Contributos para a história da cerâmica doméstica e
decorativa
em Portugal no último quartel do século XX
2 –
Caracterização dos produtos cerâmicos
3 –
Condicionamento industrial
4 –
Mercados interno e externo
5 –Cinco realidades distintas (VA, Maiaporce, Cart-Export,JPCF e
Cerâmica do Douro)
Perde-se na origem dos tempos o
primeiro contacto entre o Homem e aquilo que hoje se designa por “Cerâmica”.
A própria
definição do que é um produto cerâmico (tudo o que resulta da transformação
irreversível de matérias-primas naturais por ação do calor) evidencia, desde
logo, que os elementos necessários à obtenção duma peça de cerâmica, como sejam
os minerais e o fogo, coexistem com o Homem desde o seu aparecimento à face da
Terra. Não é por acaso que em qualquer escavação arqueológica aparecem sempre
fragmentos de peças cerâmicas, independentemente da época dos achados.
Começaram por
ser simples barros, tais quais se encontram na Natureza. O conhecimento das
propriedades diferenciadas dos diversos barros fez evoluir o suporte matérico
para uma mistura de barros, possibilitando a obtenção de peças com uma maior
variedade de formas e de sentido estético. Nos séculos mais recentes, o
conhecimento científico possibilitou um salto enorme na qualidade dos produtos
cerâmicos, já que da mistura de barros se saltou para a faiança, para o grés e
para a porcelana. A par da evolução das formas foi-se, também, aprimorando o
aspeto cromático. Aquilo que na Antiguidade eram desenhos simples,
possibilitados pelo conhecimento técnico escasso, tornou-se hoje no principal
elemento influenciador quando se aprecia uma peça cerâmica: a decoração.
Constituídos, essencialmente, por óxidos metálicos, existentes nos minerais, as
tintas e corantes, de que dispusemos no final do século XX, possibilitaram já a
obtenção de quase todo o espectro cromatológico, dando a uma peça cerâmica a
beleza resultante da fusão dos seus dois elementos constituintes: forma e
decoração.
Aquilo que no
passado tinha uma função exclusivamente utilitária passou a ter um espaço que
cobre praticamente todas as actividades humanas.
2 – Caracterização dos produtos cerâmicos
É
clara a definição dum produto cerâmico: é todo o produto resultante da
transformação irreversível de matérias primas naturais por ação do calor. O que
quer dizer que misturando matérias primas naturais, em quantidades
proporcionalmente calculadas, e submetendo esta pasta a uma temperatura
suficientemente elevada para transformar essas matérias primas, estamos na
presença dum produto cerâmico. Se é barro, faiança, grés, porcelana, vidro,
etc. ..., isso depende das matérias primas, percentagens e temperaturas de cozedura
que utilizamos.
Mas
quando falamos de cerâmica estamos a falar dum conjunto alargado de produtos,
pelo que precisamos sempre de especificar mais pormenorizadamente aquilo a que
nos queremos referir.
E
quais são as matérias primas mais importantes usadas no fabrico das peças
cerâmicas? Tal como se disse, são naturais (existem tal e qual na natureza) e
são do domínio comum: quartzo (a areia corrente é constituída maioritariamente
por quartzo); feldspato (outro mineral comum e que é um dos constituintes do
granito); misturas argilosas (a mais conhecida é o Caulino); outros materiais
de importância menor mas que permitem efeitos e comportamentos necessários caso
a caso (carbonatos, fosfatos, óxidos metálicos, etc. ...)
Estes
materiais são tratados adequadamente (por ex: o quartzo e o feldspato têm de
ser finamente moídos já que as dimensões em que aparecem na natureza não são
ideais para fabricar peças cerâmicas), misturados segundo proporções estudadas
para cada produto (por ex: para fabricar porcelana é necessário preparar uma
pasta com, aproximadamente, 50% de Caulino, 25% de quartzo e 25% de feldspato),
moldados de acordo com as formas pretendidas, e submetidos a uma, ou mais,
cozeduras. No final estamos na presença dum produto cerâmico e as matérias primas
usadas na composição da pasta já se encontram transformadas, de forma que já
não é possível separá-las e fazê-las voltar ao estado inicial, quer sob o ponto
de vista químico, quer sob o ponto de vista mineralógico.
