OS DEVERES SOCIAIS DE UM FRANCO-MAÇON - Maçonaria e Cidadania no Séc.XXI
OS
VALORES DA MAÇONARIA NO VOLUNTARIADO DAS ONGs - Uma Experiência Pessoal
A noção de
cidadania abrange toda a acção da vida social, ambicionando direccionar o
conjunto de direitos e deveres das pessoas, podendo-se entender a cidadania a englobar
posturas como reivindicações, interesse pela coletividade, envolvimento na
família, no bairro, no trabalho, na escola e, nomeadamente, com a participação
em associações.
O mundo assistiu, a partir do
início da segunda metade do século XX, a um florescimento de organizações,
ditas do terceiro sector, a um ritmo e dimensão tais que as tornaram um pilar
fundamental da vida em sociedade. Desde associações de direitos humanos,
ecologistas ou de defesa do consumidor, até às fundações, instituições de
solidariedade social e agremiações de beneficência, estas organizações dispõem
hoje dum poder que as torna apetecidas por quem detém o comando governamental
dos mais variados países. Muitas delas têm já ramificações internacionais que
as tornam verdadeiras multinacionais da sua área de actividade, ombreando em
capacidade de influência com muitas multinacionais da economia com fins
lucrativos. Não é por acaso que estas se envolveram nos últimos anos com
entidades agregadoras de políticas de responsabilidade social. Além das
conhecidas pela sigla ONGs (Organizações não Governamentais), outras existem com
um vínculo mais próximo do poder político, como as OIGs (Organizações
Intergovernamentais, como o Conselho da Europa), as OQGs (Organizações Quase
Governamentais, como certas Entidades Públicas), as OPGs (Organizações
Para-governamentais, como as Entidades Reguladoras) e outras com perfis de
maior ou menor independência dos Estados. Havendo, muitas vezes, uma fronteira
difusa entre estes tipos de organizações, que gerem bens e serviços de
interesse público e privado sem propósitos lucrativos, normalmente têm como
ponto comum o objectivo de prestação de serviço público. Um estatuto especial
deve ser concedido às organizações de cariz religioso, devido ao seu carácter
identitário reconhecido pelo ordenamento jurídico internacional, resultante do
poder espiritual que detêm sobre os seus fiéis e da capacidade económica que
supera a de muitos Estados.
Chegados ao segundo decénio do
século XXI interessante é verificar alguns passos da evolução histórica destas
organizações, assim como perspectivar o seu papel no futuro próximo. Tendo
muitas das ONGs nascido ligadas a nobres objectivos, esse seu cordão umbilical
tem-lhes garantido a sobrevivência apoiada em actividades que fazem a ponte
entre o passado e o presente. No entanto, mesmo que algumas das actividades que
desenvolvem continuem a ser de interesse para comunidade, a sua existência
tem-se vindo a tornar de grande relevância para a credibilização do sistema
político vigente (pretensamente democrático), tonando-se numa muleta
fundamental para a sustentação do modelo político-económico-social em vigor na
generalidade do mundo ocidental, perdendo o estatuto reconhecido ainda não há
muito tempo de organizações temidas pelas instâncias governamentais. Não é por
acaso que as ONGs estão a passar de organizações independentes e respeitadas
para parceiros que contestam algumas medidas mas não põem em causa os pilares
do sistema.
