito e, como tal, propenso a cometer erros, mas sem
que tal tenha que ter como consequência a perda da liberdade. A prevenção da
prática de atos anti-sociais (prevenção do crime) tem de ocupar lugar de grande
importância na formação do carácter das pessoas, seja nas escolas, nas
famílias, nos órgãos de comunicação social e na vida em sociedade.
Ainda, há poucos
anos, passou nas salas de cinema o filme “I Daniel Blake” que retrata alguns
aspectos da sociedade desumana em que estamos inseridos. Recomendo vivamente o
seu visionamento a quem ainda não o fez. Eu não quero fazer parte de quem não
vê, de quem não ouve, de quem não lê, e não quero ignorar, como nos exortou a
poetisa Sofia de Melo Breyner Andresen, de quem comemoramos o centésimo
aniversário do seu nascimento. Sendo eu um defensor da liberdade e, como tal,
da abolição das prisões, quero ter a esperança de que o caminho para tal se
concretize fruto da pressão de iniciativas como esta.
(…)
O objectivo da
nossa missão de voluntariado é bem claro: semear a paz e a esperança,
permitindo o sonho dum mundo melhor que, infelizmente, está cada vez mais arredado
do modelo de sociedade que se está a implementar neste início do século XXI.
Atentemos na afirmação de Alexandre O’Neil: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. Será um sonho não querermos os
reclusos fechados, nos vários sentidos, mas abertos e disponíveis para com
todos nos caminhos do mundo, abertos e disponíveis para com tudo que os faça
crescer entre os povos, com justiça, entreajuda fraterna e a verdadeira paz?
Neste sentido, continuarei a pedir a todos os que me rodeiam para reflectirem
no lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, extraída do evangelho
segundo S. João: “ Quem nunca errou que atire a primeira pedra”.
O arrepiar do caminho que nos está a levar
para um beco sem saída, que não reinsere os delinquentes nem assegura a
reparação às vítimas (estas são duplamente vítimas – do crime que as afectou e
deste sistema de justiça), tem de passar pela prioridade à diminuição da
conflituosidade, ao invés do que se tem passado
em que a prioridade foi dada aos meios repressivos. A
sucessiva dotação de mais meios para a repressão – mais tribunais, mais
magistrados, mais oficiais de justiça, mais prisões, mais guardas prisionais,
mais polícias, mais esquadras, mais multas e mais pesadas, etc… - não tem tido resultados. Se este reforço de
meios fosse dedicado a uma política assumida de prevenção da conflituosidade na
sociedade, os resultados seriam muito melhores, em todos os sentidos. A aposta
na repressão nunca, ao longo da história, foi o caminho para uma sociedade
melhor. Mesmo na actualidade, nos países em que o sistema penal é mais
repressivo (China, Rússia, Estados Unidos da América) é onde se verifica maior
taxa de criminalidade e de reclusão. Logo, o modelo repressivo não é
dissuasor da prática criminosa, quase parecendo provar-se o contrário; quanto
maior é a repressão maior é a taxa de criminalidade. Temos de adotar o lema “Por
um mundo sem cárceres”. Temos de colocar os valores da liberdade, igualdade e fraternidade como centrais na
nossa relação para com os outros.
Desejamos que desta
audição parlamentar possam sair fortes contributos para uma nova visão do
sistema prisional em Portugal, substituindo o castigo, o ódio e a vingança pela
prevenção dos atos anti-sociais e pela justiça restaurativa, com tradução em
medidas concretas, permitindo que o Estado de Direito viva nas prisões,
enquanto não são abolidas, e sejam respeitados os Direitos Humanos, de cujos
referenciais jurídicos Portugal é Estado-parte.
Muito obrigado
Manuel
Hipólito Almeida dos Santos
Presidente
da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos
09/07/2019