domingo, 15 de novembro de 2015

O Trabalho no Século XXI

1 - Introdução ................................................................................................... Ao longo da história, o trabalho tem assumido diferentes facetas marcadas pelos contextos políticos, económicos e sociais em que se tem desenvolvido. Também, a finalidade do trabalho tem vindo a sofrer mutações, desde a disponibilização de bens para a satisfação de necessidades vitais até ao contributo para o lazer e conforto pessoal. Uma forma de trabalho que tem estado sempre presente, legal ou ilegalmente, relaciona-se com o trabalho escravo, em níveis variáveis com a época e o espaço geográfico em que se desenvolve, sendo consensual a definição de trabalho: qualquer atividade física ou intelectual cujo objetivo é extrair, produzir ou transformar bens ou serviços. Chegados ao século XXI, importa ver como se enquadra o trabalho no modelo de sociedade neoliberal presente na maior parte do mundo e perspectivar o seu desenvolvimento futuro. Dada a vastidão desta temática, apenas vou introduzir alguns contributos e indicar alguns exemplos que ficarão longe de esgotar aquilo que se pode dizer sobre o trabalho no século XXI. ............................................................................................................... 2 - Os referenciais jurídicos internacionais Dois importantes marcos ocorreram no século XX que deveriam passar a nortear, a partir do seu surgimento, todas as formas de trabalho: A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a criação, em 1919, da Organização Internacional do Trabalho. A Declaração Universal dos Direitos Humanos consagra no seu artigo 23º: “Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego”. Por outro lado, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) desenvolve o seu objeto no âmbito da redução da pobreza, de uma globalização justa e na melhoria das oportunidades para que todas as pessoas possam ter acesso a trabalho digno e produtivo em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana, tendo o seu mandato assente nas vertentes do Emprego, Protecção social, Diálogo social e Direitos no trabalho. E qual é o grau de observância destes referenciais neste início do século XXI? E qual a perspectiva de futuro? Recentemente, o filósofo grego contemporâneo Christos Yannaras, em entrevista ao jornal Público, considerou que estamos numa fase de final de ciclo: “O paradigma da primazia absoluta dos direitos do indivíduo está a desfazer-se…” e “… .Quando a economia se autonomiza em relação à sociedade, quando a política se autonomiza, isto significa que a sociedade não pode ir mais além. É uma crise de vida ou morte.”, considerando ainda que não é só uma crise económica mas uma crise do sentido da vida, já que a economia está a prevalecer sobre a amizade, o amor, a cultura e a expressão artística. Façamos, então, uma apreciação à situação actual do trabalho e sua perspectiva futura, quer nas implicações nas pessoas dos trabalhadores, quer nas mutações no tecido empresarial resultantes da globalização e da ascensão da electrónica aplicada a todas as vertentes do processo produtivo. Após as melhorias verificadas nos cerca de quarenta anos seguintes à segunda guerra mundial, com o gradual aumento qualitativo da dignidade na prestação do trabalho, caracterizado por aumento de salários, redução de horário de trabalho, férias pagas, maior segurança no trabalho, sistemas de protecção social, diminuição na penosidade dalgumas funções e limitações aos despedimentos, tudo isto com progresso económico e social e crescimento na economia, assistiu-se, nos últimos trinta anos, a um retrocesso que torna já quase utópico o modelo que se viveu. Atualmente verifica-se a implementação de formas aviltantes de prestação de trabalho, não sendo polémico identificá-las como as novas formas de escravatura, dando continuidade à escravidão como forma de trabalho que, ao longo da história, foi predominante, apesar de, a partir de meados do século XIX, ter começado a ser declarada ilegal mas continuando a existir ilegalmente e com novas formas. Os três grandes argumentos para a criação da O.I.T. continuam a ter plena aplicabilidade: - humanitários: condições injustas, difíceis e degradantes de muitos trabalhadores; - políticos: risco de conflitos sociais ameaçando a paz; - económicos: países que não adotam condições humanas de trabalho são um obstáculo para a obtenção de melhores condições noutros países, gerando desigualdade de concorrência. Será que podemos assegurar que a dinâmica em curso persegue estes objectivos da O.I.T.? Ou está a afastar-se da sua orientação? ......................................................................................................................... 3 - A erosão dos direitos humanos no mundo do trabalho Ricardo Antunes, sociólogo brasileiro, no seu artigo “Os dilemas do trabalho no limiar do século XXI” diz-nos: “Em plena eclosão da mais recente crise financeira, estamos constatando a corrosão do trabalho contratado, a erosão do emprego regulamentado, que foi dominante no século XX e que está sendo substituído pelas diversas formas alternativas de trabalho e subtrabalho, de que são exemplo o “empreendedorismo”, o “trabalho voluntário”, o “cooperativismo”, modalidades que frequentemente “substituem” o trabalho formal, gerando novos e velhos mecanismos de intensificação e mesmo auto-exploração do trabalho. Os modos de precarização do trabalho, o avanço tendencial da informalidade, o desemprego dos imigrantes, tudo isso acentua o tamanho da tragédia social em que estamos envolvidos. O emprego assalariado formal, modalidade de trabalho dominante no capitalismo da era taylorista e fordista, que magistralmente Chaplin satirizou em Tempos modernos, está-se exaurindo e sendo substituído por formas de trabalho que nalguns casos se assemelham às da fase que marcou o início da Revolução Industrial.” Michel Foucault constata que este comportamento dos seres humanos resulta de: “... O poder dos séculos XIX e XX foi exercido, muito menos, por meio de coacção física do que com instituições que funcionam como cárceres, que incluem não só a prisão mas, também, a fábrica, a escola e a disciplina psicológica da vida militar.(...) A razão primitiva e tecnologia disciplinar moldam seres humanos passivos em objectos do poder. A tecnologia disciplinar e ciência social normativa unem-se para criar o “homem aceitável”, o cidadão manipulado do mundo moderno...”. Com a erosão dos direitos humanos no mundo do trabalho, assiste-se a um regresso à “selva” e a uma progressiva desproteção do direito à dignidade. Assim sendo, o acesso ao mercado de trabalho e suas formas de prestação têm vindo a ser, progressivamente, caracterizados pela precariedade, subcontratação, falso emprego e falso trabalho independente (estagiários e recibos verdes), subemprego, trabalho informal e emprego com baixos salários, reduzindo os custos do trabalho na formação dos preços dos produtos e permitindo o aumento da procura (veja-se, por exemplo, o crescimento do turismo nos últimos anos em Portugal) assente em condições degradantes de trabalho. Esta situação atinge particular dimensão nos jovens, assistindo-se à sua utilização abusiva como estagiários que não são mais do que trabalhadores precários gratuitos ou mal pagos. Com a erosão dos direitos humanos no mundo do trabalho, assiste-se a um regresso à “selva” e a uma progressiva desproteção do direito à dignidade. Assim sendo, o acesso ao mercado de trabalho e suas formas de prestação têm vindo a ser, progressivamente, caracterizados pela precariedade, subcontratação, falso emprego e falso trabalho independente (estagiários e recibos verdes), subemprego, trabalho informal e emprego com baixos salários, reduzindo os custos do trabalho na formação dos preços dos produtos e permitindo o aumento da procura (veja-se, por exemplo, o crescimento do turismo nos últimos anos em Portugal) assente em condições degradantes de trabalho. Esta situação atinge particular dimensão nos jovens, assistindo-se à sua utilização abusiva como estagiários que não são mais do que trabalhadores precários gratuitos ou mal pagos. ......................................................................................................................... 