Na época dourada da explosão do
activismo genuíno (dos anos setenta aos anos noventa do século passado), as
ONGs nasceram fruto da constatação da necessidade da sua existência para
pressionar o poder político, no sentido das causas que estavam na sua
identidade pudessem merecer uma maior atenção, como entidades específicas de
âmbito nacional ou como ramos de organizações internacionais já existentes na
área de intervenção. A iniciativa da sua criação partiu dum conjunto de pessoas
idealmente motivadas por uma causa, sem interesses de espírito lucrativo ou de
poder pessoal. A adesão a essa entidade foi feita partilhando a comunhão dos
princípios, na base da igualdade associativa, quer na expressão de opiniões,
quer no acesso aos lugares de direcção. Esta era composta por activistas do
respectivo sector de actividade, exercendo os cargos directivos sem qualquer
remuneração ou incentivo monetário, em acumulação com a ocupação profissional
respectiva. A maioria nem sequer utilizava o direito de faltar ao trabalho nos
sectores em que o quadro legal tal permitia. As instituições traduziam uma
identificação total com as causas a que se dedicavam, sendo estas sustentadas
em princípios e valores de adesão profunda, gerando credibilidade e consistência
na sua aceitação. A sua gestão, que continha como receitas apenas as quotas dos
associados e algum eventual donativo, pautava-se pela defesa da causa como
objectivo quase único, sem obediências excessivas a critérios de rentabilidade,
de aplicações financeiras ou de constituição de património para rentabilização
de capital (por exemplo, a Amnistia Internacional Portugal tem, há anos, várias
centenas de milhar de euros em depósitos a prazo que deveriam estar a ser
utilizados em campanhas em prol das vítimas de direitos humanos). Esses
activistas pautavam-se pela dedicação generosa a causas no verdadeiro sentido
do termo.
Esta postura das instituições e
dos seus dirigentes tem vindo a sofrer uma desvirtuação profunda. Por um lado,
as ONGs tendem a tornar-se dependentes do modelo economicista, quer em sistemas
de gestão, quer na implementação de regras dos mercados de que a angariação de
fundos é um exemplo. A ética dos processos e as causas de base da existência
das ONGs ficaram hipotecadas a este modelo (O Clube Bilderberg integra nas suas
reuniões anuais membros das mais influentes ONGs mundiais). Por outro lado, os
seus dirigentes e ativistas tendem a deixar de ser militantes da causa mas sim
interesseiros nos resultados e nos processos utilizados. A gestão e vivência no
interior das organizações passaram a incorporar muitas práticas das empresas de
teor neoliberal, quase apagando a base humanista que as devia nortear.
A esta mudança do paradigma de
funcionamento não escapam ONGs que granjearam credibilidade e cujo prestígio
obtido permite ainda alguma notoriedade pública. Quase se pode dizer que vivem
à custa do capital de reconhecimento alcançado no passado. São disto exemplo
ONGs de direitos humanos, sindicais, de defesa do consumidor, de serviço à comunidade
e de certas obediências da Maçonaria, cujas práticas utilizadas, na importância
que é dada à sobrevivência institucional, à gestão financeira, à angariação de
fundos e à constituição de provisões e aplicações financeiras de montantes
excessivos e em instituições financeiras de duvidosa postura ética, ou no
recrutamento de novos membros/associados sem identidade ideológica, quase faz
parecer que o que é importante é ter muitos associados e o recebimento do valor
da jóia e quotas, ou, ainda, utilizando na sua estrutura de funcionamento
posturas pouco recomendáveis na gestão de pessoal, recorrendo a trabalhadores
precários e/ou independentes ao arrepio das funções efectivamente exercidas.
Muitas ONGs estão a passar de organizações fraternas a organizações quase sem
calor, sem afecto, sem amor, sem alma, tratando as temáticas do seu objecto
social quase de forma tecnocrática, ainda que este trabalho continue a
revelar-se de interesse para a comunidade. Tal pode ser constatado no
apagamento que se assiste nestas organizações perante o atropelo em curso das
mais elementares regras de cidadania, apagamento esse que se torna conivente
com uma vivência em sociedade ao arrepio dum todo harmonioso.
A par com a evolução de filosofia
de gestão, tem-se vindo a assistir, também, a uma alteração nas relações entre
associados, dirigentes e funcionários dos secretariados. Como exemplos podem-se
evidenciar a diminuição abissal da participação dos associados na vida das
instituições, a “profissionalização” e a pouca rotação de muitos dirigentes,
assim como o poder dos seus secretariados.
