terça-feira, 21 de abril de 2020

Depois da Tragédia



É consensual definir a tragédia “como uma forma de drama que se caracteriza pela sua seriedade e dignidade, pondo frequentemente em causa os deuses, o destino ou a sociedade (Wikipédia)”. O que temos visto, recentemente, em Portugal e em variados países do mundo, é uma tragédia sustentada na ameaça da Covid19, já que o poder político, revestido de ar sério, pôs em causa a estrutura da vida em sociedade, com a cobertura amestrada da maioria dos órgãos de comunicação social.
Num curto espaço de tempo, de poucas semanas, assistiu-se ao estabelecimento de Estados de Emergência, com a suspensão e alteração do direito à liberdade de circulação e do direito de resistência, com a legitimação do uso do poder arbitrário pelas forças policiais baseado em “acções musculadas”, com o caos no funcionamento do sistema produtivo, com o drama nas vidas das pessoas afectadas, com a alteração profunda nas relações sociais e com a imposição do poder totalitário do Estado.
Este estado de coisas implementou-se rapidamente, com a aquiescência receosa da esmagadora maioria das pessoas, já que o medo da morte, em consequência de eventual contágio, impôs-se de forma absoluta. De nada valeram algumas objecções levantadas por um pequeno grupo de pessoas, suportadas pela relativização das implicações apontadas e pela gravidade das consequências das medidas tomadas. A pandemia do medo suplantou, inclusivamente, a pandemia da Covid19, esquecendo, deliberadamente, que viver tem riscos e que a morte é o fim natural dos seres vivos. George Orwell, há quase um século, enfatizou que “O importante não é mantermo-nos vivos, é mantermo-nos humanos”. Ora, esta pandemia do medo sobrepôs a vontade de viver, ainda que seja sobre a desumanidade imposta aos outros seres humanos. Foi a vitória do egoísmo sobre a fraternidade.   
Como consequência, o poder político retirou enormes proventos da situação, já que ao apoiar essa esmagadora maioria de pessoas medrosas, atraiu-as para o seu espaço político, com o consequente crescimento eleitoral. Ficou-se a saber que um grande argumento para a atração de simpatias pode ser a utilização do medo como fator mobilizador.
Estamos, agora, a um passo de alterar o Estado de Emergência, não se sabendo, ainda, se a tragédia vai acabar ou, apenas, atenuar-se. Importa, todavia, alertar para princípios basilares que devem nortear toda a acção humana, em quaisquer circunstâncias.
O futuro próximo tem de ser construído no respeito pelos direitos humanos universalmente consagrados, construídos na segunda metade do século XX e constantes, nomeadamente, na Declaração Universal dos Direitos Humanos e normativos jurídicos dela derivados (Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais, Convenção dos Direitos da Criança, Convenção Europeia dos Direitos Humanos, etc…), tendo em conta que, de acordo com a Declaração de Viena das Nações Unidas de 1993, todos os direitos humanos são iguais, universais, indivisíveis e interdependentes (por exemplo, a vida é tão importante como a liberdade ou a educação, nem mais nem menos). Neste sentido, há que respeitar princípios que estão a ser desrespeitados dentro do Estado de Emergência, nomeadamente, repondo a liberdade de circulação, o direito de resistência e a não discriminação em razão da idade (é aviltante a forma como estão a ser discriminados os idosos, infringindo gravemente o direito à igualdade na dignidade). Como exemplos extremos do carácter desumano imposto pelo Estado de Emergência, podem-se citar as restrições na prestação de assistência a familiares e amigos internados nos hospitais e a cumprir penas nas prisões, ou na participação nos funerais dos que nos são queridos, assim como no acesso à igualdade na educação, já que se agravaram as desvantagens das crianças oriundas de famílias pobres com as novas modalidades de ensino adotadas, além da destruição significativa de postos de trabalho lançando na pobreza e exclusão social largas camadas da população.            
Importa, ainda, aproveitar a oportunidade para implementar uma nova ordem política, económica, social e cultural, assente nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, já que o modelo anterior à pandemia do medo (Covid19), assente, de forma crescente, na escravatura e exploração de seres humanos criando desigualdades gritantes, se estava a afastar dos referenciais humanistas subjacentes aos normativos de direitos humanos atrás mencionados. Tenhamos em conta que a democracia não se esgota em eleições livres e periódicas, nem na vontade totalitária da maioria.
Relembremos o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”

Porto, 21 de Abril de 2020

Manuel Almeida dos Santos

Sem comentários: