quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Prémio Direitos Humanos 2018 - Intervenção na Assembleia da República


 Obra  Vicentina  de  Auxílio  aos  Reclusos – O.V.A.R.
                  Rua de Santa Catarina, 769 - 4000-454  Porto -  Tel./Fax 222006255 – o.v.a.r.reclusos@gmail.com
   Internet: http://ovarprisoes.wix.com/ovar   -   Facebook: https://www.facebook.com/ovarprisoes/

                                               “Quem nunca errou que atire a primeira pedra” (Jo 8,7)



Excelentíssimo Senhor Dr. Ferro Rodrigues
Digníssimo Presidente da Assembleia da República
Excelentíssimas entidades convidadas
Senhoras e senhores deputados
Caras e caros, reclusas, reclusos e ex-reclusos;
Vicentinas e vicentinos da Sociedade de S. Vicente de Paulo
Minhas senhoras e meus senhores

A gratidão é um dos princípios subjacentes ao reconhecimento pela atribuição de distinções, nomeadamente quando se trata de elevados valores humanos. Neste sentido, estamos muito gratos com a atribuição do Prémio Direitos Humanos 2018, pela Assembleia da República, reconhecendo a nossa contribuição para a humanização do sistema prisional e a reinserção dos reclusos, partilhando esta distinção com todos os que são sensíveis ao respeito pelos direitos humanos.
A O.V.A.R.- Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, integrando o Conselho Central do Porto da Sociedade de S. Vicente de Paulo, exerce a sua missão, tendo em conta o legado de S. Vicente de Paulo e a exortação do seu fundador, Beato Frederic Ozanam, de quem herdamos o lema “Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas”.
Numa visão humanista sobre o sistema prisional, constatamos que há um grande trabalho por fazer. A existência de situações ao arrepio dos valores civilizacionais constantes dos referenciais universalmente aceites, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de que comemoramos hoje o seu 70º aniversário, exige de nós um esforço acrescido para a sua superação.

Por exemplo, continuamos a não ter a garantia do direito generalizado à própria defesa violando o artº 14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é Estado-Parte. Assiste-se ao desrespeito do espírito da Constituição da República Portuguesa e do Código Penal, com a permissão de que o tempo consecutivo de permanência na prisão exceda 25 anos, nos casos das penas sucessivas e das medidas de segurança, configurando a prisão perpétua constitucionalmente proibida. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da média da U.E.). Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos, infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade. Mantem-se a fragilidade do apoio judiciário, situação agravada com a impossibilidade do direito à própria defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal situação. Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos, violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência. Por outro lado, o passo positivo dado, há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia não punitiva mais alargada, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera e negativa, ao invés de encarar a realidade enquadrando legalmente a sua produção e comercialização e dinamizando uma política de sensibilização para as consequências da dependência (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool que podem servir de guia para uma nova política sobre as drogas), sendo as drogas, juntamente com a pobreza, autênticas chagas e as principais responsáveis no abrir do caminho para as prisões. As limitações às comunicações telefónicas, às visitas familiares e à assistência espiritual e religiosa, agravam as dificuldades para a reinserção social e à manutenção dos laços afetivos. A dinâmica de reinserção social nas prisões é claramente insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades, quer de algumas ONGs. O trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a trabalho escravo. A aposta numa dinâmica da educação ressente-se da inacessibilidade às TIC e da falta de meios, quer materiais, quer de recursos humanos, carências estas extensivas a muitas outras áreas das prisões. A alimentação e os serviços de saúde são manifestamente  pobres  e  insuficientes.  Há uma  aceitação  acrítica  sobre  a  vivência  de  bebés  no  interior das prisões acompanhando o cumprimento de penas de suas mães. E poderia continuar a acrescentar outras situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. O Estado de Direito não pode ficar à porta das prisões.
  