Estamos
então na presença dum produto cerâmico que resultou da transformação de
matérias primas naturais por ação do calor.
Na caracterização básica dos produtos
cerâmicos pode dizer-se que há uma característica (a porosidade) que divide os
produtos cerâmicos em dois grandes grupos: produtos porosos e produtos não
porosos.
Como
a própria palavra indica os produtos porosos são aqueles que contêm poros na
sua constituição, isto é, existem pequenos espaços (microscópicos) entre a
estrutura constituinte do produto. Por outro lado, os produtos não porosos são
compactos, não tendo, portanto, qualquer poro na sua estrutura constituinte.
Como exemplos de produtos porosos podem referir-se os barros e as faianças.
Como não porosos temos o grés, a porcelana e o vidro (ou o pirex).
Esta
característica (porosidade) é a primeira grande referência que devemos ter em
conta na utilização dum produto cerâmico, já que a sua não observância pode
proporcionar-nos surpresas desagradáveis. Esta característica é por si só
indicativa sobre algumas aplicações utilitárias de peças correntes. Tratando-se
de produtos porosos, o corpo da peça é constituído por materiais sólidos e
espaços vazios (ainda que microscópicos), pelo que as peças porosas absorvem
substâncias líquidas com que estejam em contacto (ex: água e gorduras) assim
como outras substâncias que contenham líquidos (alimentos cozinhados por ex), não sendo, portanto os mais indicados para usos
alimentares ou para serem usados em máquinas de lavar. É certo que a sua
superfície é normalmente vidrada para proporcionar um certo isolamento, mas
esta protecção é insuficiente na quase totalidade das utilizações domésticas.
Mais adiante voltaremos a esta questão com mais pormenor.
Os produtos não porosos são compactos pelo que não absorvem
quaisquer outras substâncias com que estejam em contacto.
Há algumas maneiras simples de se diferençar um produto
poroso dum produto não poroso. Vamos só referir as quatro mais exequíveis por
qualquer pessoa, sem necessidade de recurso a técnicas ou instrumentos complicados
.
Uma peça porosa é sempre mais leve que outra peça com as
mesmas dimensões mas não porosa. Logo,
se segurarmos em duas peças iguais em dimensões (comprimento, largura,
espessura, etc...) e sentirmos diferença no peso, então a mais leve é porosa.
Os dois produtos mais conhecidos no grupo dos porosos são
o barro e a faiança. Sendo dois produtos classificados no grupo de materiais
porosos, têm, no entanto, diferenças de composição e apresentação que os
distinguem fácilmente.
O barro é o produto cerâmico constituído por matérias
primas menos exigentes, normalmente de uma argila ou mistura de argilas, e
com baixa temperatura de cozedura (cerca de 600 – 800 ºC). São exemplos deste
tipo de produtos o barro vermelho ou o barro negro. Quando se destinam a usos
utilitários (assadeiras, tigelas, pratos, etc...) são vidrados com vidros de
baixa temperatura, sendo ainda, frequentemente, usado o chumbo como fundente do
vidrado, o que torna este tipo de produtos desaconselhável já que o seu uso
pode provocar problemas de saúde, tendo em conta que o chumbo quase não é
eliminado pelo organismo, acumulando-se nos rins e no fígado, além de que a
porosidade permite a infiltração de resíduos alimentares na estrutura das
peças, podendo provocar distúrbios gastrointestinais. São produtos com baixa
resistência mecânica (quebram-se com facilidade), e mais adiante abordaremos as
implicações destes produtos com os seus usos.