Relativamente à diminuição do
contributo dos associados tal pode ser constatado com a escassa participação
nas assembleias gerais e nos actos eleitorais nos casos em que essa
participação tem carácter voluntário. Basta referir que três grandes ONGs, como
são a secção portuguesa da Amnistia Internacional (A.I.-P.), a DECO –
Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor e o Automóvel Clube de
Portugal (ACP), com muitos milhares de associados, tiveram as suas últimas
assembleias gerais, de aprovação de contas e de planos de actividades, com a
presença de poucas dezenas de sócios. Noutras organizações, como, por exemplo,
os clubes rotários, as eleições e a decisão dos planos e contas das governadorias
distritais e da fundação rotária são feitas pelos clubes e seus delegados e não
pela universalidade dos companheiros, estando a participação nas assembleias e
conferências distritais muito abaixo do total de companheiros existentes em
todos os clubes rotários. Recuando no tempo, verifica-se uma alteração
significativa nessa participação, diminuindo a participação democrática dos
associados na vida das entidades a que aderem.
Um outro factor preocupante na
cristalização da vida associativa prende-se com a reduzida rotação de
dirigentes. Isto deriva da já referida pouca participação dos associados, do
“assalto e conservação” do poder pelos dirigentes instalados e da
especialização do exercício das funções directivas que dificulta a ascensão de
novos dirigentes. Acresce a isto que a manutenção em exercício dos mesmos
dirigentes interessa ao poder político/económico, pois as relações pessoais que
se vão criando inibem posturas de contestação que se justificariam em certas
circunstâncias. Esta relação facilita a promiscuidade crescente entre entidades
que se quereriam independentes, deixando uma imagem de hipocrisia nalguns ditos
defensores dos direitos ambientais, humanos, do consumidor ou do sector social.
Já sobre o poder crescente dos
secretariados das ONGs (funcionários e dirigentes com funções executivas) tal
tem a ver com a especificidade do seu trabalho que faz com que, ao fim de pouco
tempo, raros são os associados que conseguem manter-se actualizados e operantes
em pé de igualdade com os membros dos secretariados que, trabalhando a tempo
integral, acompanham e participam nos assuntos a um nível difícil de acompanhar
por associados que apenas dedicam alguma parte do seu tempo livre.
Também se vem assistindo, desde há
alguns anos, à “tomada do poder” por dirigentes/funcionários com interesses no
poder político/económico, actuando, muitas vezes, como “comissários” destas
entidades, além de utilizarem a sua ligação às ONGs para potenciarem e subirem
nas suas carreiras profissionais, nos sectores privado e público.
Assiste-se, ainda, à utilização
abusiva de voluntários para funções de carácter profissional inerente às
necessidades essenciais do funcionamento das ONGs, assim como ao uso condenável
de contratos de trabalho precário e de trabalho a termo certo para funções
permanentes dos secretariados. Como exemplo, ainda recentemente o presidente da
Cruz Vermelha Portuguesa divulgou que esta instituição tem 1.300 funcionários e
entre 7.000 a 13.000 voluntários. Maquiavelicamente, tem-se vindo a assistir a
este alastrar de utilização de mão de obra gratuita, que consubstancia uma
prática análoga à escravatura, de que o exemplo recente de aplicação de penas
de prestação de serviços à comunidade a que alguns condenados em processo penal
são sujeitos, permite às entidades onde são colocados (muitas delas ONGs)
utilizá-los no seu trabalho quotidiano sem encargos e obrigações inerentes a um
trabalhador normal. E aquilo que poderia ser uma medida positiva (evitar o
cumprimento da pena em estabelecimentos prisionais, instituições estas que que
são um resquício de organizações medievais de tortura e degradação do ser
humano), acaba por ter os efeitos perniciosos de permitir a utilização de
trabalho escravo.
Já não é com surpresa que se
assiste a um incremento das relações promíscuas entre muitas ONGs e entidades
do poder político/económico. O afastamento da preocupação pela fidelidade aos
princípios, a tomada do poder por dirigentes com pouca exigência ética e
sensíveis às benesses desse poder, assim como o assédio que as ONGs sofrem por
parte daqueles de quem deviam ser os juízes e os escrutinadores, têm-nas
tornado cada vez mais marionetes e serviçais da estratégia do poder
político/económico. O estreitamento dos vínculos faz com que já se tenha
perdido o temor e o respeito que as ONGs detiveram até um passado recente.
