segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Tempo de Desassossego

Sendo a liberdade, a igualdade e a fraternidade os valores cimeiros que devem nortear todas as pessoas, importa analisar algumas das suas facetas e a real correspondência na actualidade tendo em conta a relevância que é dada à sua implementação. Mesmo numa abordagem sintética da história da humanidade encontramos, quase permanentemente, a presença de formas de escravatura nas diferentes relações económicas e sociais, com todo o seu cortejo de manifestações de violência, de exploração e de desumanidade, com grave atropelo à liberdade, à igualdade e à fraternidade. Também, ao longo da história, encontramos sempre relatos de protesto, de insubmissão e de revolta contra este tipo de aproveitamento do ser humano em proveito daqueles a quem coube o sortilégio de se situarem nos escalões mais elevados da escala social. Nos períodos seguintes às duas guerras mundiais do século passado, a corrente humanista que teve alguma importância no mundo conseguiu fazer aprovar a Convenção sobre a Escravatura em 1926 e a Convenção Suplementar sobre a Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e das Instituições e Práticas Análogas à Escravatura em 1956, nas quais os Estados assumiram compromissos de nunca mais autorizarem determinadas práticas desumanas nas relações entre as pessoas e nas instituições. Tais compromissos foram sucessivamente alargados e aprofundados em muitos instrumentos jurídicos internacionais das Nações Unidas, do Conselho da Europa, da União Europeia, da Organização Internacional do Trabalho, etc… E o que vemos neste início do século XXI? Será que os princípios subjacentes a estes referenciais jurídicos estão a ser respeitados? Infelizmente a resposta é negativa. O modelo de sociedade que hoje prepondera assenta em novas formas de escravatura e desumanidade que torna urgente a reflexão sobre a injustiça de uns viverem desafogadamente à custa do sofrimento e da míngua de recursos de muitos seres humanos. O desemprego, o trabalho precário, a prática de baixos salários, os horários de trabalho incompatíveis com a vida familiar, a substituição do direito ao trabalho pela liberalidade na rescisão do contrato de trabalho, são situações censuráveis que não encontram respaldo nas grandes orientações que devem balizar a convivência humana. Por outro lado, assiste-se ao reforço da exploração económica dos cidadãos com a prática de preços nos serviços públicos essenciais (habitação, água, energia, transportes, comunicações, etc…) que cerceiam o seu acesso a quem somente dispõe de recursos escassos, tornando, por exemplo, quem tem rendimentos próximos do salário mínimo em carenciados sem condições de vida digna. A situação social que caracteriza este início do século XXI coloca-nos em presença de novas formas de escravatura e de relações sociais desumanas, sendo urgente lançar um repto a todos aqueles que se encontram a viver desafogadamente no sentido de examinarem a sua consciência, reflectindo sobre se não os incomoda viverem num mundo tão desigual e desumano. Ainda por cima, quando o seu viver desafogado assenta, por exemplo, em possuir bens produzidos em países com condições laborais desumanas, em ter empregadas domésticas exploradas nas mais variadas vertentes, em ter o seu lixo recolhido por lixeiros de baixa remuneração, em ter as suas cartas entregues por carteiros precários mal pagos, e, cúmulo das contradições deste modelo de sociedade, em poder ter sangue disponível para quando precisar, dado, gratuitamente, em esmagadora maioria pelos mais pobres e necessitados. Que gratidão se vê para com estes explorados? Já pensaram no poder de que podem dispor as empregadas domésticas, os lixeiros, os carteiros, os dadores de sangue e outras pessoas socialmente desvalorizadas? E quando estas pessoas e outras do mesmo perfil decidirem usar o seu poder? Temos de rapidamente inverter este modelo assente em novas formas de escravatura e de práticas desumanas nas relações entre pessoas. A corrente que hoje domina, obsessivamente assente em primados economicistas de défices, dívida pública, mercantilização da saúde e da educação, competitividade selvagem e saque dos bens públicos, tem de dar lugar a uma nova ordem política, económica, social e cultural em que o ser humano seja efectivamente portador duma dignidade por todos reconhecida. António Sérgio dizia que “unicamente os bons cidadãos podem reivindicar com justiça os benefícios dum bom governo”. Com o modelo actual em que o que é importante é caçar votos, é irrelevante saber se são de bons cidadãos. Estamos numa nova faceta na luta pelo poder e no seu exercício, em que bons ou maus cidadãos são iguais instrumentos, servindo a prática do bem apenas para a paz de consciência dos que o praticam. Tudo isto em nome da eficácia dum modelo de sociedade fria, oca, tecnocrática, que só apraz a quem dela tem oportunidade de se aproveitar. Uma sociedade de mortos. Mortos de sentimentos, indiferentes, mortos