A faiança é um produto cerâmico que, continuando a ser um
produto poroso, já é obtido a partir duma composição mais elaborada, não
necessitando, todavia, de matérias primas de grande exigência. Contém, na sua
composição, os três grandes constituintes duma pasta de cerâmica fina (argilas,
areias e fundentes), tratados individualmente antes da mistura, com cozedura a
uma temperatura próxima dos 1.000 ºC, tendo um campo de aplicação que vai desde
utensílios domésticos à azulejaria. São produtos com fraca resistência
mecânica. A sua utilização tem, também, limitações semelhantes às do barro, que
veremos mais adiante.
Os produtos cerâmicos não porosos mais comuns são o grés,
a porcelana e o vidro/pirex/cristal. Todos são caracterizados por não
absorverem quaisquer ingredientes com que estejam em contacto, já que a sua
estrutura é compacta e impermeável. Apresentam, também, composições e
características diferenciadas, assim como podem ter aplicações distintas.
O grés tem uma composição mineralógica já com
características de alguma elaboração, tendo em conta a necessidade da sua
impermeabilidade e a exigência dos usos a que se destina (desde a louça
doméstica até aos usos industriais, como tubos de saneamento, sanitários,
pavimentos, etc...). É cozido a temperaturas entre os 1.100 ºC e os 1.250 ºC.
Apresenta-se no mercado, normalmente, em cores variadas (castanho nos usos
industriais até ao branco ou beje nas usos domésticos), não tem translucidez e
a sua resistência mecânica e refractária é alta.
A porcelana é a mais elaborada das pastas cerâmicas
correntes. Obtida a partir de matérias primas de boa qualidade (Caulino,
quartzo, feldspato e outras argilas em quantidades menores), é cozida a
temperaturas entre os 1280 ºC e os 1400 ºC. É, geralmente, branca e tem uma
alta resistência mecânica e refractária. Uma característica que a distingue de
todas as outras pastas cerâmicas é a sua translucidez (deixa-se penetrar pela
luz), o que lhe confere particularidades estéticas duma maior beleza e
profundidade. É o produto utilizado para peças de prestígio e de elevada
exigência qualitativa.
O vidro é um produto cerâmico constituído esmagadoramente
por quartzo (areia), com um alto grau de pureza. É cozido a temperaturas entre
os 1.400 ºC e os 1.600 ºC, e, geralmente, é transparente. Frequentemente,
com o objectivo de obtenção de efeitos estéticos especiais produzem-se vidros opacos ou coloridos. Tem baixa
resistência mecânica e refractária. O pirex e o cristal distinguem-se do vidro
tendo em conta o objectivo de efeitos especiais
tais como, por ex:, o aumento do grau refractário no pirex e um aumento
de brilho e sonoridade no cristal com a adição de chumbo na sua composição.
Quando em 1973 iniciei a
minha atividade neste setor de atividade, na Fábrica de Porcelanas da Vista
Alegre em Ílhavo, vivia-se, ainda, a “comodidade” do condicionamento industrial
e de alguns benefícios da pertença à EFTA.
Este grupo empresarial, possuído pela família Pinto Basto, usufruía de
estabilidade económica e estava em expansão sustentada. A par da sua atividade
fabril desenvolvia uma componente social de grande relevo. Por exemplo, na
gestão da unidade situada na Vista Alegre (Ílhavo), salientava-se a
característica da tentativa de criar uma grande família (cerca de 1.000
trabalhadores) em que a fábrica apoiava várias vertentes sociais (no espaço
adjacente à fábrica, estavam implantados: um bairro social com várias dezenas
de moradias para habitação dos trabalhadores com uma renda de um dia de salário
por mês; uma cantina; uma creche; um teatro/cinema; um orfeão; um museu; um
corpo de bombeiros; um grupo desportivo-Sporting Clube da Vista Alegre - com
campo de futebol próprio e participante na divisão distrital de futebol de
Aveiro; uma quinta agrícola que produzia
e vendia artigos para os trabalhadores a preços mais acessíveis: uma
cooperativa de consumo; um posto médico; uma igreja privada, etc… . E tudo isto
com um grande suporte logístico e material da fábrica, incluindo os salários
dos trabalhadores envolvidos nestas estruturas e o pagamento integral do tempo
que fosse necessário despender para o seu funcionamento. Pode-se dizer que
estávamos perante uma Fundação de grande dimensão, ainda que, nesse tempo, tal
conceito jurídico não tinha o enquadramento que hoje se verifica.