Temor pela denúncia dos atropelos aos direitos dos cidadãos, que obtinha
cobertura relevante nos órgãos de comunicação social, e respeito pelo carácter
íntegro das organizações e seus dirigentes. Quase se pode dizer que se inverteu
a relação de temor, parecendo que hoje são as ONGs que têm medo de ofender o
poder político-económico-financeiro.
Este estreitamento de relações
conduz já à fusão de interesses, nomeadamente na gestão das participações financeiras
das ONGs. Esta preocupação na constituição de activos e sua gestão leva a que
não se olhe à credibilidade das instituições com quem se negoceia. Prova disto
são as aplicações de vulto que as ONGs fazem em bancos e instituições
financeiras envolvidas em actos censuráveis do ponto de vista ética e até
criminal. Basta referir as entidades envolvidas na “Operação Furacão” e “Monte
Branco”, que ainda decorre em Portugal, possuidoras de aplicações de ONGs,
assim como da descoberta dos activos de grande risco destas ONGs, aquando do
descalabro do Lehman Brothers, que pôs em causa programas fundamentais da vida
das instituições, de que é exemplo o caso de Rotary International cujas perdas
financeiras levaram à redução e suspensão de programas em curso na altura.
Estas aplicações financeiras foram reconhecidas como de grande risco,
inaceitáveis em organizações que querem fazer com que o rigor e idoneidade
sejam parte importante da sua imagem pública.
À vulnerabilidade que atitudes
deste tipo arrastam para as ONGs acrescem os privilégios que lhes têm vindo a
ser atribuídos pelo poder político, nomeadamente de natureza fiscal e de
benefícios específicos de natureza material e pessoal, afectando a
independência que devia ser a bandeira dessas organizações e dos seus
dirigentes e associados. Disto são exemplo as múltiplas formas de subsídios
para parcerias, acções de formação e estágios profissionais, e os apoios para a
realização de acções que visam colmatar insuficiências na sua área de
intervenção, revelando um oportunismo pouco consentâneo com a elevada postura
ética exigível a organizações que se querem credíveis, acções estas difíceis de
denunciar politicamente já que são tratadas de forma abonatória pela opinião
pública.
Para a afectação da imagem de
independência, isenção e imparcialidade das ONGs tem contribuído,
significativamente, a acção dos diferentes tipos de lobbies que se têm desenvolvido a um ritmo sempre crescente. O lobby gay e as variantes LGBTI, o lobby
económico, o lobby ambientalista, o lobby militar, o lobby social enquadrado
pelas IPSS, etc…, são hoje forças poderosas que influenciam fortemente o poder
político e condicionam as ONGs que operam nessas áreas (em Portugal tivemos um
exemplo recente com o projecto de lei sobre a coadoção, em que o que se relevou
foi a defesa da não discriminação dos casais do mesmo sexo, quase omitindo que
o que estava em causa, fundamentalmente, eram os direitos das crianças, já que
são estas que têm o direito a serem adotadas e não são os adultos que têm o
direito de adotar. O lobby LGBTI quase conseguiu apagar a abordagem pelo lado
dos interesses das crianças, parecendo que estas eram mera mercadoria). Aliás,
muitas destas ONGs já estão a ser orientadas e dirigidas por esses lobbies em
muitas das suas posições. Para este facto muito contribui a dependência destas
ONGs dos apoios institucionais que obtêm, quer seja de natureza económica, do
recurso ao trabalho voluntário ou do próprio marketing da sua promoção. O poder
dos lobbies na vida da ONGs leva já à
participação de grandes multinacionais nas suas actividades, gerando um pântano
que já ganhou direito a denominação atractiva como são as políticas ditas de
responsabilidade social. Para promover este pântano constituem-se entidades,
como são a BCSD Portugal e a GRACE Portugal, agrupando grupos económicos
poderosos, que, sob a capa do altruísmo, albergam empresas frequentemente alvo
de denúncias de comportamento censurável. Basta consultar os sítios na Internet
destas entidades para termos conhecimento de quem quer fazer passar a mensagem
de que pratica políticas de responsabilidade social, ao mesmo tempo que
praticam dumping social, trabalho precário, salários de miséria, marketing
pouco ético, etc .