4 – A escravatura moderna O modelo de sociedade que hoje prepondera assenta em novas formas de escravatura e desumanidade tornando urgente a reflexão sobre a injustiça de uns viverem desafogadamente à custa do sofrimento e da míngua de recursos de muitos seres humanos. Quando o salário médio em Portugal (INE-2014) ronda os € 813,00 e cerca de 40% dos portugueses têm os seus rendimentos abaixo da fasquia dos € 600,00, facilmente se constata o grau de carências que os afeta. O desemprego, o trabalho precário, a prática de baixos salários, os horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, a substituição do direito ao trabalho pelo direito à rescisão do contrato de trabalho, são situações censuráveis que não encontram respaldo nas grandes orientações que devem balizar a convivência humana. Um estudo publicado em 15 de Junho último pelo Fundo Monetário Internacional - Causes and Consequences of Income Inequality: A Global Perspective - afirma que o impacto da flexibilização do mercado de trabalho aumentou os níveis de desigualdade. O FMI diz que "a suavização da regulação no mercado de trabalho está associada a uma desigualdade na sociedade e a um aumento do peso do rendimento dos 10% mais ricos", explicando que "a flexibilidade do mercado de trabalho beneficia os ricos e reduz o preço de negociação dos trabalhadores de mais baixos rendimentos". Afirma ainda que a desigualdade está ao "mais alto nível em décadas" e que uma maior desigualdade tem como consequência um abrandamento do crescimento da economia. Esta situação atinge contornos de maior gravidade nos jovens, estimando a O.I.T. em 73,4 milhões o número de jovens, entre os 15 e os 24 anos, desempregados em todo o mundo (12 milhões na Europa), sendo superior a 40% a percentagem dos que estão empregados que trabalham a tempo parcial (menos de 30 horas por semana) com salário reduzido. Em Portugal o desemprego afeta 35% dos jovens, e 40% pensam deixar o país. Por outro lado, assiste-se ao reforço da exploração económica dos assalariados com a prática de preços nos serviços públicos essenciais (habitação, água, electricidade, transportes públicos, etc…), que cerceiam o seu acesso a quem somente dispõe de recursos escassos, tornando, por exemplo, quem tem rendimentos próximos do salário mínimo em carenciados sem condições de vida digna. O sociólogo António Pedro Dores em comunicação recente “Democracia Verdadeira” pergunta: “… .Perante a crise – que não é apenas ficção, tem uma base real – quais são as defesas dos povos transformados em consumidores compulsivos e impotentes perante os sistemas produtivos cada vez mais potentes e capazes de criar exércitos proletários de reserva a nível mundial?...” Esta situação social, que caracteriza este início do século XXI, coloca-nos em presença de novas formas de escravatura e de relações sociais desumanas, sendo urgente lançar um repto a todos aqueles que se encontram a viver desafogadamente no sentido de examinarem a sua consciência, reflectindo sobre se não os incomoda viverem num mundo tão desigual e desumano. Ainda por cima, quando o seu viver desafogado assenta, por exemplo, em ter empregadas domésticas desmotivadas, em ter o lixo recolhido por lixeiros de baixa remuneração, em ter as suas cartas entregues por carteiros insatisfeitos, e, cúmulo das contradições deste modelo de sociedade, em poder ter sangue disponível para quando precisar, dado, gratuitamente, em esmagadora maioria pelos mais pobres e necessitados. Já pensaram no poder de que dispõem as empregadas domésticas, os lixeiros, os carteiros e os dadores de sangue? E quando estas pessoas, e outras com o mesmo perfil, decidirem usar o seu poder? Acontecerá o mesmo que aconteceu na história sempre que os escravos se revoltam? André Gorz, filósofo austro-francês, no seu livro Metamorfoses do Trabalho, diz-nos que o trabalho deveria permitir que o reino da necessidade cedesse lugar ao reino da liberdade mas que não está organizado para tal, estando a actividade produtiva cortada do seu sentido, das suas motivações e do seu objecto, para tornar-se um simples meio de ganhar um salário, sendo o tempo de trabalho e o tempo de viver realidades separadas, com o trabalho, as suas ferramentas e os seus produtos a adquirirem uma realidade separada do trabalhador, como coisas estranhas. ..................................................................................................................... 5 – A inovação tecnológica permanente O mercado de trabalho tem evoluído, e continuará a evoluir, também, condicionado pelas novas formas de prestação resultantes da influência da evolução célere e imparável das TICs e das novas tecnologias e ferramentas. Esta inovação tecnológica permanente arrasta para novos tipos de trabalho, de que o aumento exponencial da robótica, do teletrabalho, da transferência espacial do trabalho intelectual (das empresas para o espaço pessoal ou estandardizado como, por ex: call-centers, serviços associados a fornecedores de bens, traduções, etc…), exigindo qualificações e requisitos aos trabalhadores que os obriga a formação contínua com o consequente investimento. A mobilidade, o domínio das ferramentas da informática, a flexibilidade na adaptação a novas actividades, a formação permanente, serão as características que enformarão os profissionais do futuro desde o médico às empregadas domésticas. Estima-se que 90% de todos os empregos necessitarão de formação digital, com a prestação de serviços e as actividades liberais como áreas mais procuradas. Paralelamente, assiste-se a uma evolução da organização das empresas, transformando as empresas de modelo tradicional, que possuíam nos seus quadros todas as valências de profissionais necessários ao seu objecto social, nas empresas atuais que são meras gestoras de outras empresas de subcontratação que, em conjunto, preenchem todas essas valências. A aposta crescente das empresas é em investimento tecnológico e nas exigências de gestão, passando os quadros de pessoal a serem considerados um fardo que importa reduzir à menor dimensão possível, em termos de número e em termos de custo. Esta separação do trabalho dos desejos de vida do trabalhador está a ganhar relevância crescente com a mutação acelerada para novas profissões e novos produtos, potenciada com a evolução do conhecimento científico e tecnológico a um ritmo sem precedentes. A polivalência, que caracteriza a dinâmica em curso, ao mesmo tempo que torna os trabalhadores conhecedores de mais actividades produtivas, introduz uma diminuição afectiva na relação pessoal com a função, já que a rotação frequente de funções impede o aprofundamento do amor que só a estabilidade no tempo o permite, além de que não possibilita o conhecimento profundo de qualquer actividade. Por outro lado, o acesso ao conhecimento está mais facilitado do que nunca e vai estar cada vez mais acessível. A internet e as novas tecnologias de informação e comunicação permitem uma formação e uma informação que torna mais rápida a aquisição de conhecimentos, contribuindo para a exigida versatilidade dos recursos humanos. A robótica e a mecanização crescente de muitas actividades estão a diminuir a penosidade do trabalho, mas este benefício é substituído por exigências crescentes de produtividade, não proporcionando directamente um aumento de qualidade de vida. António Vilar, no seu artigo “A revisão do código do trabalho ou os trabalhos de Penélope” diz que “… para mudar o mundo - ou para acompanhar a sua inevitável transformação - há que mudar de paradigma, também, no campo das relações de trabalho”. As implicações destas novas formas de trabalho, o mercado laboral em acelerada mutação e o aparecimento de novas actividades e funções, com a exigência permanente de flexibilização da legislação laboral, estão a provocar alterações profundas no direito do trabalho e no pensamento económico, de que alguns pensadores têm dado conta. Michel Onfray, filósofo francês contemporâneo, no seu Tratado de Insubmissão e Resistência – A Política do Rebelde, define a servidão “…como a situação na qual se encontra uma pessoa para quem os deveres que lhe são exigidos são superiores aos direitos que usufrui. Portanto, onde se encontram os tiranos e os escravos? Quem poderá afirmar que o social ainda respeita os deveres que lhe incumbem relativamente aos indivíduos, nomeadamente do fim para que é constituído?: a protecção de todos os contratantes e de todos aqueles que aceitaram, tacitamente, o princípio do contrato social. Que se pode exigir a tais indivíduos, em matéria de deveres, quando a sociedade, e com ela o político, já não honram nada do que constituiu o pacto, nomeadamente, em matéria de segurança, dignidade e satisfação das necessidades elementares?” .................................................................................................................... 