Respeito todas as opiniões, quer as resultantes de vivência direta dos acontecimentos, quer de quem tem deles conhecimento pelos relatos históricos.
Quer uns, quer outros
têm de ter em conta que a verdade completa é muito difícil de apreender. Para
os que vivenciaram pessoalmente os acontecimentos, temos de ter em conta a imagem bem conhecida
das pessoas que olham para outra pessoa que aponta para a lua. Umas vêm só o
dedo, outras vêm só a lua. Umas vêm o dedo e a mão, outras vêm só a lua e
algumas estrelas à volta. Ninguém consegue ver tudo: o dedo, a mão, a pessoa
que aponta, a lua e todas as estrelas do céu, apesar de estarem presentes. Outros leram a história contada por um historiador, outros leram a história
contada por historiadores da sua simpatia, outros ouviram a história contada só
por quem viu o dedo ou a lua. Ninguém leu todos os historiadores nem ouviu
todos os que vivenciaram o acontecimento.
Eu vivenciei o 25 de
abril como adulto com 28 anos, depois de cumprir o serviço militar com uma comissão
de serviço no ultramar.
Obviamente que a
minha postura crítica relativamente ao regime deposto influencia o relato da
minha vivência. E qual foi?
O 25 de abril foi uma
revolução de rutura com o regime vigente. Como é do conhecimento público, o ponto de partida começou por ser o descontentamento de uma parte dos oficiais das forças armadas com a evolução na sua
carreira. Não era a guerra nas colónias (muitos capitães e os outros oficiais
superiores não participavam diretamente nos atos de guerra, ficando nos
quartéis, já que as ações no teatro de operações só envolviam, soldados,
sargentos e oficiais até à patente de capitão). Este descontentamento
de natureza corporativa, como não foi resolvido pelo poder político, levou a
que outras razões de natureza política se associassem à razão corporativa.
O plano do 25 de Abril também é conhecido. Não tinha
previsto a participação de civis, pelo que os primeiros comunicados dos
revoltosos pedia aos civis para ficarem em casa, de forma a que fosse
concretizado o golpe apenas pela via militar. Não é por acaso que a junta de
salvação nacional nomeada em 25 de abril tem, apenas, militares, na sua composição.
Só que, logo ao início da manhã, o povo de Lisboa, tendo
tomado conhecimento, pela rádio, da operação militar, não obedeceu à ordem dos
revoltosos para ficar em casa e saiu em grande número para a rua em apoio ao
derrube do governo. E isto influenciou fortemente todo o processo seguinte ((o
resto do país começou o dia normalmente apenas indo estando atento ao que se
passava em Lisboa). A importância do
povo foi decisiva em toda a operação de derrube das instituições vigentes e
apanhou desprevenida a liderança das operações militares, que desencadeou a
maioria das ações programadas sempre com a companhia de populares. Como declarou
o primeiro ministro derrubado, Marcelo Caetano, quando se rendeu no Quartel do Carmo “o poder caiu na rua”.
Nessa noite a Junta de Salvação Nacional falou ao país,
anunciando o derrube do governo, mas não mencionou qualquer objetivo
programático específico, além das generalidades das revoluções, nomeadamente o
processo relacionado com a guerra no ultramar (esta guerra era do interesse dos
oficiais superiores, já que lhes proporcionava remunerações com acréscimo
significativo, sem qualquer risco de vida e permitia a antecipação da passagem à
reserva com a consequente acumulação da remuneração com a de outras atividades
que viessem a desenvolver – as comissões de serviço no ultramar eram majoradas na contagem para o tempo de serviço).
Só que o povo não se limitou a vir para a rua no dia 25 de
abril. De imediato exigiu melhores condições de vida, além da liberdade que foi
conquistada. E continuou nos meses seguintes a vir para a rua quando as suas reivindicações não eram atendidas. E uma
dessas reivindicações foi a de terminar a guerra no ultramar, que afetava
sobremaneira as famílias populares, pelo que o novo poder político teve de
considerar esta questão com urgência, o que foi reforçado com as posições dos
líderes políticos do PS e do PCP entretanto regressados do exílio.
Nas primeiras comemorações do 1º de Maio, seis dias após o
25 de Abril, já as reivindicações populares é que lideravam as decisões do novo
poder político, o que teve continuidade nos meses seguintes. Tal foi reforçado
pela divulgação dessas reivindicações pelos órgãos de comunicação social, que
andaram a reboque da pressão das massas populares.
Com o decorrer do tempo, e a implementação permanente dessas
reivindicações, começaram a surgir movimentos de contestação a tal política,
que tiveram concretização nos acontecimentos do 28 de setembro de 1974, 11 de
março de 1975 e 25 de novembro de 1975. Mas nenhum destes acontecimentos teve importância
que pusesse em causa o 25 de abril. A revolução do 25 de Abril alterou profundamente o regime
político. Os outros acontecimentos foram acidentes de percurso, que produziram, no
seu tempo, alterações na vida do país mas nada comparáveis com as operadas no 25 de abril.
A partir do 25 de novembro, quer a com alteração da correlação
de forças no Conselho da Revolução, quer com o decorrer dos trabalhos na Assembleia
da República de preparação da nova constituição, começou a desmobilização da
participação popular nas mudanças, passando a liderança das instituições políticas
a determinar o rumo da vida no País.
Em síntese, aqui deixo mais um contributo para a história do
25 de Abril, a acrescentar a outros que já dei a conhecer e a outros que ainda
estão na minha memória. Como o vivi em pessoa, poderia estar horas a fio a
contar o que foi essa minha vivência. E é o conjunto das vivências de todos
aqueles que participaram nos acontecimentos que tem de ser tido em conta por
quem quer conhecer a verdade sobre o 25 de abril e todo o processo
revolucionário subsequente.
Os historiadores são importantes para dar a conhecer as
situações históricas a quem as não viveu diretamente. E quem quiser conhecer
essas situações de forma mais completa tem de ler vários historiadores, de
tendências políticas diversificadas e não apenas aqueles que são da corrente política da sua simpatia.
É legítimo que todas as pessoas tenham simpatias políticas
mas é desejável que conheçam os fundamentos das outras correntes políticas.
Participo, todos os anos, nas comemorações populares do 25 de
abril. Ainda ontem estive na Avenida dos Aliados, no Porto, o que faço desde há 47 anos.
Os ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, tiveram, no 25 de abril de
1974, a abertura da possibilidade de serem defendidos sem perseguição. Que tal
possa continuar a ser para bem do futuro das minhas filhas, dos meus netos e de
todas as pessoas que nesses ideais se querem abrigar.