A evolução desta estratégia dos lobbies leva a que o próprio poder
político acabe por ficar refém e, até, interessado nesta conjugação de
interesses entre os lobbies e as ONGs, colocando estas como entidades
credibilizadoras do sistema político vigente.
Condicionadas as ONGs, mais à
vontade ficam os Estados para a execução de políticas autoritárias e
desrespeitadoras dos direitos dos cidadãos, passando a serem Estados que se
impõem pelo temor. Esta liberdade de acção para os Estados permite-lhes gerir a
manipulação da opinião pública, escamoteando temas que lhes possam ser
incómodos. Como exemplo, refira-se o baixar de braços relativamente às
dependências das drogas, com a irrelevância das campanhas de esclarecimento e
dissuasão, nomeadamente nas escolas que, com esta inacção, abrem campo ao
arrebanhamento dos jovens tornando-os vítimas duma praga de que dificilmente se
libertarão.
A importância destes lobbies acaba
por ditar a agenda política das ONGs, colocando os seus temas na primeira linha
da actualidade e não deixando espaço para outros temas mais relevantes mas que
não servem ou seus propósitos e interesses. Como exemplo refira-se a
insuficiente importância que a problemática dos direitos humanos das crianças
tem nos programas nacionais e calendário das organizações de direitos humanos,
comparativamente com as causas em que lobbies poderosos estão instalados nessas
organizações. Um outro exemplo pode ser a imposição da concorrência como o
primado da defesa dos consumidores que tem vindo a ser seguido pela
generalidade das associações de consumidores, colocando em plano secundário, ou
até esquecendo que há bens e serviços que não podem ficar sujeitos à selva da
concorrência, de que são exemplos a água, a energia e a generalidade dos
serviços públicos essenciais – o argumento de que entidades reguladoras poderão
disciplinar os sectores em questão tem-se revelado uma falácia. Acresce ainda a
dependência dessas entidades reguladoras do poder político, quer na nomeação
dos seus responsáveis, quer do quadro legal que cerceia a sua independência e
capacidade de decisão. A ineficácia, que estas entidades reguladoras e de
supervisão têm vindo a demonstrar, está patente na realidade escandalosa que se
vê no sectores financeiro, dos combustíveis, das telecomunicações, da energia,
etc…, fazendo-se acompanhar de igual ineficácia nos mecanismos judiciais que
são chamados a ajuizar os procedimentos praticados.
Uma das mais significativas
alterações no quotidiano das ONGs centra-se no deslocar do enfoque das
motivações nos ideais para a nova palavra na moda que é a governança. Esta
preocupação pelas novas técnicas de gestão utilizadas nas instâncias do poder
económico-financeiro aproxima, também aqui, as ONGs dessas instâncias,
fazendo-as dedicar parte significativa dos seus recursos à governança,
fragilizando a sua dedicação prioritária às causas que foram a sua génese. A
prova encontra-se nos recursos humanos dedicados a este modelo de gestão e nos
meios que lhe são postos à disposição, assim como na consideração que é dada à
angariação e aplicação dos meios financeiros, retirando capacidade ao trabalho
da causa que deveria ser a sua principal motivação.
Este enfoque da governança em
detrimento do objecto que deveria ser a razão de ser da existência, é mais um
fator de afastamento dos associados, já que o excessivo tempo e energia que se
despende afeta a mobilização e a participação dos associados, sendo mais uma
machadada na democracia que devia imperar no seu quotidiano.
