sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Retrato – Um dia no verão de 2015

Estamos a entrar no final de Agosto (dia 21). Decidi dedicar o dia de hoje a uma dupla função: testar a minha resistência física a uma grande caminhada e ver, com olhos de ver, o que encontrasse pelo caminho. Esteve sol durante todo o dia e quando saí de casa na Quinta das Rosas (Vilar do Paraíso-V.N.Gaia), pelas 12 horas, o calor ainda não era muito. Tinha decidido fazer todo o percurso a pé até à FNAC Santa Catarina no Porto, pelo tabuleiro superior da ponte de D.Luís I, regressando pela ribeira e tabuleiro inferior da ponte. Aproveitaria a caminhada para tratar de três assuntos: trocar o telecomando avariado da TV; fotografar o brasão da família Ferraz Bravo existente na frontaria dum palacete na Rua das Flores no Porto (para executar uma encomenda de peça cerâmica com esse brasão pintado) e comprar sacos plásticos num armazenista da Rua General Torres em Gaia. Foram, na ida e volta, cerca de catorze quilómetros percorridos em três horas e meia. O primeiro objectivo, testar a resistência física, foi alcançado sem grande dificuldade A caminhada foi feita em passo de passeio e o corpo aguentou-se sem queixas de maior. Estou em forma! O segundo objectivo tem mais que contar. Saí pela urbanização da Quinta das Rosas (que não sofreu qualquer alteração nos últimos 20 anos) na direcção do Bairro das Quatrocentas, através da rua de ligação onde, até há cerca de 10 anos, havia um núcleo de barracas de ciganos que o anterior presidente da câmara conseguiu, inteligentemente, promover o realojamento das famílias que lá se encontravam em bairros sociais, mais ou menos pacificamente. Tomei a direção do Largo de Santo Ovídio pela rua nascente do Bairro do Cedro, subindo a escadaria que dá acesso à parte sul da estação do metro, atravessando a rua que liga à auto-estrada A1. Neste percurso nada há a notar de significativo. Iniciei a descida da Avenida da República, onde são notórias as alterações que tem vindo a sofrer: substituição das moradias que foram a habitação tipo moradia até há cerca de 50 anos por prédios de vários andares; eliminação da placa arborizada do eixo central de toda a avenida por um corredor desarborizado por onde circula o metro (substituiu o carro eléctrico que circulou na avenida durante mais de meio século); surgimento dum espaço de maior movimento entre o edifício do Corte Inglês e os paços do concelho de V.N.Gaia. É uma avenida sem identidade marcante que ganha alguma notoriedade a partir do jardim do morro com a entrada no tabuleiro superior da ponte de D. Luís I e, aqui, o movimento de turistas marca significativamente, atraídos pela paisagem que se desfruta, quer a nascente, quer a poente. O mosteiro da Serra do Pilar, agora convertido em quartel militar, mesmo junto à ponte parece não aproveitar muito do caudal humano que nesta transita. Na saída da ponte para entrada no Porto o troço de rua continua, desde há muitos anos, a ser caracterizada por um espaço nada atractivo, feio e desmazelado até ao cruzamento para a sé catedral. Tomei a direcção da Rua Chã rumo à Praça da Batalha. Esta Rua Chã, outrora caracterizada por ter muitas casas de prostituição e a sede da maçonaria no Porto, está agora transformada em espaço onde reinam as casas comerciais que vendem artigos importados do oriente (China e Paquistão nomeadamente) a par com os sobreviventes gravadores, sapateiros, correeiros, peleiros, e casa de comes e bebes onde se destaca a adega Louro com o seu famoso presunto, restando ainda algumas casas onde a mais velha profissão do mundo assenta arraiais. À entrada na Praça da Batalha dá-se o impacto com as massas turísticas que, neste período de verão, inundam toda a baixa da cidade do Porto, desde esta praça até aos Clérigos e desde os Paços do Concelho do Porto até à ribeira. Este turismo, que se assemelha a uma praga, tomou conta desta parte da cidade e deve-se analisá-lo