As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas, apoiando-se numa parte da opinião pública que apela à vingança, à repressão, ao terror e ao medo, apesar das medidas e dos esforços que são feitos. As prisões não reinserem, têm pouco efeito dissuasório e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem uma dimensão elevada em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa, desviando o foco do criminoso para a prevenção do crime e reparação dos seus danos. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada. Por outro lado, a educação para a cidadania, como base para a prevenção da prática de atos anti-sociais, tem de ter lugar relevante e transversal numa sociedade sem vítimas nem criminosos.
O actual sistema prisional e de justiça é aterrador, frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os arguidos e os reclusos mais frágeis, secundarizando a equidade como valor relevante. As cerca de 70.000 crianças e jovens que anualmente são acompanhadas nas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens estão a constituir uma grande fonte para o elevado número da população prisional. Ainda, em Junho do corrente ano, a Provedora de Justiça declarou que a realidade nas prisões portuguesas é chocante. Um ex-ministro da Justiça, Dr. Alberto Martins, admitiu, num debate, que se há inferno neste modelo de sociedade ele está nas prisões. O Diretor Geral da Reinserção e Serviços Prisionais, Dr. Celso Manata, quando questionado sobre a situação nas prisões lembrou, na audição parlamentar em Maio deste ano, que foi enviado para a Assembleia da República o documento sobre os investimentos prioritários nas prisões para os próximos anos, aguardando-se a concretização do programa subjacente.
Portugal é dos países que mais tratados, convenções e protocolos de direitos humanos tem assinado e ratificado e ainda bem que é assim. Estes referenciais não são só meros documentos indicativos. São normativos jurídicos e, portanto, têm de ser cumpridos. 
Chegados a 2018, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas, enquanto não se acabar com as prisões. A alteração profunda da legislação penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes, esperando-se que haja sensibilidade política para a sua realização.
Temos de centrar a atenção nas implicações concretas das prisões na vida dos reclusos, nas suas famílias, nas vítimas dos crimes e na ineficácia no ressarcimento dos danos provocados pelo crime. Fiódor Dostoiévsky constatou que “O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente”. Ora, os doentes precisam de ajuda para o tratamento e não de serem encerrados em prisões. O Papa Francisco, na visita ao campo de concentração de Auschvitz, alertou para a desumanidade com que vivem os encarcerados de hoje, não podendo serem as prisões a Auschvitz do nosso tempo.
Concluindo, o que estamos aqui a dizer temo-lo vindo a declarar desde há muitos anos, na linha do que fazem várias ONGs, os Comités sobre a Tortura do Conselho da Europa e das Nações Unidas e a Provedoria de Justiça através do Mecanismo Nacional para a Prevenção da Tortura, ainda que esta estrutura tenha um funcionamento a carecer de revisão. Como instituição cristã revemo-nos em Jesus Cristo que, também, foi preso, torturado e cruxificado. O nosso patrono é S. Dimas, o bom ladrão cruxificado ao lado de Jesus Cristo. Temos de ter presente que Deus condena o pecado mas perdoa e recupera o pecador. O exercício do nosso voluntariado acresce-nos mais obrigações de cada vez que entramos numa prisão, já que, por muito que façamos, saímos sempre mais ricos com a experiência humanista obtida nos contactos dentro das prisões. Ganhamos mais do que o que damos o que nos obriga, moralmente, a um maior empenhamento, dando de nós sem pensar em nós, dando com uma mão sem que a outra mão veja. No próximo ano esta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos perfaz cinquenta anos na sua missão. A experiência obtida aponta no sentido duma dinâmica de abolição das prisões, duma sociedade mais fraterna e solidária, em que o ódio, a vingança e o crime não tenham lugar. Será uma utopia? A resposta pode ser dada recuperando e adaptando a expressão do falecido Dr. António Arnaut, que foi deputado nesta Assembleia da República: “Utopia? Talvez. Mas utopia (…) não é o impossível. É o lugar do encontro. E esse lugar está dentro de nós”.
Nos grandes valores civilizacionais que devem nortear as relações entre todas as pessoas, incluindo na justiça e nas prisões, tem de estar o lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, de apelo ao perdão e misericórdia, extraído do evangelho segundo S. João:
“Quem nunca errou que atire a primeira pedra”.

Muito obrigado
10/12/2018 – Manuel Hipólito Almeida dos Santos – Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos

domingo, 16 de setembro de 2018

Contributo para as relações entre a Maçonaria e a Igreja Católica



Contributo para as relações entre a Maçonaria e a Igreja Católica

Em tempo de aproximação ao equinócio de outono, passando-se a assistir, durante os próximos seis meses, no hemisfério norte, à predominância da duração da noite sobre o dia, é oportuno acrescentar luz a um tema que alguns teimam em manter em conflito, agarrados a comportamentos de séculos, ignorando os caminhos que se têm vindo a abrir, acabando definitivamente com a cegueira que impede de ver que a paz e a tolerância são desejos maiores da humanidade.   
De tempos a tempos, vêm a público tomadas de posição relativamente à pertença simultânea à Maçonaria e à Igreja Católica, quer defendendo à liberdade de participação em ambas as instituições, quer considerando a impossibilidade de tal participação simultânea.
Sou de opinião que esta questão tem, actualmente, um enquadramento claro e uma leitura que deve nortear o relacionamento entre as duas instituições. Tal assenta nos referenciais jurídicos em vigor e em orientações políticas dos seus máximos dirigentes.
Para a Maçonaria, as Constituições de Anderson de 1723, são claras na definição da postura que os maçons devem ter para com as religiões. 
“I – O que se refere a Deus e à Religião
O maçon está obrigado, por vocação, a praticar a moral; e se compreender seus deveres, nunca se converterá num ateu estúpido nem num libertino irreligioso. Apesar de nos tempos antigos os maçons estarem obrigados a praticar a religião que se observava nos países em que habitavam, hoje crê-se mais conveniente não lhes impor outra religião senão aquela que todos os homens aceitam e dar-lhes completa liberdade com referência às suas opiniões particulares. Esta religião consiste em serem homens bons e leais, quer dizer, homens honrados e justos, seja qual for a diferença de nome ou de convicções. Deste modo a Maçonaria se converterá num centro de união e é o meio de estabelecer relações amistosas entre pessoas que, fora dela, teriam permanecido separadas (ou não se conheceriam). (…)”

Também, a Constituição do Grande Oriente Lusitano expressa:
“Título I – Da Maçonaria e Seus Princípios
Artigo 1º
A Maçonaria é uma Ordem universal, filosófica e progressista, fundada na Tradição iniciática, obedecendo aos princípios da Fraternidade e da Tolerância e constituindo uma aliança de homens livres e de bons costumes, de todas as raças, nacionalidades e crenças.
Artigo 2º
A forma da Maçonaria é ritualista.
Artigo 3º
A maçonaria tem por fim a aperfeiçoamento da Humanidade através da elevação moral e espiritual do indivíduo. Não aceita dogmas e combate todas as formas de opressão sobre o homem, luta contra o terror, a miséria, o sectarismo e a ignorância, combate a corrupção e enaltece o mérito.
Artigo 4º
A Maçonaria procura a conciliação dos conflitos, unindo os homens na prática de uma Moral Universal, no respeito da personalidade de cada um, condena as regalias injustas.
Artigo 5º
A Maçonaria adota como divisa a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade e como lema a Justiça, a Verdade, a Honra e o Progresso.
Artigo 6º
A Maçonaria considera o Trabalho um direito e um dever essencial do Homem, honrando igualmente o trabalho intelectual e o trabalho manual.
Artigo 7º
Os Maçons reconhecem-se como irmãos e obrigam-se a uma permanente ajuda e assistência mútua. Exige-se-lhes o máximo altruísmo, o sacrifício de quaisquer interesses ao bem-estar dos seus semelhantes e a propaganda pelo exemplo, sob reserva da observância do sigilo maçónico.
Artigo 8º
Os Maçons, recusando-se a assumir nessa qualidade quaisquer posições de natureza partidária, integram-se no espírito das Constituições de Anderson e respeitam as leis e as autoridades legítimas do país onde vivem e livremente se reúnem.” (…)