O condicionamento industrial
beneficiou claramente a Vista Alegre, na medida em que não permitiu o
nascimento de novas unidades na produção de porcelana doméstica e decorativa (o
aparecimento da SPAL-Alcobaça em 1965 deveu-se ao circunstancialismo da
utilização de um alvará emitido anteriormente ao condicionamento industrial),
assim como impediu a evolução técnica das fábricas de faiança para porcelana.
A abolição do
condicionamento industrial alterou profundamente a realidade das unidades
produtivas cerâmicas, pelo que se assistiu ao nascimento de muitas novas
unidades em todas as pastas cerâmicas, nomeadamente na porcelana, no grés e na
faiança. Este aumento da capacidade produtiva foi potenciado com o crescimento
dos mercados interno e externo.
O 25 de Abril de 1974, e posterior desenvolvimento político, constituiu uma rutura profunda com o sistema político vigente, quer no plano político, quer no plano económico, social e cultural. Consequentemente, o setor produtivo da cerâmica viu abrir-se o mercado interno, fruto do aumento de salários duma larga faixa populacional que destinou ao consumo esse acréscimo do poder de compra. Paralelamente, a integração na EFTA possibilitou a abertura de mercados externos devido ao abaixamento de taxas aduaneiras de que a cerâmica foi beneficiada.
Esta alteração dos mercados
suscitou uma forte dinâmica de aparecimento novas unidades em todo o país,
destacando-se a faixa compreendida nas regiões de
Aveiro-Coimbra-Leiria-Alcobaça-Caldas da Rainha.
No mercado interno o setor
que mais se expandiu foi o da porcelana para a hotelaria, restauração e cafés,
enquanto o mercado externo se tornou mais apetente para a faiança decorativa.
Esta realidade criada pelo
25 de Abril e pelos acordos da EFTA veio a ser alterada na parte final do
quartel, após a adesão à CEE, devido aos acordos comerciais que esta entidade
tinha com países terceiros, nomeadamente da Ásia, o que se traduziu numa
competição difícil nos mercados externos devido aos baixos custos de produção
nesses países, pelo que no final do quartel já se notava um forte
enfraquecimento da capacidade produtiva em Portugal, com o definhamento de
muitas unidades produtivas.
Durante o quarto quartel do
século XX mantive ligações estreitas com cinco realidades distintas de empresas
cerâmicas (Vista Alegre, Maiaporce, Cart-Export, Jerónimo Pereira Campos -
Meadela e Cerâmica do Douro).
Na Vista Alegre (VA), cujo
quadro de pessoal era composto por cerca de 1.000 trabalhadores, iniciei
funções em Dezembro de 1973, como Diretor dos Serviços de Racionalização do
Trabalho, função esta que me permitia percorrer todos os setores da empresa
fazendo com que passasse a conhecer a realidade de todo o processo produtivo. A revolução do 25 de Abril introduziu uma nova
realidade social nas empresas, colocando em causa processos tendentes ao
aumento de produtividade dos trabalhadores, pelo que foi suspensa a atividade
dos serviços de racionalização do trabalho. Tal medida fez com que passasse a
exercer as funções de responsável pelo planeamento e controle da produção e
apoio à direção fabril.
