quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O Direito à Liberdade como Valor Absoluto

A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem merecido, recentemente, dentro e fora da Igreja Católica, reflexões que apontam neste sentido. Desde Bento XVI ao P. Tolentino Mendonça, com muitos outros pelo meio, tem-se vindo a acentuar um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das prisões como instituições perigosas para a afirmação deste valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas em 2015 a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. No I Congresso Ibérico da Pastoral Penitenciária a questão da liberdade como valor absoluto esteve subjacente em muitas intervenções. Um dos temas dos painéis foi “Um outro sistema penal é possível”. Não era uma pergunta. Era uma afirmação! E esta afirmação comprometeu o congresso. Temos de construir um outro sistema já que o actual é desumano, violento, injusto, não cristão. Como cristãos penso que devemos ter sempre os fundamentos da nossa fé na construção de qualquer sistema. Todos conhecemos a passagem do evangelho segundo São João sobre a mulher adúltera e o desafio de Jesus: "Quem de vós estiver sem pecado que atire a 1ª pedra". Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: “Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.» Numa outra passagem dos evangelhos Jesus também nos diz que devemos fazer isto não 1,2,3,4,5,6,7 vezes mas sim 70 x 7. Temos de perdoar sempre. Os ensinamentos de Jesus permitiram a construção de dois importantes pilares do cristianismo: O perdão e a misericórdia. No Pai nosso dizemos: Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E como disse D. Mário Toso na conferência de abertura do congresso “Não há justiça verdadeira sem perdão”. Assim sendo temos de ter a ousadia de abolir as palavras castigos e penas com o reconhecimento da imperfeição do ser humano e reconhecer a sua incapacidade para não cometer erros. Os cristãos não podem ser indiferentes perante a injustiça. A lei penal sem compaixão não é uma lei justa. Os cristãos não podem olhar para os presos como criminosos, nem os capelães e visitadores podem ser passivos com o clima repressivo nos estabelecimentos prisionais. Temos de acrescentar mais pilares à justiça cristã, de que o exemplo da justiça restaurativa é um importante suporte (O foco da justiça é o acto e a sua reparação e não quem o comete). Temos de assentar na necessidade de afastamento da vingança como factor de punição. Como disse D. António Francisco dos Santos, na homilia da entrada na Sé do Porto em 6 de Abril do ano passado “Nos Evangelhos, os discípulos de Jesus aparecem como homens fortes, corajosos, trabalhadores, mas no seu íntimo sobressai uma grande ternura, que não é virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude e de compaixão. Não devemos ter medo da bondade. Só pela bondade aprenderemos a fazer do poder um serviço, da autoridade uma proximidade e do ministério uma paixão pela missão de anunciar a alegria do evangelho. O evangelho é tudo o que temos e somos". Neste sentido, temos de promover a reconciliação e não a vingança. Condenar o pecado e não o pecador. Afirmar a liberdade e não a reclusão. Promover a correcção e não o castigo. Privilegiar a prevenção e não a repressão. Como disse o P. Valdir no Congresso, “temos de deixar de ser coniventes com as prisões como instituições do pecado”. E D. António Marto também nos disse que as prisões são factores de dessocialização e desestruturação do ser humano. E, ainda, D. Ramon Calatrava demonstrou-nos que as penas de privação da liberdade produziram mais danos do que os crimes cometidos por aqueles que cumpriram essas penas. Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, desde o filósofo Michel Foucault e outros filósofos até muitos conferencistas presentes em anteriores conferências da pastoral penitenciária. Relembremos algumas das frases mais significativas: - Todo o ser humano é maior que o seu erro! - P. João Gonçalves; - Habrá que tener la valentia de denunciar la injusticia social como la primera y más grave delincuencia, geradora de otras muchas delincuencias (…) - CEE–España – P. José Sesma León; - A cadeia é um lugar injusto. (….) Parte de um tipo de Estado que, com ela, busca fins de repressão e submissão (…) A cadeia tal como a conhecemos não foi inventada para curar ou reabilitar (…) - P. António Correia; - O sistema penitenciário clássico falhou os seus propósitos Ex-Ministro da Justiça - Dr. Alberto Costa; - A experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso. (…) A prisão não reinsere; por vezes fomenta a própria criminalidade.-Dr. Germano Marques da Silva - Professor de Direito Penal; - As nossas prisões não cumprem as condições mínimas relativamente à alimentação, saúde, higiene, privacidade e liberdade religiosa - Comissão Nacional Justiça e Paz; -Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controle de indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas? Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos.., Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! - P. João Gonçalves ; - O actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade - Ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público Dr. António Clunny; “O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém e, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex-homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia (…) - “Onde o homem acaba e a maldição começa” - Emídio Santana ; (…)nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente - “Vigiar e Punir” – Michel Foucault. Então, um outro sistema penal torna-se necessário. Será que teremos de continuar a pensar em penas e castigos? E porque não um código de valores? E porque não começar com a reclamação ao poder político do nosso país duma amnistia significativa que leve o perdão e a misericórdia às prisões, dignificando as pessoas presas? A honra, a vergonha e o dever do exemplo são valores que devem ser exaltados. Temos de ser honrados com os compromissos que assumimos. Temos de ter vergonha de proclamar boas intenções sem as levar à prática. Temos de dar o exemplo. Este sistema penal não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à auto-defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação. As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais dos E.P.s terem deixado de serem publicados desde 2010. O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar. Algumas intervenções proferidas no congresso pareceram-me colocar como necessária a modificação do recluso enquanto pessoa, o que me parece desumano e não conforme com os direitos humanos universalmente consagrados. O que me parece que temos de fazer é reconhecer a todos os seres humanos o direito a que a sua personalidade seja defendida e respeitada, exortando-os e possibilitando-lhes as condições para a não reincidência na prática de actos anti-sociais mas não a sua modificação enquanto pessoa. Não foi isto que Jesus Cristo fez com a mulher adúltera? Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI. Atentemos nas palavras de Jesus Cristo “ Tudo aquilo que fizerdes a um dos meus irmãos mais pequeninos é a mim mesmo que o fazeis”- No passado mês de Janeiro, durante o decorrer do Encontro Nacional de Leigos, no Porto, o bispo desta diocese, D. António Francisco dos Santos, desafiou os leigos a mudar o «modelo predominante» de educação das crianças pedindo aos cristãos que “não reduzam” o ser humano a números e que as crianças sejam educadas para o “ser”, para o “diálogo e reconciliação” e não para a “a competitividade e rivalidade”. O modelo predominante da sociedade europeia contemporânea diz-nos que as crianças são ensinadas mais para ‘ter’ do que para ‘ser’”, alertou D. António Francisco dos Santos. Para o bispo do Porto as crianças são educadas, muitas vezes, “mais para a afronta e para a violência do que para a reconciliação, o diálogo, a mansidão e para a paz”. O modelo de sociedade atual “facilmente empobrece as pessoas” uma vez que retira generosidade e provoca “um vazio de sentido e uma ausência de esperança”, considera. D. António Francisco dos Santos disse aos participantes do II Encontro Nacional de Leigos, que a procura de liberdade, de comunhão e de paz é “atendida” com “objetos que o dinheiro compra”, mas que "o afeto do coração e a dádiva da vida não trabalharam suficientemente". “Por isso verificamos por entre tristezas, desilusões e medos que esta sociedade que aparentemente crescia depressa em bem-estar, progresso e abundância não cresceu em solidariedade, em respeito, em gratidão, em responsabilidade e em preocupação pelos outros”. Na homilia, o prelado da diocese do Porto explicou que um dos contributos “mais belos” do Evangelho à Humanidade consiste em ajudar o homem contemporâneo a “viver com um sentido mais humano” no meio de uma sociedade em mudança civilizacional e em “procura de felicidade e de esperança”. Na sua recente visita às Filipinas, o Papa Francisco mais uma vez mostrou a necessidade da humanização dos tempos que vivemos. Emocionei-me com o abraço que o Papa deu a uma menina filipina de 12 anos, Glyzelle Palomar, que viveu na rua até ser recolhida por uma ONG. Na sua intervenção ela, chorando compulsivamente, tinha perguntado a Francisco: “Há muitas crianças abandonadas pelos próprios pais, muitas vítimas de muitas coisas terríveis como as drogas e a prostituição. Porque é que Deus permite estas coisas, já que as crianças não têm culpa? Porque vem tão pouca gente ajudar?*”O Papa deixou o discurso preparado e improvisou: “Ela hoje fez a única pergunta que não tem resposta, e como não lhe chegavam as palavras teve de fazê-la com as lágrimas. […] Quando nos perguntarem porque sofrem as crianças (…) que a nossa resposta seja o silêncio e as palavras que nascem das lágrimas. […] Ao mundo de hoje faz-lhe falta chorar, choram os marginalizados, choram os que são deixados de lado, choram os desprezados, mas aqueles que temos uma vida mais ou menos sem necessidade não sabemos chorar. […] Certas realidades da vida só se vêem com os olhos lavados pelas lágrimas”. Isto exige uma limpeza geral dos olhos, da mente, do coração, das palavras e das acções. Talvez seja preciso, como disse Francisco, começar por “aprender a chorar!” As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada. Atentemos na reflexão que nos foi legada por Sophia de Melo Breyner Andresen: “A civilização em que estamos está tão errada que nela o pensamento se desligou da mão.” - Fátima, 9 de Fevereiro de 2015,- XV Encontro Nacional da Pastotal Penitenciária - Manuel Hipólito Almeida dos Santos – O.V.A.R. Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos - Porto