6 - Os parceiros sociais: Que representatividade? E, aqui, importa dar nota da alteração profunda do papel que estão a desempenhar as cúpulas dos denominados parceiros sociais, sindicatos e associações patronais, que se transformaram de representantes dos seus associados e da defesa dos seus interesses (trabalhadores e empresas) em colaboradores das estratégias dos grandes interesses políticos, económicos e financeiros, pelo que não é de estranhar a crescente falta de representatividade dessas estruturas, provocada pela desmobilização e pouca apetência pelo associativismo de classe. Esta carência de representatividade é agravada pelo pouco sentido dos Estados no cumprimento das suas responsabilidades. Na verdade, os Estados não estão a honrar os compromissos que assumiram ao ratificar os tratados, convenções e outros instrumentos jurídicos internacionais em geral e no campo do trabalho em particular. E fazem-no de forma grosseira e enganadora, como seja a manipulação das estatísticas do desemprego, querendo fazer crer que pessoas desempregadas o não sejam. Tal é evidente ao não considerar os desempregados que desistiram de ir aos centros de emprego (são seres vivos mas mortos para as estatísticas), assim como como considerar como empregados os desempregados inseridos nos contratos emprego-inserção (contratos temporários e, muitas vezes, com funções desadequadas ao perfil do desempregado), que não são mais do que formas de evitar a contratação de pessoas para postos de trabalho necessários à vida normal das entidades em que tal ocorre, assim como uma forma encapotada de não pagar a remuneração total correspondente ao lugar em questão. E, assim, estamos a assistir à consideração do trabalho como determinado unicamente pela rentabilidade económica e não para a satisfação de necessidades sociais, marginalizando actividades úteis mas pouco rentáveis e marginalizando, também, as pessoas afectadas por patologias, malformações ou qualquer outra mancha que não seja a cor do que se convenciona chamar de normal. É sustentável e defensável este modelo de organização empresarial e de concertação social? Como irá evoluir a gestão das organizações e qual será o enquadramento do trabalho? Se perspectivarmos o futuro como resultante do presente teremos de concluir que se poderá assistir a um aprofundamento do domínio pelo poder económico-financeiro, com as consequências inerentes, nomeadamente na subalternização do fator da dignidade humana como vetor determinante da economia. Esta desumanização já é, na actualidade, uma característica evidente, de que são exemplos a criação de figuras jurídicas empresariais de gestão de topo para camuflar os responsáveis (fundos de investimento, holdings, subcontratação, etc…) e a desregulação do trabalho na garantia dos salários e condições de prestação. Só que não se me afigura possível a continuação de tal caminho, já que, como ao longo da história aconteceu, a brutalidade acaba por gerar uma reacção com as consequências inerentes. As ditaduras, de que esta, económica-financeira, é um novo exemplo, acabam sempre por soçobrar e os políticos que lhes dão cobertura não costumam ter um fim prestigiante. Os ditadores vão tendo a noção de que o seu poder tem pés de barro mas, enquanto lá estão, aproveitam a circunstância para saquear e precaver o seu futuro. Passeiam-se em limousines de luxo, reúnem-se nos salões aveludados dos palácios, banqueteiam-se com ingredientes caros e sumptuosos, colocam os amigos e familiares em posições privilegiadas, insultando ostensivamente aqueles que são obrigados a permitir-lhes tais benesses. Como e quando soçobrará esta ditadura é um exercício de futurismo mas, face à indefensabilidade deste modelo como base de evolução, antevejo que o trabalho no final do século XXI não será um prolongamento da situação actual, já que o aviltamento da dignidade do ser humano acabará por dar lugar a uma nova era onde a luz imperará sobre a escuridão. ......................................................................................................................... 7 – A Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade ............... Fernando Pessoa, com o heterónimo Álvaro de Campos, na sua Ode Marítima diz-nos a dado passo: ................. Tanta nacionalidade sobre o mundo! tanta profissão! tanta gente! Tanto destino diverso que se pode dar à vida, À vida, afinal, no fundo sempre, sempre a mesma! Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente. A fraternidade afinal não é uma ideia revolucionária. É uma coisa que a gente aprende pela vida fora, onde tem que tolerar tudo, E passa a achar graça ao que tem que tolerar, E acaba quase a chorar de ternura sobre o que tolerou! Ah, tudo isto é belo, tudo isto é humano e anda ligado Aos sentimentos humanos, tão conviventes e burgueses. Tão complicadamente simples, tão metafisicamente tristes! A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano. Pobre gente! pobre gente toda a gente!” ...................................................................................................... Frei Bento Domingues, do movimento N.S.I. (Nós Somos Igreja) numa das suas crónicas de Domingo no jornal Público, referiu: “Alain Badiou, filósofo francês de origem marroquina, que considera esta Ode Marítima como um dos maiores poemas do século XX. No entanto, para este filósofo, é impossível – e contudo real, que povos notoriamente orgulhosos da liberdade individual, da privacidade, dos direitos do cidadão e do homem, da singularidade e dos particularismos, se tenham transformado em pouquíssimo tempo numa massa de ovelhas, controlados, vigiados, espiados, monitorizados em toda a sua actividade através de uma tecnologia invasiva e lesiva da discrição e da delicadeza, tratados como malfeitores e terroristas potenciais, enlatados em meios de transporte semelhantes a carne de animal, frustrados, presos e misturados com a má educação generalizada, vexados pelo software que não prevê excepções, obrigados a uma vida programada nos mínimos detalhes e que elimina qualquer experiência do poético, que não deixa espaço para a meditação e para a elaboração da experiência, submersos por um cúmulo de idiotice e por uma publicidade asfixiante.” Esta aproximação do trabalho no século XXI à introdução de formas de uma nova escravatura não é uma metáfora. Falamos mesmo de escravos. Não só de seres humanos que vivem como escravos, trabalhando por um salário miserável. Não são também os escravos de há 200 anos. Falamos dos muitos milhões de pessoas que, em todo o mundo, incluindo Portugal, são compradas, vendidas e alugadas, exploradas e brutalizadas para dar lucro. Não só na India, Mauritânia, Brasil ou China, mas também nos Estados Unidos da América, na Rússia, na Alemanha e em Portugal, com os Estados a serem maus exemplos ao utilizarem e legalizarem práticas que configuram um regime de trabalho equiparado à escravatura. Em relatório há dias divulgado (12/11/2015) o Conselho da Europa alerta para a gravidade do trabalho forçado e do tráfico de seres humanos (Everyone in Europe - children, women and men - should be protected from forced labour and trafficking in human beings, two serious human rights violations).Neste relatório é referido que 20,9 milhões de pessoas em todo o mundo são sujeitas a trabalho forçado, das quais 880.000 na União Europeia, sendo de 68% as envolvidas em actividades económicas tais como: agricultura, construção civil, serviço doméstico e indústria transformadora. E como analisar a situação atual e perspectiva futura face ao lema da Liberdade, Igualdade e Fraternidade? Do exposto, não é difícil concluir que a dinâmica de aproximação a estes valores verificada ao longo do século XX, com a aprovação e implementação de grandes referenciais de direitos humanos, como os Pactos Internacionais de Direitos Civis, Políticos, Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre a Escravatura, a Convenção dos Direitos da Criança, e mais de duzentos referenciais aprovados pelas Nações Unidas e pelo Conselho da Europa, se está a esboroar e a ser substituída por novas orientações que legitimam a desumanidade, de que é exemplo a aprovação recente da Convenção para a Prevenção do Terrorismo onde se criminalizam intenções e opiniões, constituindo uma flagrante machadada no direito à liberdade de pensamento, expressão e associação. Aqueles que se comprometem na defesa dos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade têm vindo a ter a sua responsabilidade acrescida para fazerem frente a esses atropelos. Têm de ser coerentes e ativos na defesa dos grandes ideais do humanismo. Têm de evitar que no século XXI o trabalho encontre respaldo numa das constatações do P. António Vieira no seu sermão de Santo António: Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêem a ser como os peixes que se comem uns aos outros. Será um sonho a alteração deste quadro sombrio, esta insensibilidade dos poderosos deste mundo para com aqueles a quem submetem com condições de vida infra-humanas, condenando-os à morte na sua dignidade? Eu perfilho esse sonho, partilhando-o com os que me estão próximos, revendo-me na singela expressão filosófica de Alexandre O’Neill: “E defendo-me da morte povoando de novos sonhos a vida”. ................................................................................................................. Porto, 14 de Novembro de 2015 ................................................................................................................ Manuel Hipólito Almeida dos Santos ............................................................................................................ Referências: Antunes, Ricardo - Os dilemas do trabalho no limiar do século 21 Bales, Kevin - A nova escravatura Domingues, Frei Bento – N.S.I. Dores, António Pedro – Democracia Verdadeira Foucault, Michel – As palavras e as coisas Gorz, André - Métamorphoses du travail Onfray, Michel – A Política do Rebelde – Tratado de insubmissão e resistência Peters, Edward – História da Tortura Santos, Manuel Almeida dos – ONGs, Passado e Presente Santos, Manuel Almeida dos – Questões de Ética e Cidadania Tratados e Convenções internacionais – O.I.T., O.N.U. e Conselho da Europa Vilar, António – Causas do Dia-a-Dia