Esta empresa, fundada em
1824, produzia porcelana doméstica e decorativa (foi a primeira do país), com
decorações de pintura à mão e/ou decalcomania, associando, desde a fundação, a
produção de vidro que mais tarde se autonomizou em empresa própria (O Grupo
Vista Alegre compreendia, também, no setor da cerâmica e na altura em que
entrei, a Eletro-Cerâmica em V.N.Gaia, a Sociedade de Porcelanas em Coimbra, o
GLE-Gabinete e Laboratório de Estudos em V.N.Gaia, a Crisal Atlantis na Marinha
Grande mais tarde redenominada Atlantis, a exploração de caulino em OVAR mais
tarde autonomizada como Vialpo, e a produção de decalcomanias, também, mais
tarde autonomizada como Interdecal). Na atualidade, o grupo alargou-se e
transformou-se, tendo a estrutura acionista e de gestão saído da esfera da
família fundadora Pinto Basto para o grupo Visabeira, fruto da incapacidade de
gestão e de desinteligências na família Pinto Basto, descaracterizando a imagem
VA e delapidando o património arquitetónico, social, cultural e tradicional
contruído em Ílhavo. O atual modelo de gestão diminuiu a importância das linhas
de fabrico tradicionais da VA, introduzindo outras cerâmicas de menor valor
artístico, passando a integrar grés e faiança, onde sobressai a marca Bordallo
Pinheiro, sendo, apenas, mais uma das gamas do portefólio industrial e de
serviços da Visabeira.
Em 1974 o grupo VA detinha a
esmagadora maioria da produção de porcelana doméstica e decorativa (só existia
outra empresa no setor, a SPAL em Alcobaça). Com o fim do condicionamento
industrial assistiu-se à criação de novas empresas no setor, já que se assistia
a uma carência deste tipo de produtos, nomeadamente no mercado nacional e no
setor HORECA, situação que se prolongou durante alguns anos até que a reforço
da capacidade produtiva, associado a um grande aumento de importações,
estabeleceu o equilíbrio oferta/procura.
Na VA desempenhei funções de
chefia nos departamentos de Racionalização de Trabalho, Fabrico, Decoração e Planeamento
e Controle da Produção. Participei, também, em estruturas sociais da empresa,
nomeadamente como coordenador da Comissão de Trabalhadores.
Saí da VA em 1981 para
fundar a nova empresa Maiaporce-Fábrica de Porcelanas da Maia.
Esta
empresa foi constituída em 1981, a partir da saída da VA de dois quadros
técnicos (eu próprio e o Dr. Dinis Sottomayor), aliciados pela apetência do
mercado de mais produtos de porcelana doméstica, carência que a VA e a SPAL não
estavam a colmatar, surgindo a oportunidade de saírem da condição de trabalhar
por conta de outrem para empresários. A oportunidade foi reforçada pelo
interesse de um outro grupo cerâmico ligado à cerâmica de construção (Grupo
Estaco) em entrar na área da cerâmica doméstica. A Maiaporce teve como
acionistas iniciais eu próprio (5% do capital social), o Dr. Dinis Sottomayor
com 5%, o representante de equipamentos cerâmicos Hans Kullemkampf com 5%, e a
Grupo Estaco com 85%.
A
nova empresa Maiaporce foi concebida como a mais moderna do mundo para o setor
Horeca, com equipamentos de última geração (Prensagem isostática, fornos de
cozedura rápida e decoração por debaixo do vidrado). A sua entrada no mercado, um ano após a
celebração da escritura notarial, foi bem recebida e a sua produção assimilada.
No entanto, assistiu-se, nessa altura, a uma grave crise na construção civil,
obrigando, em 1983, o Grupo Estaco a vender a sua posição, tendo eu, também
vendido a minha quota a um grupo familiar ligado ao Dr. Dinis Sottomayor.
5.3 – Cart-Export
Com
a saída da Maiaporce iniciei uma fase de consultor cerâmico, sendo a
Cart-Export o exemplo mais significativo, onde iniciei a atividade em 1985.