Destes dois referenciais ressalta, com clareza o propósito da Maçonaria e a sua aceitação de todas as crenças e não crenças. A Maçonaria assenta em princípios humanitários, filosóficos e de moral. Tem como base a tolerância e releva a justiça e o espírito de entreajuda, auxiliando os necessitados e promovendo o amor ao próximo. A Maçonaria dá liberdade a todos os seus membros pela escolha e a responsabilidade da expressão de opiniões religiosas e pratica um respeito absoluto para todas as religiões e crenças, ou não crenças. Mantém-se equidistante das diferentes correntes políticas e exorta os seus membros para o cumprimento dos deveres de lealdade cívica.
Ao longo de sua história, e até tempos recentes, a Igreja Católica condenou e desaconselhou aos seus fiéis a pertença a associações que se declaravam ateias e contra a religião, ou que poderiam colocar em perigo a fé. Entre essas associações encontrava-se a Maçonaria. A Igreja Católica manteve, até ao Concílio Vaticano II, esta posição de afastamento de outras crenças e instituições de natureza espiritual ou ateia, tendo tais posições começado a ser matizadas pelo Papa João XXIII e no Concílio Vaticano II. Essas posições tinham expressão concreta no Código de Direito Canónico de 1917, cujo cânone 2335 postulava: «Quem se inscreve na seita maçónica ou noutras associações do mesmo género que tramam contra a Igreja ou as legítimas autoridades civis, incorre “ipso facto” na excomunhão reservada “simpliciter” à Santa Sé.»
A dinâmica do Concílio Vaticano II teve tradução na abertura ao diálogo ecuménico e com instituições até aí proscritas, tendo o Código de Direito Canónico promulgado pelo Papa João Paulo II em 25 de janeiro de 1983, estatuído no cânone 1374, que: "Quem ingressa numa associação que maquina contra a Igreja deve ser castigado com uma pena justa; quem promove ou dirige essa associação deve ser castigado com interdito". Esta nova redação apresenta duas novidades em relação ao Código de 1917: a pena não é especificamente definida e não é mencionada expressamente a Maçonaria como associação que conspire contra a Igreja. Esta retirada da referência à Maçonaria do referencial jurídico máximo da Igreja Católica tem de ser lida como reconhecimento específico de que não há justificação para a sua menção.
Logo, para que seja aplicada uma pena justa (ex: excomunhão era uma das penas aplicáveis pelo código anterior a 1983) é preciso que se prove que uma pessoa ou associação maquina contra a Igreja. Depois de 1983 não se conhece a aplicação de qualquer pena a maçons, ao abrigo deste cânone.

Esta nova postura da Igreja Católica, consagrada no seu máximo referencial jurídico que é o Código de Direito Canónico, independentemente de posições pessoais e de cartas apostólicas avulsas que valem como opinião e não como norma jurídica que se sobreponha ao Código, tem tido expressão concreta num sem número de acções e manifestações que constroem este novo rumo. É certo que, também, continuam a ver-se posições, cada vez mais isoladas, de quem quer continuar agarrado ao passado e que, na verdade, ainda vão destabilizando a marcha do progresso. Mas esta marcha tem contado com um apreciável apoio que denota o caminho do futuro.
Entre as acções e posições públicas, podemos destacar algumas realizadas na região do Porto, onde resido, nomeadamente as iniciativas apoiadas pela Universidade Católica do Porto, onde se tem destacado como personalidade de relevo o Pe. Arnaldo Pinho, assim como as declarações de bispos, cardeais e outras figuras eminentes da Igreja Católica, sendo o Papa Francisco um grande paladino da abertura da Igreja a toda a sociedade. Das iniciativas da Universidade Católica do Porto teve particular destaque a semana de estudos organizada pela sua Faculdade de Teologia, em Fevereiro de 1994, onde esteve em análise o tema “Maçonaria, Igreja e Liberalismo”. Nela participaram vários académicos, leigos e sacerdotes, tendo o Bispo do Porto da altura, D. Júlio Tavares Rebimbas, expressado: (…) .“Não estamos inocentemente aqui a abordar problemas fáceis de Maçonaria, Igreja e Liberalismo, cuja vastidão e complexidade é evidente e com tempos diversos de expressão e altos e baixos de relação. Mas somos a mesma humanidade, as mesmas pessoas, a mesma paz e a mesma guerra. Estamos civilizadamente à procura do que nos une, desfazendo principalmente aquelas coisas que costumamos engendrar, e que são quase de relações humanas, e temos tendências de dogmatizar. O que cria paredes difíceis de vencer, obstáculos multiplicadores de inviabilidades. Não estamos aqui para converter maçons, nem para laicizar cristãos, nem para aclarar tudo que é problemática séria do liberalismo. Mas, também, não estamos aqui para quatro dias de inutilidades, mais ou menos brilhantes. Estamos aqui nos caminhos da procura da verdade que todos têm. Porque a verdade total será noutra instância, é noutra onda e mesmo assim leva muito tempo para chegar lá.”
Um outro interveniente nesta semana de estudos, Pedro Alvarez Lázaro, Professor da Universidade Pontifícia de Comillas, constatou: “Poucas instituições despertaram tanta curiosidade ao longo do tempo como a ordem francmasónica, mas, por sua vez, poucas têm sido tão historiograficamente maltratadas.” Por sua vez, o Pe. Arnaldo Pinho, na altura director da Faculdade de Teologia da Universidade Católica do Porto, na introdução ao livro “Igreja e Maçonaria – Textos para um diálogo” (que dedica “À memória do Prof. Embaixador José Augusto Seabra, saudoso amigo, católico e mação” e “Ao prezado amigo, Dr. António Arnaut, ex-Grão Mestre da Maçonaria e homem de boa vontade”), refere: “(…) O choque da nova mundividência para a fé foi indiscutível. Perdidos os absolutos religiosos como fundamento, segundo a palavra de Gusdorf, a subjectividade avançou para novos campos e a ciência, em grande parte no século XIX, foi sinónimo do triunfo da razão, contra a tutela da Revelação, ou como se dizia dos “dogmas”. O enfrentamento entre a Apologética e o Racionalismo, que hoje aparecem como alternativas abstractas, gerou polémicas gloriosas, mas vistas hoje, simplesmente confrangedoras. (…) A sabedoria parece pois ter tomado o seu lugar. Faltaria ainda, (…), a fraternidade, reveladora da unidade na totalidade. Sem irmos até ao fim, seria muito esperar da simples inteligência, aberta à revisão do passado, que se deixasse de vez de brandir palavras últimas? – Porto Março de 2012”      
Dos muitos outros eventos sobre as relações entre a Maçonaria e a Igreja Católica, pode-se referir o Colóquio Internacional – Gnose e Gnosticismo – Genealogias, Emergências», Porto, 14 e 15 de Novembro de 2008, realizado no Ateneu Comercial do Porto, que teve como promotores o Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) o Centro de Estudos do Pensamento Português da Universidade Católica do Porto, o Grande Oriente Lusitano – Maçonaria Portuguesa (GOL) e o Instituto Onvestigación sobre Liberalismo Krausismo y Masonería, da Universidade Pontifícia de Comillas – Madrid, onde personalidades destacadas da Maçonaria e da Igreja Católica intervieram reforçando pontes de aproximação em construção.
Também, em 25 de Abril de 2018, a loja Estrela do Norte do Grande Oriente Lusitano, promoveu uma conferência, no Porto, subordinada ao título “ A Fraternidade na Europa das Religiões do séc XXI” em que, além do  Sheik David Munir,  Imã da Mesquita Central de Lisboa,  e do Rabino Elisha Salas , Rabino da Comunidade de Belmonte,  participou, também, o Padre Jorge Duarte, Pároco de Mafamude, Assistente Religioso do Centro de Produção do Porto da Rádio Renascença e Director do Secretariado Diocesano das Comunicações Sociais, tendo ficado patente a inexistência de quaisquer obstáculos a colaboração fraterna das organizações presentes. 

Uma outra entidade do topo da hierarquia da Igreja Católica, o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura no Vaticano, manifestou-se nos seguintes termos (In "Il Sole 24 Ore", 14.2.2016): “Igreja e maçonaria: O diálogo para além da incompatibilidade - «Caros irmãos maçónicos» - (…) Deve-se, além disso, superar a atitude de certos ambientes integralistas católicos que – para atingirem alguns expoentes inclusive hierárquicos da Igreja que a eles desagradam – recorrem à arma da acusação apodítica de uma sua pertença maçónica. Em conclusão, como escreviam já os bispos da Alemanha, é preciso ir além da hostilidade, ultrajes, preconceitos recíprocos, porque em relação aos séculos passados melhoraram e mudaram o tom, o nível e o modo de manifestar as diferenças que ainda continuam a existir claramente.”