domingo, 18 de outubro de 2015

Momentos duma visita a uma prisão

É sábado, 17 de outubro. Às nove horas passo o portão do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, após o que se segue a travessia do pórtico de detecção de metais antes de me embrenhar nos múltiplos espaços desta prisão (antiga colónia penal). Sou voluntário e cumpro mais uma das minhas visitas semanais. Ao sábado de manhã a primeira acção é a participação, com os reclusos, na missa celebrada na capela da prisão. (Utilizo o termo “recluso” quando me refiro à pessoa em abstracto e utilizo o termo “companheiro” quando me refiro à pessoa na sua individualidade.) É sempre um momento emocionante pelo contacto, em ambiente de comunhão fraterna, com seres humanos que a comunidade afastou do seu convívio e que mostram sentimentos de fé e profundidade espiritual que não seriam de esperar em quem tem a conotação de criminoso e de perigo público. E nem os muitos anos que levo nesta missão me retiram a sensibilidade para a apreciação do comportamento religioso daqueles que considero como irmãos. É tocante a sinceridade com que rezam o pai-nosso (…perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido…). Hoje estão presentes na missa vinte e cinco companheiros, do regime comum e da clínica psiquiátrica, dos mais de 500 que estão aqui presos. Um em cadeira de rodas, outro amparado por colegas, uns com evidentes transtornos psíquicos, outros cientes da injustiça de estarem presos, acusados de crimes desde os mais leves até aos mais hediondos, todos irmanados na mesma esperança no alívio vindo do Além. Antes de iniciada a missa há que preparar o espaço e disso se encarregam duas voluntárias e alguns reclusos. Elas varrem o chão e colocam nas jarras as flores que trouxeram. Eles preparam o altar e abrem o missal nas leituras do dia, assim como distribuem os cadernos com os cânticos que vão ser entoados. É distribuído um folheto com a mensagem dominical, elaborado pelo capelão prisional, P. João Matias, que permite o acompanhamento dessas leituras do dia. Na reflexão constante do folheto de hoje, a partir da leitura do evangelho segundo S.Marcos (10,35-45), o P. Matias ressalta a noção de quem são os maiores: “É maior quem serve mais. A grandeza não vem pois nem do dinheiro, nem dos cargos elevados, nem dos títulos académicos, nem de talentos de garantida cotação social. Vem, simplesmente, do grau de amor com que procuramos ser úteis e servir. Grandes são aqueles Pais que arranjam sempre tempo para estar com seus filhos, para os escutar e responder às suas infinitas perguntas, para brincar com eles e, junto deles, descobrirem de novo a vida. Grandes são aquelas Mães que enchem o lar de calor e de alegria; mulheres que não têm preço, pois sabem dar a seus filhos o que eles mais precisam para enfrentarem confiadamente a vida. Grandes são os Casais que vão amadurecendo o seu amor dia a dia, aprendendo a ceder, cuidando generosamente da felicidade do outro, perdoando-se mutuamente nos mil atritos da vida. Grandes são aquelas pessoas, jovens e adultos, que nas nossas comunidades mantém de pé e com vida os serviços, a ajuda fraterna. Aqueles jovens e adultos que dão vida a clubes, associações, movimentos e sindicatos, por onde passa o convívio são, a cultura, a solidariedade, a luta pela justiça e pelo progresso, gente anónima sem a qual este mundo seria mais pobre, mais triste, mais cínico. Mais agreste e desumano.” Este apelo à grandeza calou fundo em muitos dos presentes. E não deixou de trazer a lembrança da ausência da visita de muitos pais, irmãos, cônjuges, filhos e amigos, no apoio a quem se encontra na situação deprimente de internado na prisão. A participação dos reclusos, quando lhes é dada a oportunidade de serem ouvidos, revela-se de grande qualidade e mostra a desumanidade em que estão colocados no ambiente prisional. Tal qualidade voltou a evidenciar-se quando visitei a seguir a ULD (Unidade Livre de Drogas) e estive a falar com um grupo de companheiros lá internado. Dramas, carências e necessidades são mais que muitas. Desde o pouco, ou quase nulo, apoio psicológico, falta de assistência jurídica, indefinição do seu futuro e atropelos ao direito à dignidade, tornam a vida dum recluso em sub-humana. Falamos dos seus casos, das alegrias e tristezas da vida, dos factos relevantes acontecidos e do que se pode fazer para melhorar a sua condição e das suas famílias. E não posso referir aspetos pessoais mais concretos para não lesar o direito à privacidade nem prejudicar aqueles que já estão profundamente lesados. É que as retaliações são moeda corrente nas prisões. Saio da ULD com mais um pedido: a bola de futsal utilizada no recreio, que a O.V.A.R.(obra vicentina a que pertenço) tinha oferecido, rebentou e pediram-me se eu a poderia mandar consertar. Não a pude trazer pois torna-se necessária a autorização da pessoa responsável e, como é sábado, não estava presente no estabelecimento prisional. Na próxima visita espero já poder corresponder ao solicitado. No caminho para a prisão passo num quiosque e compro os jornais do dia, de acordo com as preferências dos companheiros com quem me vou encontrar. Para uns o Jornal de Notícias, para outros o Jogo, para outros, ainda, o Le Monde Diplomatique, o Público ou o Expresso. É que há reclusos com diversos níveis de gosto e instrução. As voluntárias também são portadoras de revistas. Hoje, um companheiro pediu-me um dicionário de Português-Inglês pois quer aprofundar o conhecimento nesta língua (na próxima visita ser-lhe-á entregue). Em quase todas as visitas levo livros escolares que me são oferecidos por amigos ligados ao sistema educativo (Bem hajam!), no sentido de estimular o prosseguimento dos estudos. No dia de hoje dois factos tornaram mais saliente a minha visita. Um deles relacionou-se com um pedido que há quinze dias tinha feito a um companheiro para registar as refeições que lhe foram fornecidas durante duas semanas. Pois, mal ele me viu veio ter comigo e entregou-me um rol de folhas com as ementas desse período, com apreciações qualitativas e quantitativas, comprovando a debilidade da alimentação. Não tenho razão de queixa do respeito que os reclusos têm tido para comigo sobre os compromissos que assumem. Mas sensibilizou-me o cuidado e o rigor com que o meu pedido foi satisfeito. Não digo o nome do companheiro, pelas razões atrás expostas, mas redobrarei a minha dedicação por ele. Fiquei com mais elementos para a minha luta contra este sistema de punição. No outro caso, ocorreu uma situação que me deixou profundamente entristecido. Um companheiro tinha-me pedido para falar com o seu advogado (defensor oficioso) no sentido de o sensibilizar para dar maior atenção à sua situação jurídica, no sentido de desencadear o processo de liberdade condicional que, na sua opinião, já lhe deveria ter sido concedida. Hoje levava o resultado do contacto que mantive com o advogado. Este prometeu-me que iria proceder em conformidade, apesar de alegar que não poderia deslocar-se à prisão para falar com o recluso, pois o tempo que esta deslocação exigiria não é suficientemente compensado monetariamente. Quando pedi para chamarem o companheiro foi-me dito que se encontrava internado em cela de isolamento, já que ontem se tinha tentado suicidar. Fiquei desolado! Eu, que pensava ir dar-lhe uma notícia que o animasse, fui confrontado com mais uma queda. Coragem companheiro! Vou continuar a apoiar-te. Saí ao fim da manhã do estabelecimento prisional, com um sentimento misto de amargura e de querer perseverante. Há muitos anos que, de forma semelhante, saio das visitas às prisões. Move-me a reflexão de Emídio Santana sobre as prisões, deixada no seu livro “Onde o homem acaba e a maldição começa”. No prefácio a este livro começa por dizer-nos Emídio Santana: “…É afinal o submundo dos ex-homens, dos malditos e dos proscritos, o lugar onde o homem acaba e a maldição começa com o seu quotidiano e onde todos os problemas humanos se enxergam e se colhem, numa infernal cultura ou nos pormenores de várias tragédias humanas arquivadas nos registos judiciais que, quando vistos em separado, se tornam nítidos e explícitos.” Dou conforto a esse sentimento assimilando a exortação de Frederic Ozanam; “Não pode haver dores inconsoláveis nem alegrias exclusivas”. Continuarei, sem juízos pré-concebidos sobre as faltas dos outros (o que eu tenho é de pedir perdão pelas faltas que cometo), a partilhar as minhas alegrias e a levar o consolo a quem dele precisa. Por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros.