Esta
empresa, sediada no Porto (a totalidade do capital social era da Calves –
Sociedade de Investimentos com sede na Rua de Gondarém na Foz do Douro), tinha
as instalações fabris na zona industrial das Caldas da Rainha. Era uma empresa que se dedicava à produção de
faiança decorativa destinada, na totalidade, aos mercados externos, nomeadamente
para os países nórdicos.
Nascida
no início dos anos 80 do século passado, aproveitou o boom do crescimento do
setor produtivo em Portugal, beneficiado pelos acordos da EFTA e pelos preços
baixos deste tipo de produtos em Portugal. Era uma fábrica moderna, onde
desenvolvi uma pasta cerâmica de grés com cozedura final a temperatura mais
baixa (1.000ºC) do que era prática nesta pasta.
A
Cart-Export era uma das muitas dezenas de empresas semelhantes que se criaram
em Portugal nessa época, já que o mercado externo era apetente para a cerâmica
decorativa de baixo custo produzida em Portugal, com design desenvolvido pelos
clientes.
A
localização da fábrica nas Caldas da Rainha, que me exigia a permanência de
vários dias seguidos fora da minha residência em V.N.Gaia, obrigou-me a deixar
essa ligação profissional em 1987.
Esta
fábrica, sediada em Meadela-Viana do Castelo, teve a sua origem na década de 40
do século passado com a denominação Fábrica de Louça de Viana, Lda., com o objetivo
de dar continuidade a cerâmica vianense de Darque (Vianna), sendo a existente JPCF
– Fábricas Jerónimo Pereira Campos – Filhos com sede em Aveiro a sua
propulsora, tendo, mais tarde, passado a constituir parte do portefólio do
Banco Pinto de Magalhães, cujo maior acionista era o Sr. Afonso Pinto de
Magalhães, grande admirador de cerâmica.
As
contingências, em muitas empresas, resultantes da revolução do 25 e Abril de
1974, assim como da nacionalização da banca portuguesa em 1975, levaram a que
esta empresa passasse a ser propriedade da União de Bancos Portugueses (UBP)
onde se incorporou a Banco Pinto de Magalhães.
Nos
anos 80 do século passado, os Bancos resultantes da nacionalização entenderam
desfazerem-se de participações fora do seu core-business, tendo eu sido
contactado pela UBP para estudar um projeto de reconversão da Fábrica de
Cerâmica da Meadela.
Iniciei
esse trabalho em 1987, com deslocações semanais a Viana do Castelo, como
consultor em prestação de serviços, tendo como companhia de viagem o consultor
artístico da empresa Escultor Laureano Ribatua.
A
empresa produzia grés porcelânico, dando continuidade aos motivos e formatos da
antiga fábrica de Darque (Vianna). Com instalações e equipamentos antiquados e
uma localização na zona urbana da Meadela, sugeri a deslocalização das
instalações para a zona industrial de Viana do Castelo com a construção de uma
nova unidade com equipamentos atualizados.
O nascimento da
Cerâmica do Douro em Vila Nova de Gaia, cuja escritura pública teve lugar a 3
de Abril de 1989, foi fortemente influenciado pela minha experiência nos quatro
centros cerâmicos atrás referidos (Vista Alegre, Maia, Caldas da Rainha e Viana
do Castelo), assim como pela sua constatação da deslizante agonia em que vivia
(e ainda vive) a cerâmica tradicional. Esta agonia, comum, infelizmente, a
outras actividades tradicionais portuguesas, era (e ainda é) determinada pelo
crescente economicismo vigente no modelo político-económico-social, em que o
fator preço se sobrepõe a critérios históricos, culturais e tradicionais, como,
também, pela inexistência dum sentir forte de defesa de valores que não os do
mero utilitarismo falsamente barato. O produto fabricado foi porcelana pintada
à mão, com decorações de alto fogo, de base tradicional, dando continuidade à
cerâmica tradicional da região Porto-Gaia.
Estávamos no início do processo de integração de Portugal na, altura denominada, Comunidade Económica Europeia (CEE) com a perspetiva de que vinha perto o "tempo das vacas gordas" e isto poderia criar alguma apetência para outros valores além do utilitarismo.