Uma das consequências deste
primado da governança reflete-se no peso crescente das despesas de estrutura
nos custos de funcionamento das ONGs, diminuindo cada vez mais a quota parte
das disponibilidades financeiras para as ações que são a razão de ser da sua
existência. As próprias acções de angariação de fundos, com um poder de sedução
resultante duma formação dos angariadores assente nas mais eficientes técnicas
de marketing, acabam por se traduzir num peso financeiro elevado que consome
uma parte significativa dos fundos angariados. Aliás, esta é, também, uma das
profissões nascidas nos tempos recentes, havendo angariadores que durante um
ano surgem em acções diferentes de entidades de combate a doenças específicas,
organizações de direitos humanos, associações de benemerência, etc…, fazendo
com que a sua ligação às entidades em que participam tenha apenas um conteúdo
profissional (de natureza precária e pontual na maioria dos casos), sem que se
estabeleça uma verdadeira empatia com a causa das organizações em que
participam. Mesmo naqueles que o fazem em regime de voluntariado, já é visível
algum cansaço e desmotivação em muitos casos.
Esta importância crescente do peso
da estrutura das ONGs leva a que os seus dirigentes acabem por gastar muito do
seu tempo disponível nas exigências da gestão, dedicando cada vez menos tempo
aquilo que é o objecto da entidade, o que faz com os dirigentes estejam a ser
suplantados pelos secretariados na definição e execução das políticas a serem
desenvolvidas.
Uma das outras consequências da
importância dalguns modelos de governança reflete-se nas despesas financeiras
bancárias de gestão, já que a passagem de ativos volumosos pelo sistema
bancário envolve pagamentos de comissões de cobrança, de gestão de aplicações
da conta e de transferências bancárias de dimensão significativa,
ultrapassando, muitas vezes, o rendimento das aplicações financeiras (depósitos
à ordem, a prazo, subscrição de títulos, etc…) que as ONGs utilizam para
rentabilização dos capitais disponíveis.
A importância económica de muitas
ONGs está a torná-las, em muitos casos, verdadeiras “empresas” muito
semelhantes na gestão às empresas com fins lucrativos, tonando-as apetentes
para o poder político no sentido de as colocar na sua órbitra de influência.
Por isso se assiste ao namoro sub-reptício a que são sujeitas pelo poder político-económico-financeiro.
Ainda não há muitos anos as ONGs
caracterizavam-se por serem organizações que viviam das quotas dos seus
associados e do voluntarismo dos seus dirigentes, dedicando-se exclusivamente à
causa para que foram criadas, com um secretariado reduzido ao mínimo tendo em
conta que uma grande parte do trabalho era efectuado graciosamente pelos seus
dirigentes. A importância da gestão económica não era prioritária e a área
financeira quase só se limitava às receitas e despesas correntes (Quando muito
faziam-se algumas aplicações em depósitos a prazo mas sem peso significativo na
dimensão global da associação). Na actualidade, não só os dirigentes quase
deixaram de trabalhar na vida quotidiana das associações, agora servidas por
secretariados profissionais com alguma dimensão, como passaram a exigir
volumosos meios financeiros cuja gestão segue o modelo que privilegia as
aplicações de capitais, mesmo que tal redunde em diminuição das acções em prol
da razão de ser da entidade.
Esta característica, agora
relevante, aumenta o apetite do poder político-económico-financeiro pelo seu
controle, infiltrando com os quadros dos seus aparelhos os órgãos de direcção e
secretariados das ONGs. Esta interpenetração facilita a permuta e o acesso a
processos de obtenção de meios financeiros, de que a utilização de fundos para
formação e realização de estudos e projetos são exemplos nalguns casos. Acresce
a realização de campanhas de angariação de fundos, com ampla cobertura pública,
assim como a venda de produtos com algum tipo de associação ao objecto da
entidade. Por outro lado, à medida que a organização adquire dimensão abre-se o
campo para a celebração de protocolos com entidades fornecedoras de bens e
serviços, o que contribui para o aumento da sua dimensão económico-financeira,
alargando a apetência para a sua tomada de poder e controle.
A análise dos relatórios e contas
destas entidades corrobora esta asserção. Não só as despesas para a manutenção
dos secretariados e dos dirigentes profissionais adquirem uma dimensão
significativa, como, nalguns casos, as aplicações financeiras, nos diversos
instrumentos colocados à disposição pelas entidades bancárias e afins, assumem
valores relevantes.