Que há diferenças entre a Igreja Católica e a maçonaria ninguém contesta. Ainda bem que as há, senão não se tratariam de duas entidades distintas. Aliás, mesmo dentro da Igreja Católica há estruturas com tal diversidade filosófica e comportamental que os certos ambientes integralistas católicos, se calhar, olham de lado para aqueles que não são os que onde estão inseridos.  Basta considerar os exemplos da Opus Dei, do Movimento “Nós Somos Igreja”, da Sociedade de S. Vicente de Paulo, da Fraternidade S.Pio X, da Companhia de Jesus (Jesuítas), etc…, para vermos a heterogeneidade reinante no seio da Igreja Católica.
Mas estas diferenças não têm sido obstáculo ao aprofundamento das pontes entre todos. Neste sentido, merece particular realce a iniciativa “Átrio dos Gentios” fórum de iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura do Vaticano, iniciado em 2012, que promove o diálogo entre cristãos e não-crentes em áreas de interesse comum a ambos os grupos. Foi idealizado pelo Papa Bento XVI com o objetivo de estreitar os espaços entre pessoas de diferentes culturas e promover, através do diálogo, experiências conjuntas no intuito de responder às questões do tempo actual.
O actual Papa Francisco tem tido, desde que assumiu as funções de responsável máximo da Igreja Católica, posições muito claras de abertura a todas as instituições e pessoas religiosas e não religiosas. Foi muito notada a sua ênfase do sentimento popular de que mais vale ser ateu do que católico hipócrita, declarada na missa celebrada a 23 de fevereiro de 2017, em Santa Marta.
Esta abertura do Papa Francisco motivou que o Sereníssimo Grande Mestre da Grande Loja da Itália U.m.s.o.i. (Unione Massonica Stretta Osservanza Iniziatica), Gian Franco Pilloni, lhe tenha dirigido uma carta em Outubro de 2013 em que declara: (…)Com extrema comoção e infinita alegria, me dirijo a Vossa Santidade, para fazer um humilde pedido com o fim de que se trabalhe para pôr fim às divisões que atingem as relações entre a Igreja Católica e a Maçonaria, com a esperança de que finalmente possa reinar a justa serenidade entre as duas partes, colocando fim às divergências que ainda hoje elevam um muro entre as relações.(...) Não somos um componente adversário da Igreja Católica por Vós dignamente representada, mas antes, pelo contrário, as nossas estradas são paralelas, de facto, e pensamos como Vós quanto à totalidade dos problemas que afligem a sociedade contemporânea. Como Vós, nós trabalhamos para um mundo de paz e pelo respeito ao ser humano sem distinção alguma e pelo respeito absoluto por todas as religiões”. (…)
Que a Maçonaria e a Igreja Católica têm um passado de graves erros é um facto insofismável. Basta lembrar o anti-clericalismo e os ataques à Igreja Católica por parte da Maçonaria, nos finais do século XIX e início do século XX, assim como o passado de passividade do Vaticano, e da maioria da hierarquia da Igreja Católica, perante certos regimes ditatoriais, nomeadamente  a  operação Condor em países da América latina (Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Brasil), para não falar da tenebrosa Inquisição e do papel dúbio na II guerra mundial. Que há maçons e crentes que se comportam ao arrepio dos valores das instituições a que pertencem é um facto indesmentível, mas tais comportamentos não podem conotar as instituições no seu todo nem os seus restantes membros. O perdão, a misericórdia e a redenção, pilares da Igreja Católica, assim como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, que são a divisa da Maçonaria, têm de continuar a ser a via para se lidar com as imperfeições do ser humano.   
Em conclusão: o direito à opinião é livre e deve ser, salutarmente, respeitado. As opiniões que continuam a defender a impossibilidade de pertença simultânea à Maçonaria e à Igreja Católica são, a meu ver, uma visão desactualizada do actual quadro normativo-jurídico e da dinâmica em curso visando a eliminação dos constrangimentos à liberdade de associação e pertença às mais variadas instituições. Mas são opiniões que têm de ser confrontadas com a nova realidade e com os novos ventos da história. É cada vez maior o número de crentes que ingressam nos quadros da Maçonaria, assim como se nota um considerável número de não crentes que se convertem em crentes, sem se desvincularem das entidades donde provêem, pois não encontram incompatibilidades mas, sim, complementaridades, já que, em consciência, assim o entendem. Antero de Quental, maçon e de educação católica, no seu poema “A Ideia” proclama: (…) A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência; Só se revela aos homens e às nações; No céu incorruptível da Consciência!”
Desejamos (Deus queira) que todas as confissões religiosas, de que a Igreja Católica é parte, e todas as obediências maçónicas continuem, em consciência, a trilhar a via que leva à convivência pacífica e ao respeito mútuo, sem exclusões nem excomunhões.
Que a luz triunfe sobre as trevas!









sábado, 18 de agosto de 2018

A Romaria da Sra. D'Agonia e o fundamentalismo da proibição


É madrugada de Sábado, 18 de Agosto de 2018, e o arraial da Romaria da Sra. d’Agonia em Viana do Castelo ainda tem foliões, depois de vivido o primeiro dia das festas deste ano. Participei em vários dos seus eventos e, mais uma vez, se confirmou que esta romaria não tem igual. Pela sua dimensão religiosa e profana, nas mais variadas vertentes culturais e recreativas, com as suas procissões, concertos com bandas e filarmónicas, espectáculos folclóricos, gigantones e cabeçudos, bombos e tambores, desfiles e cortejos, movimentando milhares de figurantes envergando os seus trajes típicos de cor e alegria. A participação popular é dum carácter genuíno e entusiasta, com crianças e adultos, novos e velhos, dando-se à festa, de forma espontânea e desinibida. São milhares e milhares de pessoas que enchem a cidade, as suas lojas, os seus restaurantes, as suas ruas, denotando uma alegria, um sentido fraterno e uma jovialidade sem par. E é ver como as suas gentes adotaram, entusiasticamente, o fado cantado pela Amália Rodrigues, com poema de Pedro Homem de Melo:

“Havemos de ir a Viana     
Entre sombras misteriosas
Em rompendo ao longe estrelas
Trocaremos nossas rosas
Para depois esquecê-las
Se o meu sangue não me engana
Como engana a fantasia
Havemos de ir a Viana
Ó meu amor de algum dia
Ó meu amor de algum dia
Havemos de ir a Viana
Se o meu sangue não me engana
Havemos de ir a Viana
Partamos de flor ao peito
Que o amor é como o vento
Quem pára perde-lhe o jeito
E morre a todo o momento
Se o meu sangue não me engana
Como engana a fantasia
Havemos de ir a Viana
Ó meu amor de algum dia”