A opção pela
porcelana teve em conta que o suporte matérico nas peças foi sempre, ao longo
do tempo, o melhor de que se dispunha, tendo em conta o conhecimento científico
e a disponibilidade de matérias primas. Desde os simples barros, tais quais
eram extraídos da natureza, nos primórdios da civilização, passando por barros
mais elaborados na idade média e por faianças na idade moderna, até que, no
final do século XX, com o domínio técnico existente, qualquer ideia de
qualidade na cerâmica doméstica e decorativa tem que utilizar a porcelana como
suporte matérico. A porosidade existente na faiança, por ex., além de ter
inconvenientes para a saúde quando em utilizações com alimentos, provoca o
aparecimento de fendilhado e delimita o seu campo de aplicação a ambientes não
muito húmidos nem com grandes amplitudes térmicas, assim como não resiste a
grandes solicitações mecânicas. A talhe de foice convém referir que a porcelana
é um material cerâmico, como a faiança, o barro cozido, o grés e até o vidro,
já que cerâmica é todo o produto que resulta da transformação irreversível de
matérias primas naturais por ação de calor.
A escolha da
decoração por debaixo do vidrado, sempre que possível, teve por base o
conhecimento existente da fragilidade das decorações por cima do vidrado,
nalgumas situações frequentes nos dias de hoje mas inexistentes no passado,
como por ex: máquinas de lavar louça, fornos micro-ondas, detergentes e
esfregões de alto teor abrasivo, etc, assim como o conhecimento dos
inconvenientes existentes para a saúde pelo contacto direto dos produtos
alimentares com os óxidos metálicos que compõem as tintas usadas nas
decorações. Excetua-se desta opção as decorações com ouro, já que não existe,
ainda, o conhecimento científico que permita cozer, por debaixo do vidrado da
porcelana, qualquer tipo de ouro, prata ou platina. Acresce a isto que as
decorações por debaixo do vidrado, denominadas de "grande fogo",
apresentam uma profundidade de leitura e um esbatimento de limites que as
tornam mais atraentes. A utilização do ouro nalgumas decorações insere-se na
lógica da tradição, já que o ouro representa, no final do século XX, um valor
cultural alargado e não só de elites como nos séculos passados. No entanto, já
no passado se verificaram aplicações de ouro o que mostra interesse na sua
utilização, mas o pouco conhecimento científico não permitia a sua utilização
com a qualidade e resistência que hoje se verifica.
O enveredar pelo caminho da cerâmica
tradicional teve a ver com o sentir de que as tradições são património que não
deve ser desperdiçado ou menosprezado. Antes pelo contrário, é dever de todos
honrar o legado dos antepassados e, neste campo, Portugal e, particularmente, a
região Porto-Gaia, com as suas mais de duas dezenas de fábricas, sem contar com
as fábricas de cerâmica de construção, somente nos séculos XVIII e XIX,
herdaram um valioso património cerâmico, com uma forte carga histórico-cultural
que será “criminoso” olvidar e não lhe dar continuidade.
A escolha da
pintura completamente à mão de todas as peças teve em vista, por um lado, a
valorização individual das peças e por outro a formação de recursos humanos de
elevada qualificação, que é um imperativo para quem, neste final do século XX,
pretende ser mais do que um elo numa cadeia despersonalizada.
Estas opções resultaram das trocas de impressões com o amigo e companheiro, Professor Escultor Laureano Ribatua, quando fazíamos as viagens conjuntas para dar apoio à Louça Regional de Viana do Castelo, e cuja dedicação à Cerâmica do Douro tem sido essencial para esta caminhada, tornando-o credor de respeito, simpatia e amizade que todos na Cerâmica do Douro sempre lhe dedicaram.