economicamente e sociologicamente. Por um lado está a impulsionar a recuperação arquitectónica da zona que estava em estado adiantado de degradação, de que a Rua das Flores e a Rua Mouzinho da Silveira são exemplo. Por outro lado, está a contribuir para a transformação do comércio tradicional lá existente em cafés, restaurantes e lojas de souvenirs incaracterísticos, com a consequente modificação, para pior, dos recursos humanos lá empregues, já que os empregados dos estabelecimentos agora existentes são, na sua maioria jovens com vínculo precário ou sem vínculo, salários muitos baixos e pouca perspectiva de futuro, apesar de muitos deles terem boa qualificação académica. Esta alteração do modelo económico nesta zona da cidade, que se pode replicar noutras zonas e noutras cidades do país, traz profundas implicações de sustentabilidade e rentabilidade. De sustentabilidade porque rebaixa o potencial das pessoas que emprega hipotecando o seu futuro e retirando potencialidade aos sectores onde poderiam estar a exercer a actividade para a qual tiveram formação académica. De rentabilidade porque como a esmagadora percentagem dos turistas são de baixa e média-baixa gama económica/cultural, o pouco dinheiro que despendem vai para o alojamento e as refeições baratas, razão pela qual não há progresso e crescimento no restante comércio. Como Portugal importa mais de metade dos alimentos que consome, um turismo que se baseia no alojamento e alimentação não se traduz na melhor valorização dos recursos endógenos, pelo que não tem grande efeito no crescimento do sector produtivo da indústria transformadora, base do progresso económico e social. Os maiores beneficiários deste modelo são as cadeias de distribuição alimentar e os serviços turísticos de transporte, cujas sedes de empresas estão no estrangeiro para onde são canalizados os fluxos financeiros de mais valias. Esta política de captação de massas turísticas de baixo poder de compra está a ter um grande efeito na diminuição de salários, na precarização e sazonalização do trabalho e na desqualificação dos recursos humanos. Acresce que muitos dos trabalhadores para este sector turístico de verão são estudantes em férias e estagiários dos cursos profissionais, que aceitam dar o seu contributo por “dez réis de mel coado” (alguns chegam a aceitar trabalhar por 1,5 a 2 euros por hora sem contrato e sem protecção social. Há dias uma articulista do Jornal de Notícias escreveu um artigo sobre esta matéria titulando-o de “Chulice!”). Ora, foi esta realidade que tive a ocasião de apreciar nesta caminhada e que mais me chocou. Para já não falar nas vendedeiras da ribeira que, até há pouco tempo, vendiam, junto ao rio, peixe fresco, hortaliças e frutas, estão agora a vender artigos têxteis produzidos na China e países satélites a preços da “chuva”, ganhando menos agora do que ganhavam dantes. É a pauperização dum povo no seu esplendor. Na FNAC, com poucos clientes, tomei um pingo após o que desci a Rua 31 de Janeiro (dezanove dos estabelecimentos estão entaipados, inactivos, e os restantes quase não tinham clientes) descendo pela Rua das Flores até à ribeira e tabuleiro inferior da ponte D. Luís I, onde o panorama era o atrás descrito. No regresso por Gaia, subi a Rua General Torres (mantém-se igual e pouco atractiva desde há dezenas de anos) após o que retornei pela Avenida da República pelo percurso inverso ao da ida até chegar à Quinta das Rosas. Resta dizer que das tarefas que queria cumprir, aproveitando a caminhada, consegui trocar o telecomando na casa China em V.N.Gaia (na Avenida da República perto do cruzamento com a Avenida Vasco da Gama, cuja designação consta duma bonita placa toponímica num pequeno painel de azulejos com moldura barroca produzido na Cerâmica do Douro), fotografei o brasão dos Ferraz Bravo, mas não consegui comprar os sacos plásticos por o armazém estar fechado para férias.

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