domingo, 30 de agosto de 2015

Classes sociais

É mais ou menos consensual a divisão da comunidade humana em três grandes classes (A,B,C): alta (plutocrata), média (burguesia) e baixa (povo). .................................................................................................... A classe plutocrata é constituída por um pequeno grupo, com alguma estabilidade, que faz a sua vida sem grandes sobressaltos, não incomodando nenhum poder exceto na influência que neles exerce para a manutenção e ampliação dos seus bens e privilégios e na garantia da sua segurança. Tem uma postura de isolamento relativamente às outras duas classes sociais utilizando-as e subjugando-as para seu benefício, sentindo alguma aversão para as intromissões dos novos ricos sem pedigree. Os grandes valores humanos são-lhe quase indiferentes e não se incomodam que as suas fontes de rendimento (empresas, órgãos de comunicação social, partidos políticos) alinhem em projectos de defesa desses valores, apoiando-os até, muitas vezes, já que lhes pode acrescentar proventos económicos. A democracia é apenas um conceito a que não dá grande valor, desprezando o voto como forma de eleição dos órgãos de poder. .................................................................................................... A burguesia é a classe social mais temida pelos poderes político, financeiro, económico e cultural. É temida pelo poder político pela sua influência, enquanto dimensão e protagonismo, no “fazer” da opinião pública, sendo facilmente mobilizável e influenciável para a formalidade democrática das eleições independentemente da farsa e demagogia subjacente . É temida pelo poder financeiro devido à sua importância pelo somatório de pequenas economias e poupanças que canalizam para a banca e instrumentos financeiros para que é seduzida. É temida pelos poderes económico e cultural já que, devido ao seu poder de compra, é o sustentáculo das actividades produtivas de bens não essenciais que representam a maior parte do PIB. Caracterizada pela sua subserviência a todos os poderes, alegando que a contestação efetiva exige atos que têm custos que não quer suportar, vê com medo e intranquilidade quaisquer movimentos de opinião que possam ter como consequência a lesão da sua segurança e dos seus pequenos interesses. Os seus membros são fascistas quando o poder é fascista, são socialistas quando o poder é socialista e são liberais quando o neoliberalismo está no poder como acontece actualmente. Coabitam em espaços que contactam com a classe baixa mas têm prurido em se misturar, tentando criar barreiras como a criação de condomínios de acesso reservado e espaços de convívio próprio. Conhecem, em teoria, os valores humanos da liberdade, igualdade e fraternidade mas têm grande relutância no espírito de partilha com a classe baixa. Vivem para o seu umbigo, ainda que muitas das pessoas que a compõem tenham provindo da classe baixa, numa ascensão apoiada, nomeadamente, pelas políticas implantadas após a 2ª guerra mundial. Estão rotinados num quotidiano de emprego, casa com conforto, refeições frequentes em restaurantes, uma ou outra diversão desportiva ou cultural, férias anuais e outras actividades fúteis e irrelevantes. Estão presentes nas estruturas da comunicação social, da educação, da justiça, da saúde, nas ONGs, no pequeno empresariado e áreas afins, detendo uma capacidade de dar execução às ordens provindas dos grandes poderes que os torna incontornáveis na dinâmica que impulsiona o mundo. Tendo crescido em dimensão ao longo da segunda metade do século XX, por ascensão de grupos provindos da classe baixa, encontra-se esta classe média, neste início do século XXI, estagnada e, até, em retracção como consequência da crise económica instalada. ...................................................................................................... O povo é a mais numerosa das classes sociais. Os seus membros vivem um quotidiano de sobrevivência, precário, sofredor e sem perspectivas de futuro. Muitos aspiram e esforçam-se por passarem à classe média mas os últimos anos têm tornado essa ascensão quase impossível. São facilmente influenciados pelas classes alta e média e podem ser perigosos para o status quo quando alguém os consegue liderar, já que o segue sem pruridos de contenção. São explorados pelas outras duas classes a quem prestam serviços e a quem dão a sua força de trabalho, exercendo tarefas essenciais à subsistência da espécie humana. Ocupam os lugares mais baixos do mundo laboral (pescadores, lixeiros, carteiros, operários, trabalhadores rurais, serviços domésticos, tarefeiros, empregados de mesa e da restauração, etc…), concorrendo entre eles pelas migalhas que estas ocupações lhes destinam, alternando períodos de trabalho com períodos de desemprego. Muitos acabam na mendicidade, nas prisões e na exclusão social. Apesar de muitos já terem alguma formação escolar não conseguem dotar-se de capacidade própria de formular decisões ao arrepio da dinâmica dominante, devido ao ambiente de pobreza em estão inseridos que lhes retira apetência e possibilidade de se dedicarem ao seu desenvolvimento pessoal. Os que votam fazem-no na dependência do marketing político sendo inconstantes no seu sentido de voto. Os poderes económico e cultural utilizam-nos apenas como “carne para canhão”, enquanto o poder político manipula-os para lhes arrebanhar o voto. São os escravos dos tempos modernos, a que estão destinadas as crianças e jovens que já são hoje as maiores vítimas deste modelo. ................................................................................................. Com esta caracterização das três classes sociais estamos perante o quadro que modela o mundo actual. A classe alta e alguma classe média vivem, sem grandes preocupações (exceto um ou outro caso de maior consciência humanitária), sobre o trabalho escravo da classe baixa e esta escravatura é a característica mais relevante dos tempos que vivemos.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Retrato – Um dia no verão de 2015

Estamos a entrar no final de Agosto (dia 21). Decidi dedicar o dia de hoje a uma dupla função: testar a minha resistência física a uma grande caminhada e ver, com olhos de ver, o que encontrasse pelo caminho. Esteve sol durante todo o dia e quando saí de casa na Quinta das Rosas (Vilar do Paraíso-V.N.Gaia), pelas 12 horas, o calor ainda não era muito. Tinha decidido fazer todo o percurso a pé até à FNAC Santa Catarina no Porto, pelo tabuleiro superior da ponte de D.Luís I, regressando pela ribeira e tabuleiro inferior da ponte. Aproveitaria a caminhada para tratar de três assuntos: trocar o telecomando avariado da TV; fotografar o brasão da família Ferraz Bravo existente na frontaria dum palacete na Rua das Flores no Porto (para executar uma encomenda de peça cerâmica com esse brasão pintado) e comprar sacos plásticos num armazenista da Rua General Torres em Gaia. Foram, na ida e volta, cerca de catorze quilómetros percorridos em três horas e meia. O primeiro objectivo, testar a resistência física, foi alcançado sem grande dificuldade A caminhada foi feita em passo de passeio e o corpo aguentou-se sem queixas de maior. Estou em forma! O segundo objectivo tem mais que contar. Saí pela urbanização da Quinta das Rosas (que não sofreu qualquer alteração nos últimos 20 anos) na direcção do Bairro das Quatrocentas, através da rua de ligação onde, até há cerca de 10 anos, havia um núcleo de barracas de ciganos que o anterior presidente da câmara conseguiu, inteligentemente, promover o realojamento das famílias que lá se encontravam em bairros sociais, mais ou menos pacificamente. Tomei a direção do Largo de Santo Ovídio pela rua nascente do Bairro do Cedro, subindo a escadaria que dá acesso à parte sul da estação do metro, atravessando a rua que liga à auto-estrada A1. Neste percurso nada há a notar de significativo. Iniciei a descida da Avenida da República, onde são notórias as alterações que tem vindo a sofrer: substituição das moradias que foram a habitação tipo moradia até há cerca de 50 anos por prédios de vários andares; eliminação da placa arborizada do eixo central de toda a avenida por um corredor desarborizado por onde circula o metro (substituiu o carro eléctrico que circulou na avenida durante mais de meio século); surgimento dum espaço de maior movimento entre o edifício do Corte Inglês e os paços do concelho de V.N.Gaia. É uma avenida sem identidade marcante que ganha alguma notoriedade a partir do jardim do morro com a entrada no tabuleiro superior da ponte de D. Luís I e, aqui, o movimento de turistas marca significativamente, atraídos pela paisagem que se desfruta, quer a nascente, quer a poente. O mosteiro da Serra do Pilar, agora convertido em quartel militar, mesmo junto à ponte parece não aproveitar muito do caudal humano que nesta transita. Na saída da ponte para entrada no Porto o troço de rua continua, desde há muitos anos, a ser caracterizada por um espaço nada atractivo, feio e desmazelado até ao cruzamento para a sé catedral. Tomei a direcção da Rua Chã rumo à Praça da Batalha. Esta Rua Chã, outrora caracterizada por ter muitas casas de prostituição e a sede da maçonaria no Porto, está agora transformada em espaço onde reinam as casas comerciais que vendem artigos importados do oriente (China e Paquistão nomeadamente) a par com os sobreviventes gravadores, sapateiros, correeiros, peleiros, e casa de comes e bebes onde se destaca a adega Louro com o seu famoso presunto, restando ainda algumas casas onde a mais velha profissão do mundo assenta arraiais. À entrada na Praça da Batalha dá-se o impacto com as massas turísticas que, neste período de verão, inundam toda a baixa da cidade do Porto, desde esta praça até aos Clérigos e desde os Paços do Concelho do Porto até à ribeira. Este turismo, que se assemelha a uma praga, tomou conta desta parte da cidade e deve-se analisá-lo economicamente e sociologicamente. Por um lado está a impulsionar a recuperação arquitectónica da zona que estava em estado adiantado de degradação, de que a Rua das Flores e a Rua Mouzinho da Silveira são exemplo. Por outro lado, está a contribuir para a transformação do comércio tradicional lá existente em cafés, restaurantes e lojas de souvenirs incaracterísticos, com a consequente modificação, para pior, dos recursos humanos lá empregues, já que os empregados dos estabelecimentos agora existentes são, na sua maioria jovens com vínculo precário ou sem vínculo, salários muitos baixos e pouca perspectiva de futuro, apesar de muitos deles terem boa qualificação académica. Esta alteração do modelo económico nesta zona da cidade, que se pode replicar noutras zonas e noutras cidades do país, traz profundas implicações de sustentabilidade e rentabilidade. De sustentabilidade porque rebaixa o potencial das pessoas que emprega hipotecando o seu futuro e retirando potencialidade aos sectores onde poderiam estar a exercer a actividade para a qual tiveram formação académica. De rentabilidade porque como a esmagadora percentagem dos turistas são de baixa e média-baixa gama económica/cultural, o pouco dinheiro que despendem vai para o alojamento e as refeições baratas, razão pela qual não há progresso e crescimento no restante comércio. Como Portugal importa mais de metade dos alimentos que consome, um turismo que se baseia no alojamento e alimentação não se traduz na melhor valorização dos recursos endógenos, pelo que não tem grande efeito no crescimento do sector produtivo da indústria transformadora, base do progresso económico e social. Os maiores beneficiários deste modelo são as cadeias de distribuição alimentar e os serviços turísticos de transporte, cujas sedes de empresas estão no estrangeiro para onde são canalizados os fluxos financeiros de mais valias. Esta política de captação de massas turísticas de baixo poder de compra está a ter um grande efeito na diminuição de salários, na precarização e sazonalização do trabalho e na desqualificação dos recursos humanos. Acresce que muitos dos trabalhadores para este sector turístico de verão são estudantes em férias e estagiários dos cursos profissionais, que aceitam dar o seu contributo por “dez réis de mel coado” (alguns chegam a aceitar trabalhar por 1,5 a 2 euros por hora sem contrato e sem protecção social. Há dias uma articulista do Jornal de Notícias escreveu um artigo sobre esta matéria titulando-o de “Chulice!”). Ora, foi esta realidade que tive a ocasião de apreciar nesta caminhada e que mais me chocou. Para já não falar nas vendedeiras da ribeira que, até há pouco tempo, vendiam, junto ao rio, peixe fresco, hortaliças e frutas, estão agora a vender artigos têxteis produzidos na China e países satélites a preços da “chuva”, ganhando menos agora do que ganhavam dantes. É a pauperização dum povo no seu esplendor. Na FNAC, com poucos clientes, tomei um pingo após o que desci a Rua 31 de Janeiro (dezanove dos estabelecimentos estão entaipados, inactivos, e os restantes quase não tinham clientes) descendo pela Rua das Flores até à ribeira e tabuleiro inferior da ponte D. Luís I, onde o panorama era o atrás descrito. No regresso por Gaia, subi a Rua General Torres (mantém-se igual e pouco atractiva desde há dezenas de anos) após o que retornei pela Avenida da República pelo percurso inverso ao da ida até chegar à Quinta das Rosas. Resta dizer que das tarefas que queria cumprir, aproveitando a caminhada, consegui trocar o telecomando na casa China em V.N.Gaia (na Avenida da República perto do cruzamento com a Avenida Vasco da Gama, cuja designação consta duma bonita placa toponímica num pequeno painel de azulejos com moldura barroca produzido na Cerâmica do Douro), fotografei o brasão dos Ferraz Bravo, mas não consegui comprar os sacos plásticos por o armazém estar fechado para férias.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Que Direito à Felicidade?