É de realçar o envolvimento da autarquia no engrandecimento da romaria. Além da participação na organização, notei um facto invulgar que foi o de isentar de pagamento o parque de estacionamento do Campo da Agonia durante todos os dias dos festejos, onde cabem mais de um milhar de viaturas, quando poderiam arrecadar grossa maquia face à multidão que invade a cidade. É uma atitude de desprendimento e de bem receber os forasteiros que cai bem e denota um espírito de servir pouco vulgar nos dias de hoje.
Durante o dia tomou-se conhecimento de que o governo português proibiu, a partir de hoje, todo e qualquer tipo de fogo de artifício, alegando eventuais contributos para incêndios florestais, o que afeta parte importante do programa das festas em Viana do Castelo. Felizmente e rapidamente, a vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Viana do Castelo, Dra. Maria José Guerreiro, tomou a decisão de antecipar meia hora o fogo previsto para a meia noite, ultrapassando, sabiamente a decisão do governo, deixando a realização dos fogos de artifício dos dias seguintes para posterior decisão. Oxalá seja tomada a decisão de não respeitar uma medida tão desastrada e fundamentalista, pois quem conhece o tipo de fogos em questão e os locais onde são lançados não tem quaisquer dúvidas sobre o seu nulo contributo para qualquer incêndio florestal. Senhora  vereadora, coragem! Uma proibição deste tipo não pode ser respeitada. Estarei consigo na partilha de todas as consequências que possam advir da sua atitude de desrespeito. São fundamentalismos  estes que desacreditam os políticos, já que optam por medidas fáceis e alarmistas, como seja o proibir, ao invés duma política nacional de dinâmica pedagógica, cívica, competente e de respeito pela natureza. Mas, para isto, é preciso conhecimento e autoridade para enfrentar os lobbies das celuloses e do eucalipto, dos helicópteros e dos aviões. É preciso coragem para enfrentar os SIRESP(s) e outros interesses instalados. Mas, para tal, temos de ter responsáveis políticos e operacionais com sabedoria e conhecimento da matéria e não comissários políticos cuja ignorância custa milhões. Como não se vê coragem, conhecimento e autoridade, decreta-se o proibir, pois é mais fácil proibir para quem não sabe ensinar e dirigir. Já que se proibiram os foguetes, proíbam-se os fósforos, proíbam-se os isqueiros, proíbam-se os beijos ardentes, proíba-se o sol de nascer e proíbam-se as árvores de arder. Parafraseando Almada Negreiros, morra a proibição do fogo de artifício, pimba!

Valha-nos Hefesto e Vulcano, deuses grego e romano do fogo.

Relembrando uma velha máxima anarquista: É proibido proibir!

Viva Viana do Castelo e as suas festas da Nossa Senhora d’Agonia!
    

domingo, 27 de maio de 2018

O casamento do meu afilhado



Por coincidência, dois acontecimentos de relevância extraordinária tiveram, ontem, lugar em dois pontos distantes do Mundo: um casamento em UK para cumprir as normas protocolares da monarquia inglesa, em que tudo é encenado e bafiento. E outro espectacular casamento, na idílica paisagem do Minho, em que a beleza humana teve ocasião de se exibir espontaneamente com todo o seu esplendor, no qual tive a honra, o privilégio e o prazer de ter estado: o casamento do meu ilustre afilhado de baptismo André e da minha bonita afilhada, por afinidade, Sara. Obviamente, o casamento dos meus afilhados, superou, largamente e em todos os parâmetros, o que ocorreu na vetusta Albion.
O sinal da magnificência do evento foi, logo, dado na primeira melodia tocada na encantadora igreja de Forjães, com o arranjo musical do tema  Bohemian Rhapsody dos Queen  (…Mama, life had just begun, But now I've gone and thrown it all away…). Não podia ter havido melhor começo! Mas, antes, já tinha tido ocasião de apreciar o toque de beleza e distinção da noiva e das convidadas (dos homens não me cumpre fazer apreciações estéticas). Qual gala da Miss Mundo; Qual cerimónia dos Óscares. Era ali, na Igreja de Santa Marinha de Forjães, que estava reunida a fina flor da beldade feminina!
Durante a cerimónia religiosa, o sacerdote enfatizou a parte do evangelho que relembra a nossa atitude a ter com as vicissitudes da vida “…Apenas se viam umas pegadas na areia. Eram as pegadas do Senhor, que nunca abandona ninguém, na alegria e na dor, na felicidade ou no sofrimento…” . Frederic Ozanam adaptou este lema para a sua acção quotidiana ao assumir que “Não pode haver dores inconsoláveis, nem alegrias exclusivas”.  A exortação final do evangelho referido pelo pároco é clara na sua mensagem: Amai-vos uns aos outros!  Honoré de Balzac deixou-nos uma bonita mensagem sobre este comportamento que nos deve acompanhar ao longo da vida: "Nunca devemos julgar as pessoas que amamos. O amor que não é cego, não é amor." O gesto afectivo da deslocação da noiva à campa de seu pai foi tocante e emotivo, demonstrativo de que não esquece quem foi parte importante na sua vida.
Na hora do banquete e da festa assistiu-se a uma alegria esfusiante, genuína. Jovens e idosos, adultos e crianças, deixaram-se levar pela encantadora simpatia dos noivos, sendo estes os maiores animadores  e entusiastas do convívio, que se alargou a todo o salão. Tive ocasião de partilhar este sentimento com a médica da família que se sentou  a meu lado na mesa, pessoa com quem, também, tive oportunidade de me enriquecer nas conversas que mantivemos e que confessou não ter ministrado ao André as vacinas da paz e do perdão, mas concordamos que ele já foi delas portador por herança genética.
Mais uma vez tive ocasião de apreciar a excelência da riqueza humana que envolve a família do meu afilhado André. Foi uma bênção divina que me foi dada o poder ter encontrado na vida família tão exemplar. Avós, pais, irmãos, tios e tias, primos e primas, todos têm um lugar muito especial no meu coração. Já Lilian Tonet dizia: "As pessoas entram, muitas vezes, em nossa vida por acaso, mas não é por acaso que nela permanecem”.
Querida Sara e caro André: Uma das músicas tocadas que suscitou maior entusiasmo nos participantes foi o fado Rosa Branca que tem o refrão “ Quem tem, quem temAmor a seu jeito. Colha a rosa branca. Ponha a rosa ao peito”. Os vossos peitos vão ser jardins floridos.
Beijos e abraços portadores do desejo de imensa felicidade. A minha gratidão por me terem convidado.
O padrinho Manuel Hipólito Almeida dos Santos  - 19/05/2018