Em síntese, podemos afirmar que
existem ONGs cuja dimensão económico-financeira as coloca no campo das grandes
organizações da economia com fins lucrativos, exigindo dirigentes e
secretariados com competências técnicas de gestão que não necessariamente no domínio
para que foram criadas, restringindo o activismo e a percepção da vida da
entidade.
O momento histórico que
atravessamos caracteriza-se por uma falsa denominação de democracia nos regimes
políticos do mundo dito civilizado (nos noutros países a cleptocracia, o
despotismo e as ditaduras das mais diversas matizes marcam a sua presença
indisfarçável), característica esta que se estende a muitas ONGs.
E assistimos à denúncia dessa
falsidade, da prática de políticas ao arrepio dos compromissos assumidos, inclusivamente
por organizações intergovernamentais, como por ex; o Conselho da Europa, o
ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados), a OCDE, etc…
.Um dos exemplos mais chocantes passa-se no sistema educativo em que, apesar
das denúncias destas entidades de que as crianças e os jovens não estão a ser o
foco das políticas educativas, os governantes insistem no modelo ultrapassado
do ensino predominantemente expositivo, ignorando que os jovens de hoje
adquirem a maioria da sua formação através das tecnologias de informação e
comunicação. Este exemplo, que se pode alargar a outros como a Universidade
Aberta, Canais de TV temáticos, motores de busca direccionados, etc. que,
utilizando meios audiovisuais mais assertivos, profundos, disponíveis e
abrangentes do que qualquer aula presencial, mostram como o êxito do sistema de
ensino está a ser posto em causa por políticas míopes centradas num
economicismo de curto prazo que hipoteca o futuro das novas gerações, violando
o direito à educação constante de referenciais jurídicos internacionais a que
os Estados estão obrigados e provocando o afastamento acelerado do sistema de
ensino da realidade quotidiana.
E perante isto o que fazem as
ONGs? Algumas delas limitam-se à defesa dos interesses corporativos dos seus
profissionais e associados, enquanto outras entram em jogos de negociação
defraudando a confiança que nelas se depositou para a defesa intransigente dos
direitos dos cidadãos (adultos, crianças e jovens).
Será isto próprio de sistemas políticos
que se dizem democráticos e de ONGs que deveriam ser instrumentos de
fiscalização e de pressão sobre estas práticas? Porque será que a abstenção é
cada vez maior nas eleições nacionais e nas das ONGs? Porque será que as
Assembleias Gerais das ONGs são participadas por tão reduzido número de
associados que, muitas vezes, não chegam sequer ao número dos que compõem os
órgãos sociais?
Importantes ONGs, tal como
actualmente existem, não são organizações democráticas no seu funcionamento
real. Convocam assembleias gerais (já não por carta mas por anúncio nas suas
revistas ou por email), realizam eleições, difundem comunicados, editam
revistas ou newsletters, mas os associados pouco ou nada participam. Em
consequência, há pouca rotatividade de dirigentes, provocando a tomada do poder
por militantes com interesses diretos nessa qualidade, como trampolim para
outros voos, introduzindo uma promiscuidade de interesses nada prestigiante
para o objecto específico da ONG.