Não pode haver tristezas inconsoláveis nem alegrias exclusivas – Frederic Ozanam -. Em tempo de expansão do hedonismo e do egoísmo, importa aprofundar um direito muito glosado por todas as gerações e classes sociais: o direito à felicidade. Para esta abordagem necessário é ter em conta o enquadramento do ser humano na multiplicidade de vertentes que enformam a sua vida, quer na relação variada com os outros, quer na relação com as coisas e factores em que se movimenta. Nesta análise não se pode fugir à questão filosófica, nunca resolvida, de avaliar o que de mais relevante condiciona o comportamento humano: o livre arbítrio ou o determinismo. A partir destas bases, que, facilmente se vê, contêm muito de subjectivo e de acaso, o ser humano vai construindo a sua vida, reflectindo sobre os erros e os êxitos do passado, sem podendo prever com o mínimo de segurança como será o futuro. Assim sendo, como assegurar consistentemente o direito à felicidade? Será que a felicidade se constrói à volta do umbigo de cada um ou a sua construção tem de considerar o mundo que o rodeia? Nos últimos tempos o Papa Francisco tem lançado vários alertas sobre o caminho em que estamos direccionados. Caminho este assente na trilogia que comanda a política neoliberal norteadora do mundo actual: supressão do Estado na economia; enfraquecimento do Estado social; fortalecimento e glorificação do Estado repressivo-punitivo. Neste sentido, o Papa tem demonstrado uma clarividência e uma coragem dignas de nota. Nos cerca de dois anos de Papado, as suas atitudes e pronunciamentos, de que as encíclicas “Alegria do Evangelho” e “Laudato Si” são, por si só, grandes exemplos, têm sido gritos de alerta e de incentivo notáveis, esbatendo o seu passado obscuro de alegada conivência com a ditadura argentina, nos anos de horror de 70 e 80 do século passado, enquanto alto dignatário da Igreja Católica em Buenos Aires, de que o livro “A lista de Bergoglio” deixa em aberto. A sua atitude actual insere-se nos grandes valores do cristianismo do perdão e da misericórdia (“Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra”Jo-8,7), assim como do direito de todos os seres humanos à dignidade e à justiça social. Estas atitudes recentes do Papa têm sido únicas dentro das posturas dos líderes mundiais importantes e não têm tido respaldo em muitos vultos da igreja católica, de que é exemplo a posição recuada da generalidade dos bispos portugueses, expressa, nomeadamente, nos textos da Conferência Episcopal Portuguesa. As denúncias do Papa sobre as injustiças sociais (pobreza, migrações, desemprego, escravatura moderna, desumanização no tratamento das crianças e jovens, etc…) e sobre as questões ambientais, não deveriam deixar ninguém sossegado mas sim provocar uma exigência de maior solidariedade e fraternidade. Por aqui já se pode ver que o direito à felicidade só pode ser alegado por quem quer ter uma posição autista, centrada sobre si próprio. Como se pode achar que se tem direito ao bem estar sem o partilhar com os que sofrem em muitas casas, em muitos hospitais, em muitas prisões e em muitos lugares do mundo? Já visitei alguns destes sítios onde estão muitas pessoas infelizes e incompreendidas, sofrendo em silêncio ou com gritos que ficam sem resposta. Os órgãos de comunicação social vão-nos relatando, a espaços cuja frequência fica aquém da realidade, alguns destes dramas humanos, mas o que predomina na grande corrente que atravessa o mundo é a futilidade, a cultura hedonista do corpo, que não do espírito, o vedetismo saloio, o entretenimento alienante, o primarismo acéfalo de apelo à repressão, à vingança, ao jogo (as chamadas de valor acrescentado nos programas de TV são disto exemplo) e as doses maciças de desporto que substituiu a religião como ópio do povo numa análise marxista que mantém actualidade. Quando se aceita a prisão como violação da liberdade para, pretensamente, se castigarem os erros e imperfeições dos seres humanos, quando se aceita o sofrimento dos semelhantes como reparação dos males por eles provocados sem atentar nas condicionantes que os proporcionaram, quando se condenam as crianças e os jovens a um futuro incerto que os leva, muitas vezes, a caminhos sem retrocesso de marginalidade e exclusão, como se pode reivindicar o direito à felicidade individual esquecendo que ninguém é capaz de, sozinho, construir a sua vida? Todos dependemos de outros. Ninguém consegue construir a sua felicidade por si próprio. Dependemos da família, da empregada doméstica, dos carteiros, dos lixeiros, dos pescadores, dos agricultores, dos operários e duma panóplia de outras pessoas, normalmente exploradas, com trabalhos precários mal pagos e horários desumanos, e que sem eles e elas ninguém conseguiria viver. O direito à felicidade de cada um só poderá existir quando incluir o direito à felicidade de todos os outros seres, em espírito de partilha e comunhão. Lembremo-nos do lema que nos foi legado por Frederic Ozanam: Não pode haver tristezas inconsoláveis nem alegrias exclusivas.

