domingo, 17 de dezembro de 2023

# Mudar Porto.6 – Refletir com o passado – Caminhar para o futuro

 # Mudar Porto.6 – Refletir com o passado – Caminhar para o futuro

1 - Direitos Humanos – Dignidade de ser pessoa


2 - Celebra-se, amanhã 10 de Dezembro, a proclamação, há 75 anos, pela Organização da Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).

Considerado o mais avançado referencial histórico para as relações entre as pessoas e a vida em sociedade, teve a sua origem como resposta à barbárie da II guerra mundial, para que não mais se repetissem as atrocidades cometidas, envolvendo na sua redação eminentes personalidades de profunda sensibilidade humanista.

E como estão a ser respeitados os princípios emanados dessa Declaração, neste final do ano de 2023?

3 - Passados 75 anos assiste-se a um esboroar dos princípios consignados na DUDH. As atrocidades da guerra que levou à construção da DUDH continuam espalhadas pelo mundo. O caso mais recente da Palestina é disso exemplo. Ódio, vingança, violência, abuso da superioridade bélica, desumanidade, passividade e conivência de muitos responsáveis políticos e de muita opinião pública pelo sofrimento dos povos. As vítimas do passado tornam-se, muitas vezes, os carrascos do presente.

4 - E temos, no presente, a situação na Palestina, na Ucrânia, no Iémen, no Curdistão, no Sara Ocidental, em Myanmar, na Síria, etc…, etc…, etc… . Em todos estes conflitos a DUDH está ausente. Os Estados representados na ONU que estão obrigados a respeitar aquilo a que se comprometeram, fazem disso letra morta, alimentando as máquinas de guerra causadoras de morte e sofrimento. Ainda recentemente, uma revista de economia aconselhava os investidores a aplicações financeiras em fundos de que fazem parte empresas de armamento. E os cidadãos mais abastados, cegos por ganharem mais euros para as férias de fim de ano ou para trocar de automóvel, dão instruções aos seus gestores da conta bancária para tais aplicações, sem consideração pela responsabilidade que assumem nas violações de direitos humanos que essas empresas de armas de guerra provocam e apoiando governos que pactuam com essas violações de direitos humanos.

5 - E que dizer do agravamento das desigualdades, do elevado nível de pobreza, dos sem abrigo, dos refugiados e migrantes, das novas formas de escravatura, da situação nas prisões,  etc…, etc…, etc… .

Passados 75 anos da proclamação da DUDH já quase ninguém fala nela. Têm visto alguma ênfase nas instituições políticas e nos órgãos de comunicação social perante uma efeméride – 75 anos - que tem, noutras situações, uma carga de grande simbolismo?

No mês passado estreou nos cinemas portugueses o último filme de Ken Loach com o título “The Old Oak”, no qual são retratados muitos dos problemas que afetam o mundo, em que é referida a expressão social bem conhecida: “Se os trabalhadores soubessem o poder que têm e o quisessem usar, então o mundo mudaria”. Quando será que os trabalhadores perdem o medo reclamando os direitos humanos, levantando-se com a tomada de consciência do seu poder e se unam para o utilizarem? 

Considerando os 23 anos deste século, assistimos a um retrocesso preocupante na observância do compromisso assumido há 75 anos.

6 - A jornalista Ana Sá Lopes no jornal Público de 29.10.2023 disse: “Já tinha havido a criminosa guerra do Iraque, as torturas de Guantánamo, a guerra do Afeganistão onde os Estados Unidos entregaram sem remorsos o poder aos taliban depois de todo o sangue derramado. O Ocidente tem um problema moral a resolver: a invocação permanente dos direitos humanos começa a ser conversa de chacha.”

Podemos aceitar que os direitos humanos sejam conversa de chacha? Podemos aceitar que esta sessão de Refletir com o Passado-Caminhar para o Futuro seja conversa de chacha? Podemos aceitar que os mais de 200 referenciais jurídicos das Nações Unidas derivados da DUDH sejam conversa de chacha? Podemos aceitar que os instrumentos de direito internacional humanitário sejam conversa de chacha?

7 - Podemos aceitar que a habitação pública em Portugal, que representa somente 2% do total de alojamentos, tenha objetivos muito longe da média da União Europeia que é superior a 14% com países a deterem valores da ordem dos 30 e 40%? Podemos aceitar que a renda média mensal de um T2 nesta cidade do Porto seja muito superior a € 1.000, valor inacessível a uma larga faixa da população? Podemos aceitar em Portugal um crescimento contínuo de pessoas sem abrigo, enquanto há 700.000 casas vazias? Podemos aceitar que as dificuldades económicas das pessoas levem às penhoras das suas casas, salários, pensões e aos despejos e à venda de crédito malparado a fundos abutre? Podemos aceitar que haja em Portugal mais de 4 milhões de trabalhadores e reformados a receberem menos de 800 euros mensais? Podemos aceitar que em Portugal haja mais de 70.000 jovens em acompanhamento nas CPCJs  e  mais de 3 milhões de diagnósticos de perturbações mentais em adultos e crianças? Podemos aceitar em ter uma situação nas prisões indigna e um elevado número de reclusos a quem são negados direitos elementares (Portugal tem o maior tempo médio de cumprimento de pena da União Europeia)? Podemos aceitar ter prisões opacas, medonhas, arcaicas, violentas, medievais, ineficazes, desumanas, violentas e dispendiosas? Podemos aceitar que o Governo cultive a opacidade e não divulgue os relatórios sobre o que se passa no interior das prisões que, nos últimos 50 anos, passou de 3.000 presos para mais de 12.000 e ainda mais de 30.000 em cumprimento de penas e medidas na comunidade? Podemos aceitar que a chaga social das dependências não tenha uma outra visão humanista, promovendo a sua prevenção e o enquadramento legal dos seus fatores como se fez com o tabaco e o álcool, em substituição da repressão e punição? Podemos aceitar que a pobreza ocupe um espaço residual nos órgãos de comunicação social? Podemos aceitar que na era das tecnologias de informação e comunicação os sites das autarquias não contenham uma completa radiografia da sua situação económico-social?

8 - Se sim, se podemos aceitar, então aceitamos que vigore a lei do mais forte, do mais rico e do mais poderoso. Se sim, então aceitamos o regresso do poder das armas, do genocídio, da escravatura e de todos os modelos de exploração da pessoa humana. Se sim, aceitamos um modelo de sociedade desumana, policial, repressiva e punitiva. Se sim, aceitamos a opacidade e a lei da selva a nortear as relações entre as pessoas, o que se traduz num grave retrocesso civilizacional, tornando-se necessária uma nova ordem política, económica, social e cultural. Eu não estarei nessa corrente de aceitação. Eu estarei na corrente que Manuel Alegre nos deixou no poema “Trova do Vento que Passa”:

9 - “Mesmo na noite mais triste, em tempo de servidão, há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não.”.

Porto, 09/12/2023