sábado, 21 de abril de 2018





AS PRISÕES E A  LIBERDADE  COMO VALOR ABSOLUTO




“A liberdade concreta supõe que esteja garantido ao indivíduo o direito de se desenvolver, enquanto tal, num mundo cuja razão de ser seja para ele evidente e, portanto, sensata.”
     Joël Wilfert – La liberté – (O Estado: Realidade Efectiva da Liberdade) 



Vivendo um tempo em que a liberdade é posta à prova frequentemente, devemos ter em conta esta reflexão do filósofo contemporâneo Joël Wilfert que coloca a sensatez do meio como uma das condições necessárias para o exercício da liberdade.
Assim sendo, importa analisar se neste início do século XXI se verifica a existência de sensatez na aceitação de instituições criadas para praticarem penas e medidas privativas da liberdade.
Para o número 64 da “A Ideia” (Março de 2008), escrevi um artigo intitulado “Prisões: Que esperança?” onde desenvolvi o meu entendimento sobre a realidade de então. Passados estes anos importa actualizar esta problemática, nomeadamente no atropelo ao valor da liberdade.
A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem vindo a merecer reflexões que apontam neste sentido, vindo-se a acentuar um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das instituições onde se cumprem medidas privativas da liberdade, de que as prisões são um exemplo, como instituições perigosas para a afirmação desse valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas em 2017 a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. 
Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, desde o filósofo Michel Foucault e outros filósofos até muitos conferencistas presentes em variadas intervenções públicas. Relembremos algumas das frases mais significativas.
- Habrá que tener la valentia de denunciar la injusticia social como la primera y más grave delincuencia, geradora de otras muchas delincuencias (…) - CEE–España – P. José Sesma León

-  A cadeia é um lugar injusto. (….) Parte de um tipo de Estado que, com ela, busca fins de repressão e submissão (…) A cadeia tal como a conhecemos não foi inventada para curar ou reabilitar (…) -  P. António Correia – capelão do E.P. de Paços de Ferreira

- O sistema penitenciário clássico falhou os seus propósitos.  Ex-Ministro da Justiça -  Dr. Alberto Costa

- A experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso. (…)  A prisão não reinsere; por vezes fomenta a própria criminalidade.-Dr. Germano Marques da Silva - Professor de Direito Penal
- Todo o ser humano é maior que o seu erro! - P. João Gonçalves – Coordenador Nacional da Pastoral Penitenciária
- As nossas prisões não cumprem as condições mínimas relativamente à alimentação, saúde, higiene, privacidade e liberdade religiosa. - Comissão Nacional Justiça e Paz
-Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controle de indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas? Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos.., Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! -  P. João Gonçalves
- O actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade. - Ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público  Dr. António Clunny
“O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém e, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex-homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia (…) -  “Onde o homem acaba e a maldição começa” - Emídio Santana
(…)nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente. -  “Vigiar e Punir” – Michel Foucault