O arranque foi feito com as singularidades e características próprias. Definidos os integrantes do pacto social da Cerâmica do Douro, este seu fundador (com o apoio de sua mulher D. Maria de Lurdes) e a sua filha Dr.ª Ana Cristina Novais Almeida dos Santos Sousa, houve que traçar o quadro humano de partida, já que as opções de produto estavam feitas. Para a área fabril de olaria e pintura foi feito o desafio a uma, na altura, promissora aprendiz de pintura de Viana do Castelo, D. Glória Felgueiras. Desafio aceite, créditos confirmados, pilar construído. Para o gesso, e com a ajuda do amigo e colega Cruz dos Santos, foi integrado, inicialmente em part-time, o modelador Sr. Domingos Gouveia. Para a recolha e criação de modelos e decorações contamos com a preciosa colaboração da Sra. Professora Escultora Gabriela Couto. Estava definido o quadro de partida.
Paralelamente,
foi-se desenvolvendo o suporte económico-financeiro e escolha das
infra-estruturas produtivas. Enquanto este último aspeto foi facilmente
enquadrável, o apoio externo económico-financeiro foi difícil, dificuldade esta
que se tem refletido até aos dias de hoje.
Como fator base foi tido em conta que a região Porto - Gaia foi, até meados deste século, tradicionalmente rica em cerâmica doméstica e decorativa, tendo sido o rio Douro um importante apoio ao seu desenvolvimento.
Bastará lembrar as fábricas de
Massarelos, Miragaia, Cavaquinho, Santo António de Vale da Piedade, Devezas,
etc......, que desde o século XVIII mantiveram lugar destacado e cimeiro na
cerâmica decorativa portuguesa.
Infelizmente, nenhuma destas
unidades fabris sobreviveu, deixando em risco de extinção uma atividade de
características culturais bem marcantes e enraizadas nas tradições e história
desta região. A sua relevância mereceu a atenção de muitos estudiosos, de que o
trabalho de Pedro Vitorino “Cerâmica Portuense”, publicado em 1930, merece
particular destaque. Infelizmente, depois de 1930, raros são os trabalhos
sistemáticos sobre a cerâmica desta região, sendo, todavia, de destacar algumas
contribuições particulares que têm sido publicadas e que serão de grande
utilidade para o estudo exaustivo deste sector de atividade.
No entanto, a grande expressão,
deixada sob diversos valores, permite dar continuidade a esta tradição, já que
os valores estéticos subjacentes ao sector da cerâmica doméstica e decorativa
(forma e decoração) são bem claros naquilo que se pode chamar valores
identificativos: formas simples e funcionais decoradas com motivos expressivos
que coabitam com grandes espaços nus.
Importava, reavivar na memória
coletiva a noção da importância da cerâmica no contexto da região e do País. É
que ainda há cem anos este sector de atividade, com mais de vinte fábricas de
média e grande dimensão, representava a região como a mais importante do país.
Em cem anos, não só se perdeu a
noção da importância deste sector de atividade, com as suas características de
marcado cunho histórico-cultural, a que artistas tão bem conhecidos como
Teixeira Lopes e Soares dos Reis deram uma profunda colaboração, como se
esbateu e quase desapareceu a continuidade duma tradição, mesmo na componente
humana indispensável á sua continuação.
A iniciativa corporizada na
“Cerâmica do Douro” contem valores necessários ao reavivar das tradições
cerâmicas da região.
O cuidado na fidelidade à
continuidade, pelo que pressupõe de atualização, tendo em conta os novos
conhecimentos tecnológicos e a consideração dos valores culturais como
dinâmicos, garante que, se a comunidade assumir as responsabilidades de apoio e
acarinhamento, poderemos voltar a contar com uma riqueza de que a região se
orgulha.
A fábrica laborou normalmente
até 2002, ano em que requereu, no Tribunal do Comércio de V.N.Gaia um P.E.R.E.
(Procedimento Especial e Recuperação de Empresa), que foi aprovado pelos
credores mas não teve sequência por parte destes, pelo que foi suspensa a laboração.