No que toca ao papel das ONGs ligadas
às confissões religiosas, é inegável a sua importância na formação da opinião e
das posturas dos cidadãos em todas as áreas da vida em sociedade. Com a
importância que lhe é reconhecida destaca-se, em Portugal e em muitos outros
países, a Igreja Católica. Com a sua organização multifacetada, cobrindo
praticamente todos os domínios, a Igreja Católica influencia não só os seus
fiéis, como, também, os órgãos de poder e as próprias ONGs. E não se diga que
esta influência é homogénea pois tal não se verifica. A própria Igreja Católica
tem no seu seio uma multiplicidade de organizações com formas de pensamento e
acção muito distintas. Bastará referir o movimento internacional “Nós Somos
Igreja” que é favorável à ordenação de mulheres, ao casamento de padres e tem
uma posição de abertura à discussão sobre o aborto. Ou um outro exemplo é a
Sociedade de S. Vicente de Paulo cuja sede internacional é em Paris e não em
Roma, sendo os seus dirigentes eleitos a todos os níveis pelas bases
respectivas (A Regra da Sociedade de S. Vicente de Paulo não permite que padres
desempenhem cargos dirigentes na organização, aconselhando todavia a existência
de padres como conselheiros espirituais). Esta diversidade, desconhecida da
generalidade da opinião pública, permite uma intervenção alargada e transversal
em todos os setores da sociedade, influenciando o poder
político-económico-financeiro e alargando o seu âmbito de poder a todos os
níveis. Não ignorando a caracterização política do Vaticano como cidade-Estado,
com representações diplomáticas em quase todos os países do mundo, as suas
organizações que atuam dentro de cada país assumem um papel da maior
relevância, atuando, em muitos casos, com total independência da hierarquia da
Igreja Católica e mesmo, até, com posições divergentes. Por isso se diz, com
plena propriedade, que os maiores críticos da Igreja estão dentro dela própria,
com a particularidade de saberem do que falam.
A dimensão humana e
económico-financeira é extremamente relevante. Por exemplo, estima-se que as
IPSS em Portugal, na maioria ligadas à Igreja Católica, empreguem mais de
200.000 pessoas, tonando-as um lobby poderoso e incontornável para qualquer
governo, já que só na denominada economia social gravitam cerca de 50.000
organizações que, recebendo, do Estado, cerca de mil e duzentos milhões de
euros por ano, movimentam anualmente cerca de três mil milhões de euros. A
acção das organizações ligadas à Igreja Católica estende-se, através das
dioceses ou de instituições eclesiais, a 24 hospitais; 136 ambulatórios e
dispensários; 908 casas de idosos, doentes ou deficientes; 102 orfanatos ou
centros de infância, 602 creches; 90 consultórios e centros de defesa da vida e
da família; 29 centros especiais de educação ou reinserção social e 496 outras
instituições (Dados de 2014). Acresce ainda a multiplicidade em que se
desdobram as instituições, tomando, por exemplo a Sociedade de S. Vicente de
Paulo que, através dos seus 15.000 membros, agrupados em cerca de 1.000
conferências vicentinas, apoia os mais pobres e necessitados em todo o país.
Uma parte significativa das
organizações religiosas têm regimes fiscais específicos. Em muitos casos de
isenção de impostos e, até, de não exigência de contabilidade organizada,
ficando-se pela escrita de “merceeiro” do Deve e Haver. Muitas das suas
angariações de fundos e de bens não têm qualquer suporte de passagem de recibo
formal nem comprovativo de recebimento com as características fiscais
exigíveis, confiando-se na idoneidade das pessoas intervenientes.
Muitas das considerações referidas
para as ONGs aplicam-se, também, às organizações ligadas às confissões
religiosas, acrescendo-lhes a sua particularidade específica.
Do exposto ressalta a necessidade de repensar a cidadania na base
do voluntariado nas ONGs, aprofundando a prática efectiva da liberdade,
igualdade e fraternidade no seu quotidiano. A Maçonaria não se pode alhear da
importância e influência dessas organizações, sob pena de apagamento dos seus
valores na condução dos destinos da sociedade.
Como nos exorta o filósofo contemporâneo Michel Onfray “Mais do que nunca, a tarefa da filosofia é
resistir, mais do que nunca ela exige a insurreição e a rebelião, mais do que
nunca ela deve incarnar os gérmenes da insubmissão.”
A Maçonaria deve ser insubmissa perante os
atropelos aos seus valores e impulsionar
a sua integração em todas as formas de cidadania.
Porto, 18 de Março de 2017
Manuel Hipólito Almeida dos Santos
Nota:
Esta comunicação contém excertos
do livro (ebook), de minha autoria, com o título “ONGs – Passado e Presente.
Uma experiência pessoal”
ISBN:
978-989-20-4973-1
eBook - http://www.leyaonline.com/pt/pesquisa/pesquisa.php?chave=ONG