O sistema penal vigente não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, retenção indevida de bens, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal, impedindo a liberdade como valor absoluto. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à auto-defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação.
As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais de cada estabelecimento prisional terem deixado de serem publicados desde 2010, sendo a opacidade inimiga da liberdade. Os dados conhecidos já nos dão uma ideia da dimensão aterradora duma política punitiva que se tem vindo a agravar, estando ausente qualquer dinâmica de prevenção no sentido duma sociedade mais humana, pacífica e fraterna.
Vejamos alguns dados relativos a Dezembro de 2016.
Temos sobrepopulação prisional, com o total de reclusos de 13779 (a lotação máxima é de 12.600), sendo 94% homens e 6% mulheres (os estrangeiros são 15%), representando a faixa etária dos 30 aos 40 anos 30% do total (Havia 191 reclusos com idades entre os 16 e os 20 anos e 5% têm mais de 60 anos), com 16% do total de reclusos em prisão preventiva, sendo 75% das penas aplicadas superiores a 3 anos (Havia 310 reclusos com penas indeterminadas ou medidas de segurança). Mais de 86% dos reclusos não tinham passado do ensino básico na sua formação escolar. O tipo de crimes estava distribuído entre: Contra as pessoas (homicídios, ofensas à integridade física, etc.): 25%; Contra os valores e interesses da vida em sociedade (incêndio, associação criminosa, condução perigosa, etc.): 10%; Contra o património (roubo, furto, burla, etc.): 28%; Estupefacientes (tráfico, consumo, etc.): 19%; Contra o Estado (desobediência, corrupção, etc.): 6%; Outros (fiscais, condução sem carta, etc.): 12%. Há menos trabalho nas prisões, apesar de mal pago, assemelhando-se à escravatura. Piorou a alimentação (tendo-se alargado a privatização do fornecimento das refeições nas prisões – o valor diário para alimentação, por recluso, é de cerca de € 4,00 para as quatro refeições diárias fornecidas por empresas com fins lucrativos). Continua a haver muitos reclusos sem possibilidade de estudar, sendo que 58% têm o 6º ano ou menos de escolaridade, dos mais de 86% dos reclusos que não tinham passado do ensino básico na sua formação escolar. A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens divulgou, no seu relatório apresentado em 2016, que foram acompanhadas. durante o ano de 2015, nas CPCJs, mais de 73.000 crianças e jovens. Dos jovens internados nos Centros Educativos 95% sofrem de patologias psiquiátricas, com uma taxa de reincidência superior a 50% (o tratamento psiquiátrico nos Centros Educativos é de grande debilidade). Em 2016, as equipas de reinserção social da DGRSP (Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais) executaram um total de 54.600 pedidos de relatórios e audições na área penal. Em 31 de dezembro de 2016, a DGRSP apoiava a execução de um total de 31.269 penas e medidas na comunidade na área penal. No âmbito do apoio à execução de penas e medidas, foram registados, entre Janeiro e Dezembro de 2016, um total de 41.852 novos pedidos, 39.763 dos quais no âmbito penal. Em 2016, a DGRSP recebeu das entidades judiciais, relativamente à atividade de assessoria técnica à tomada de decisão e penas e medidas de execução na comunidade, um total de 110.151 pedidos dos quais, 101.861 (92,47%) no âmbito penal e 8.290 (7,52%) no âmbito tutelar educativo (Suspensão Provisória do Processo, Trabalho a Favor da Comunidade, Suspensão da Execução da Pena de Prisão, Liberdade Condicional, Medidas de Segurança relativas a Inimputáveis e outras). Quanto ao tipo de atividade, 68.299 (62,00%) pedidos respeitaram a relatórios e audições e 41.852 (37,99%) pedidos, à execução de penas e medidas na comunidade. Em 2016, foram recebidos 1.203 novos pedidos de apoio à execução de penas e medidas fiscalizadas por vigilância electrónica (Medida de Coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (VE), Pena de Prisão na Habitação, Adaptação à Liberdade Condicional, VE em contexto de violência doméstica, Modificação da Execução da Pena de Prisão. VE em contexto de Crime de Perseguição). No âmbito da jurisdição tutelar educativa, a DGRSP registou, em 2016, um total de 2.089 novas solicitações para o apoio à execução de medidas (Suspensão do Processo com e sem Mediação, Tarefas e Prestações Económicas a Favor da Comunidade, Obrigações e Regras de Conduta, Acompanhamento Educativo e Programas Formativos, Internamento em Centro Educativo, Outras). Aumentaram as restrições ao fornecimento de bens aos reclusos (incluindo alimentação). Houve uma degradação do apoio psicológico e de reinserção, com o crescendo de recurso a psicólogos com vínculo precário e em número manifestamente insuficiente. Continua a fragilidade do apoio judiciário. Houve um reforço do securitarismo, apesar da insuficiência de recursos humanos nos estabelecimentos prisionais. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da U.E.), incluindo a prática de penas sucessivas e de medidas de segurança que leva à permanência de reclusos nas prisões por períodos que ultrapassam os 25 anos. Continuou a retenção indevida do dinheiro dos reclusos. Insiste-se na impossibilidade do direito à própria defesa violando o direito internacional de que Portugal é Estado-Parte; Etc, etc, etc… . Como aspeto positivo evidente assinale-se o desaparecimento do balde higiénico, existência sintomática do medievalismo deste modelo de sistema prisional.

 O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar.
As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada.
Esta situação continua a persistir já que se nota um autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (através dos seus relatórios de actividades), quer de algumas ONGs.  Infelizmente, o trabalho destas ONGs não tem levado a mudanças significativas, assistindo-se, inclusivamente, ao apagamento dalgumas delas por inclusão no aparelho e funcionamento de Órgãos do Estado, num colaboracionismo reprovável cujos resultados se traduzem na manutenção da desumanidade do sistema prisional. Por outro lado, o passo positivo dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia para esta problemática das drogas e sua comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera ao invés de encarar a realidade, enquadrando-a legalmente (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool).
Chegados a 2017, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas. A alteração do código penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes que só a ausência de coragem política impede de concretizar.


O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar.

Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI, abrindo caminho para a consideração da liberdade como valor absoluto. A crescente aceitação da justiça restaurativa, em que o foco se desloca do perpetrador do crime para o ato e a sua reparação, pode constituir um passo para a abolição das prisões.
Temos de centrar a atenção nas implicações concretas das prisões na vida dos reclusos, das suas famílias e no ressarcimento dos danos provocados pelo crime, mas sem nos deixarmos arrastar pela análise pseudo-científica que se traduz, muitas vezes, numa masturbação intelectual ineficaz para a resposta sobre a consideração da liberdade como valor absoluto.

Atentemos na reflexão que nos foi legada por Sophia de Melo Breyner Andresen: “A civilização em que estamos está tão errada que nela o pensamento se desligou da mão.”

“O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente.” 
FIÓDOR MIKHAILOVICH DOSTOIÉVSKI



Na construção das bases duma sociedade justa e pacífica e na convicção de que a felicidade humana está ligada, umbilicalmente, à existência em paz duma consciência esclarecida, importa intervir para que o trilhar do caminho da vida seja feito sobre pilares de ética e cidadania, ao arrepio dos caminhos assentes em valores primários que, infelizmente, são o suporte das políticas que actualmente governam o Mundo, apesar das declarações hipócritas de muitos governantes que nos querem fazer querer o contrário, assim influenciando o comportamento das pessoas. A via para a liberdade passa por cada pessoa interiorizar o seu compromisso com essa liberdade. Já Agostinho Silva nos dizia num dos seus bonitos poemas:
            “...
A primeira condição para libertar os outros
            É libertar-se a si próprio.
...”


Manuel Hipólito Almeida dos Santos