domingo, 9 de agosto de 2015

Caracterização da sociedade actual

- Sociedade conflituosa, vingativa e repressora, assente em mais polícias, mais tribunais, mais prisões, mais juízes, etc... e mais reclusos. - Sociedade assente em trabalho tipo "escravatura moderna de precários, imigrantes, desempregados, etc...", em que os escravos além dos trabalhos piores ainda têm de pagar impostos, habitação e outros encargos - Sociedade totalitária assente na violência do poder instituído e dos partidos políticos que monopolizam esse poder, com práticas de desrespeito dos direitos dos cidadãos. - Sociedade de confisco, em que quase já só falta pagar o ar que respiramos (e para onde vão os impostos?). - Sociedade que agrava o fosso entre pobres e ricos. - Sociedade hipócrita que assina e ratifica tratados e convenções de direitos humanos e depois não os cumpre. - Sociedade cruel que maltrata as crianças tratando-as de forma desumana e violenta. - Sociedade parasita, que vive da exploração do trabalho e do sangue dos pobres condenando-os à indigência e à exclusão social. - Sociedade anti-democrática em que a maioria da população não quer participar neste modelo e que permite que quem só tem o apoio de 20% da população possa impor aos restantes o seu modelo de governação - Sociedade de impunidade para os que detêm os cordelinhos do poder e seus lobbies, legislando em seu proveito ainda que tal lhes permita práticas e leviandades criminosas. - Sociedade imoral que permite que, nos leilões de bens penhorados pelas mais diversas entidades, certos sanguessugas se apropriem de bens ganhos com muito esforço por quem numa altura difícil da sua vida involuntariamente não conseguiu honrar compromissos de dívida. - Saídas para este labirinto horroroso: - Exigência duma nova ordem política, económica, social e cultural - Prática da desobediência civil (pagar em dinheiro e não com cartões; não pedir recibos; recusar dar dados pessoais; contestar sempre as decisões da Administração Pública; participar em voluntariado livre fora dos esquemas formatados pelo Estado) - Desprezo pelo sistema político vigente, incluindo a abstenção em actos eleitorais. - Boicote ao sistema financeiro (Retirar o aforro e aplicações financeiras dos bancos). - Apoio a organizações e estruturas da sociedade civil que demonstrem coragem na defesa dos direitos humanos universalmente consagrados.

Caracterização do Poder Político – Agosto 2015

- O poder político é corrupto, oportunista, cleptocrático, mafioso, ignorante, desumano e incompetente; - Quem determina o poder político é o poder económico-financeiro. Para tal, coloca medíocres no topo dos aparelhos políticos, que, por sua vez, gerarão outros medíocres. Nunca um medíocre escolheu um competente para trabalhar consigo, já que este suplantá-lo-ia; - O poder político utiliza as eleições como uma farsa de inutilidade, demagogia e falsidade, limitando a escolha ao mais simpático e bem falante mas não ao mais competente. Os eleitores estão longe das raízes dos problemas e das formas de os solucionar, limitando-se a sufragar com uma cruz no boletim de voto; - O poder político fomenta e utiliza trabalho escravo (escravatura moderna em que as pessoas têm a ilusão de serem livres), generalizando a precariedade, o desemprego, a pobreza, a exclusão e a instabilidade social; - O poder político privilegia os setores parasitários das finanças e da grande distribuição em detrimento do trabalho produtivo nos setores primário e secundário; - O poder político explora os trabalhadores dependentes e independentes diminuindo-lhes os rendimentos e aumentando-lhes os impostos; - O poder político pratica uma política fiscal que privilegia o sector financeiro e as empresas multinacionais, penalizando o trabalho e a pequena propriedade (fundos de investimento versus habitação própria ou automóvel); - O poder político utiliza os serviços públicos essenciais como fonte de alto rendimento para os detentores das empresas, praticando preços que os tornam inacessíveis a largas franjas da população; - O poder político retira da esfera pública serviços essenciais (saúde, energia, educação, habitação, água, etc…) entregando-os a privados que não têm como prioridade o seu fornecimento como direitos humanos; - O poder político manifesta insensibilidade alarmante perante os dramas de faixas alargadas da população, nomeadamente os jovens, as crianças e outros grupos vulneráveis; - O poder político utiliza a repressão, o castigo e a prisão como forma de intimidação, sendo insensível às imperfeições do ser humano, não fomentando a prevenção, a socialização e a reinserção; - O poder político considera as prestações sociais como esmolas e não como direitos, tornando esta área como mais uma fonte de negócios; - O poder político anestesia e infiltra as ONGs, desmobilizando-as, descaracterizando-as e retirando-lhes capacidade de intervenção; - O poder político seduz o sector religioso e sócio-caritativo com concessões e benefícios “comprando” a sua possibilidade de influência; - O poder político assalta os órgãos de poder público e privado colocando as suas marionetas nas posições de comando, hegemonizando todo o poder efectivo; - O poder político utiliza uma estratégia de exercício do poder que tapa a possibilidade de surgimento de qualquer alternativa com possibilidade real de alterar o status quo.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

Viva a Grécia mas com uma correção na pergunta do referendo

Sendo um abstencionista convicto, pelas razões que tenho dado a conhecer, fico feliz pela vitória do Não na Grécia. Mas é uma felicidade relativa, já que, para mim, as condições referidas na pergunta do referendo continham uma referência a credores quando devia ser a ladrões. E a ladrões não se paga novamente o que eles nos andaram a roubar, não só na Grécia como em Portugal. Roubam-nos com negócios mafiosos (EDP; CTT; CP; REN; BPN; TAP; submarinos; parcerias público-privadas; cidadãos hipotecados; etc...), com comissões escandalosas, com prémios de gestão e ordenados absurdos e imerecidos, com juros agiotas; com garantias de condições chantagistas (fiadores; avales; hipotecas, etc...) e com ameaças de penhoras que nos atiram para a miséria. Parabéns aos gregos que votaram não. Esperemos agora que o governo grego exija a anulação total do roubo (eu nunca falei de dívida!), e que o exemplo seja seguido por todos os povos do mundo, incluindo Portugal. Viva a Grécia!

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Terroristas

A definição consensualmente aceite para terrorista é a de que se trata dalguém que utiliza a coacção com meios violentos, de forte persuasão, desproporcionados e intimidatórios, para obter vantagens para si ou para a instituição em que está integrado, ou para impedir outros de porem em prática atos com os quais está contra. As vítimas destas acções terroristas, por muito resistentes que sejam, acabam geralmente por fraquejar perante processos e atitudes, muitas das vezes de natureza kafkiana, onde a resistência humana é limitada. Esta forma de agir está a fazer escola em muitas esferas da administração pública. A atuação de órgãos do Estado quando legislam, retirando garantias básicas de defesa dos cidadãos, são a característica típica dos Estados terroristas. Por outro lado, a pressão, a sedução e o aliciamento com prémios e subvenções aos funcionários dalgumas estruturas dos Estados para que estes sejam os carrascos desses atos terroristas, têm conseguido que pessoas pertencendo à administração pública se deixem enredar em acções imorais e desumanas na sua relação com os cidadãos. Exemplos destes encontramos, nomeadamente, nos serviços de finanças e noutros órgãos da administração pública. O querer, a todo o custo, arrecadar verbas que satisfaçam o monstro das receitas dos Estados, tem levado a um conjunto de acções legislativas e das relações dos cidadãos com os funcionários desses serviços que deviam envergonhar quem as pratica. A forma como os cidadãos são colocados perante atitudes prepotentes e abusivas tem tal poder intimidatório que os inibe de reclamar ou resistir, acabando o medo por se impor e fazer vencimento, impondo a cobardia no seu carácter. Recentemente assiste-se a uma dinâmica dos poderes dos Estados em reclamarem o exclusivo de atos terroristas, na medida em que põem em prática processos terroristas para dissuadirem os cidadãos de protestarem. Exemplo desta dinâmica é a alteração dos códigos penais com a inclusão do crime de intenção de prática de atos terroristas por parte dos cidadãos, impondo-lhes pesadas penas de prisão. Esta criminalização de intenções, colocando em causa a liberdade de pensamento que é incontrolável, traduz-se num retrocesso civilizacional preocupante. Para não falar em como é que se pode provar o que pensa uma pessoa se esta não confessar, o que pode trazer num futuro próximo a prática de tortura para obrigar à confissão. Em suma, estamos a poder ter pessoas condenadas sem que estas tenham feito o que quer que seja de prejudicial para a sociedade, o que se traduz em algo de completamente novo em direito penal. Um futuro sombrio está-nos reservado.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O Direito à Liberdade como Valor Absoluto