de humanismo. Mortos ou narcotizados. Mortos ou anestesiados. Mortos ou inactivos. Mas mortos que votam! Já Afonso Botelho em “Origem e Actualidade do Civismo” dizia:“... . Na fraternidade profana em que vivemos só o acaso poderá permitir que a maioria coincida com o juízo de Deus ou com a razão verdadeira. Quase sempre corresponde a uma vitória do mais forte que não será, como é evidente, o mais justo. Por ser assim, é que encontramos tão frequentemente usada a expressão: maioria esmagadora. Não se repara, tal é o hábito, que ao usarmos esta expressão não estamos a fazer o elogio da maioria mas a condená-la como, assim desprevenida de qualquer virtude, efectivamente merece”. E Almada Negreiros dizia a propósito da Arte: “A opinião... abrange uma tão colossal maioria que receio que ela impere por esmagamento.” Uma sociedade assim conduz, inevitavelmente, à desigualdade, à insegurança e à repressão. E isto é visível nas nossas cidades e nos cidadãos. O leque entre ricos e pobres aumenta na sua acentuação, a segurança aparece como a principal aspiração de cidadania apesar de nunca ter havido tantos presos nas cadeias, a liberdade é cada vez mais, camufladamente, condicionada, as crianças continuam a serem maltratadas, etc,etc,etc... . A desigualdade no acesso ao desenvolvimento acentua-se, com o desencanto de se manipularem as estatísticas para demonstrar que o desemprego não é tão alto quanto isso. E como se fazem as estatísticas? E os que estão fora das estatísticas? E o crescimento do emprego precário? Não são seres humanos os arrumadores, os mendigos, os excluídos, os trabalhadores a recibo “verde”? É que de acordo com o artº lº da Declaração Universal dos Direitos Humanos “ Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”. A sociedade de hoje não pode explorar os seus cidadãos nem vê-los como potenciais criminosos ou delinquentes, vigiando-os e controlando-os. É inaceitável que se assista, à boa maneira orwelliana, à colocação de satélites e de câmaras de vídeo nas ruas das cidades, deixando a liberdade e a privacidade de qualquer cidadão à mercê de quem não sabemos. E não se diga que os inocentes não têm de ter medo. O simples facto de serem inocentes não os pode colocar como suspeitos. Os mecanismos de protecção dos cidadãos têm de ser encontrados no reforço da educação para a cidadania e não no aumento da vigilância e da repressão. Temos de dizer não à sociedade do medo, da intolerância, policial, repressiva e agressiva. O repensar, o discutir, o questionar do papel da sociedade e do cidadão é a chave para criação duma sociedade mais humana, em que o cidadão goste verdadeiramente de nela viver. Tendo acabado de se comemorar o 65º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importa ter presente que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes. Isto quer dizer que a eficiência económica não pode ter o primado do que quer que seja. Os cidadãos devem assumir-se como cidadãos enquanto é tempo. O pesadelo de George Orwell, em 1984, não deve ser o guia da sociedade e do cidadão.” Estamos em tempo de desassossego!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Salva-me, por piedade!

Amanhece no primeiro dia do ano de 2014. Os canais de televisão relatam as diferentes festividades de passagem do ano. Frivolidades, exibicionismos e ostentações enchem os écrans, ignorando os dramas, sofrimentos e dores que ainda há dias, no Natal, ocupavam esse espaço televisivo. No Natal o que vende é a lágrima ao canto do olho enquanto uma semana após o produto é substituído pelo divertimento da burguesia. Como é ridículo, hipócrita e desumano o comportamento duma franja alargada da sociedade. Num dos canais de TV exulta-se com o elevado share conseguido no seu programa de fim de ano com o último episódio da Casa dos Segredos. Como qualificar quem se deixa arrastar pela indigência de tais programas? Como podem os seres humanos descer tão baixo? E a isto soma-se a preferência, desde há muito tempo, por programas de igual calibre tais como jogos de futebol ou telenovelas escabrosas, que ocupam o 1º lugar nas audiências de todos os canais generalistas e em todas os grupos sociais, incluindo a denominada classe A! Estas audiências ouvem já, com indiferença e sem grande preocupação, as notícias que dão conta do agravamento dos males da sociedade. Desemprego, miséria, escravatura e todo o rol de desumanidades não preocupam, mais do que o tempo da notícia, esses telespectadores alienados. Até ao dia em que o infortúnio lhes bate à porta. Nesse dia querem para si todo o apoio do mundo, invocando até a intervenção divina. São onze horas da manhã deste dia de ano novo. O Canal Mezzo transmite o Requiem de Mozart. Acabou de ser cantado o movimento Rex Tremendae Majestatis que na sua parte final nos arrepia com a prece aflita ao Divino: “Salva-me, por piedade!” Será que os seres humanos que pautam as suas vidas pela mediocridade, indiferentismo e acefalia serão tocados pela aflição e também pedirão para serem salvos?