A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem merecido, recentemente, dentro e fora da Igreja Católica, reflexões que apontam neste sentido. Desde Bento XVI ao P. Tolentino Mendonça, com muitos outros pelo meio, tem-se vindo a acentuar um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das prisões como instituições perigosas para a afirmação deste valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas em 2015 a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. No I Congresso Ibérico da Pastoral Penitenciária a questão da liberdade como valor absoluto esteve subjacente em muitas intervenções. Um dos temas dos painéis foi “Um outro sistema penal é possível”. Não era uma pergunta. Era uma afirmação! E esta afirmação comprometeu o congresso. Temos de construir um outro sistema já que o actual é desumano, violento, injusto, não cristão. Como cristãos penso que devemos ter sempre os fundamentos da nossa fé na construção de qualquer sistema. Todos conhecemos a passagem do evangelho segundo São João sobre a mulher adúltera e o desafio de Jesus: "Quem de vós estiver sem pecado que atire a 1ª pedra". Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: “Também Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar.» Numa outra passagem dos evangelhos Jesus também nos diz que devemos fazer isto não 1,2,3,4,5,6,7 vezes mas sim 70 x 7. Temos de perdoar sempre. Os ensinamentos de Jesus permitiram a construção de dois importantes pilares do cristianismo: O perdão e a misericórdia. No Pai nosso dizemos: Perdoai as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E como disse D. Mário Toso na conferência de abertura do congresso “Não há justiça verdadeira sem perdão”. Assim sendo temos de ter a ousadia de abolir as palavras castigos e penas com o reconhecimento da imperfeição do ser humano e reconhecer a sua incapacidade para não cometer erros. Os cristãos não podem ser indiferentes perante a injustiça. A lei penal sem compaixão não é uma lei justa. Os cristãos não podem olhar para os presos como criminosos, nem os capelães e visitadores podem ser passivos com o clima repressivo nos estabelecimentos prisionais. Temos de acrescentar mais pilares à justiça cristã, de que o exemplo da justiça restaurativa é um importante suporte (O foco da justiça é o acto e a sua reparação e não quem o comete). Temos de assentar na necessidade de afastamento da vingança como factor de punição. Como disse D. António Francisco dos Santos, na homilia da entrada na Sé do Porto em 6 de Abril do ano passado “Nos Evangelhos, os discípulos de Jesus aparecem como homens fortes, corajosos, trabalhadores, mas no seu íntimo sobressai uma grande ternura, que não é virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude e de compaixão. Não devemos ter medo da bondade. Só pela bondade aprenderemos a fazer do poder um serviço, da autoridade uma proximidade e do ministério uma paixão pela missão de anunciar a alegria do evangelho. O evangelho é tudo o que temos e somos". Neste sentido, temos de promover a reconciliação e não a vingança. Condenar o pecado e não o pecador. Afirmar a liberdade e não a reclusão. Promover a correcção e não o castigo. Privilegiar a prevenção e não a repressão. Como disse o P. Valdir no Congresso, “temos de deixar de ser coniventes com as prisões como instituições do pecado”. E D. António Marto também nos disse que as prisões são factores de dessocialização e desestruturação do ser humano. E, ainda, D. Ramon Calatrava demonstrou-nos que as penas de privação da liberdade produziram mais danos do que os crimes cometidos por aqueles que cumpriram essas penas. Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, desde o filósofo Michel Foucault e outros filósofos até muitos conferencistas presentes em anteriores conferências da pastoral penitenciária. Relembremos algumas das frases mais significativas: - Todo o ser humano é maior que o seu erro! - P. João Gonçalves; - Habrá que tener la valentia de denunciar la injusticia social como la primera y más grave delincuencia, geradora de otras muchas delincuencias (…) - CEE–España – P. José Sesma León; - A cadeia é um lugar injusto. (….) Parte de um tipo de Estado que, com ela, busca fins de repressão e submissão (…) A cadeia tal como a conhecemos não foi inventada para curar ou reabilitar (…) - P. António Correia; - O sistema penitenciário clássico falhou os seus propósitos Ex-Ministro da Justiça - Dr. Alberto Costa; - A experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso. (…) A prisão não reinsere; por vezes fomenta a própria criminalidade.-Dr. Germano Marques da Silva - Professor de Direito Penal; - As nossas prisões não cumprem as condições mínimas relativamente à alimentação, saúde, higiene, privacidade e liberdade religiosa - Comissão Nacional Justiça e Paz; -Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controle de indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas? Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos.., Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! - P. João Gonçalves ; - O actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade - Ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público Dr. António Clunny; “O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém e, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex-homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia (…) - “Onde o homem acaba e a maldição começa” - Emídio Santana ; (…)nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente - “Vigiar e Punir” – Michel Foucault. Então, um outro sistema penal torna-se necessário. Será que teremos de continuar a pensar em penas e castigos? E porque não um código de valores? E porque não começar com a reclamação ao poder político do nosso país duma amnistia significativa que leve o perdão e a misericórdia às prisões, dignificando as pessoas presas? A honra, a vergonha e o dever do exemplo são valores que devem ser exaltados. Temos de ser honrados com os compromissos que assumimos. Temos de ter vergonha de proclamar boas intenções sem as levar à prática. Temos de dar o exemplo. Este sistema penal não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à auto-defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação. As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais dos E.P.s terem deixado de serem publicados desde 2010. O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar. Algumas intervenções proferidas no congresso pareceram-me colocar como necessária a modificação do recluso enquanto pessoa, o que me parece desumano e não conforme com os direitos humanos universalmente consagrados. O que me parece que temos de fazer é reconhecer a todos os seres humanos o direito a que a sua personalidade seja defendida e respeitada, exortando-os e possibilitando-lhes as condições para a não reincidência na prática de actos anti-sociais mas não a sua modificação enquanto pessoa. Não foi isto que Jesus Cristo fez com a mulher adúltera? Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI. Atentemos nas palavras de Jesus Cristo “ Tudo aquilo que fizerdes a um dos meus irmãos mais pequeninos é a mim mesmo que o fazeis”- No passado mês de Janeiro, durante o decorrer do Encontro Nacional de Leigos, no Porto, o bispo desta diocese, D. António Francisco dos Santos, desafiou os leigos a mudar o «modelo predominante» de educação das crianças pedindo aos cristãos que “não reduzam” o ser humano a números e que as crianças sejam educadas para o “ser”, para o “diálogo e reconciliação” e não para a “a competitividade e rivalidade”. O modelo predominante da sociedade europeia contemporânea diz-nos que as crianças são ensinadas mais para ‘ter’ do que para ‘ser’”, alertou D. António Francisco dos Santos. Para o bispo do Porto as crianças são educadas, muitas vezes, “mais para a afronta e para a violência do que para a reconciliação, o diálogo, a mansidão e para a paz”. O modelo de sociedade atual “facilmente empobrece as pessoas” uma vez que retira generosidade e provoca “um vazio de sentido e uma ausência de esperança”, considera. D. António Francisco dos Santos disse aos participantes do II Encontro Nacional de Leigos, que a procura de liberdade, de comunhão e de paz é “atendida” com “objetos que o dinheiro compra”, mas que "o afeto do coração e a dádiva da vida não trabalharam suficientemente". “Por isso verificamos por entre tristezas, desilusões e medos que esta sociedade que aparentemente crescia depressa em bem-estar, progresso e abundância não cresceu em solidariedade, em respeito, em gratidão, em responsabilidade e em preocupação pelos outros”. Na homilia, o prelado da diocese do Porto explicou que um dos contributos “mais belos” do Evangelho à Humanidade consiste em ajudar o homem contemporâneo a “viver com um sentido mais humano” no meio de uma sociedade em mudança civilizacional e em “procura de felicidade e de esperança”. Na sua recente visita às Filipinas, o Papa Francisco mais uma vez mostrou a necessidade da humanização dos tempos que vivemos. Emocionei-me com o abraço que o Papa deu a uma menina filipina de 12 anos, Glyzelle Palomar, que viveu na rua até ser recolhida por uma ONG. Na sua intervenção ela, chorando compulsivamente, tinha perguntado a Francisco: “Há muitas crianças abandonadas pelos próprios pais, muitas vítimas de muitas coisas terríveis como as drogas e a prostituição. Porque é que Deus permite estas coisas, já que as crianças não têm culpa? Porque vem tão pouca gente ajudar?*”O Papa deixou o discurso preparado e improvisou: “Ela hoje fez a única pergunta que não tem resposta, e como não lhe chegavam as palavras teve de fazê-la com as lágrimas. […] Quando nos perguntarem porque sofrem as crianças (…) que a nossa resposta seja o silêncio e as palavras que nascem das lágrimas. […] Ao mundo de hoje faz-lhe falta chorar, choram os marginalizados, choram os que são deixados de lado, choram os desprezados, mas aqueles que temos uma vida mais ou menos sem necessidade não sabemos chorar. […] Certas realidades da vida só se vêem com os olhos lavados pelas lágrimas”. Isto exige uma limpeza geral dos olhos, da mente, do coração, das palavras e das acções. Talvez seja preciso, como disse Francisco, começar por “aprender a chorar!” As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada. Atentemos na reflexão que nos foi legada por Sophia de Melo Breyner Andresen: “A civilização em que estamos está tão errada que nela o pensamento se desligou da mão.” - Fátima, 9 de Fevereiro de 2015,- XV Encontro Nacional da Pastotal Penitenciária - Manuel Hipólito Almeida dos Santos – O.V.A.R. Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos - Porto