terça-feira, 18 de agosto de 2015

Que Direito à Felicidade?

Não pode haver tristezas inconsoláveis nem alegrias exclusivas – Frederic Ozanam -. Em tempo de expansão do hedonismo e do egoísmo, importa aprofundar um direito muito glosado por todas as gerações e classes sociais: o direito à felicidade. Para esta abordagem necessário é ter em conta o enquadramento do ser humano na multiplicidade de vertentes que enformam a sua vida, quer na relação variada com os outros, quer na relação com as coisas e factores em que se movimenta. Nesta análise não se pode fugir à questão filosófica, nunca resolvida, de avaliar o que de mais relevante condiciona o comportamento humano: o livre arbítrio ou o determinismo. A partir destas bases, que, facilmente se vê, contêm muito de subjectivo e de acaso, o ser humano vai construindo a sua vida, reflectindo sobre os erros e os êxitos do passado, sem podendo prever com o mínimo de segurança como será o futuro. Assim sendo, como assegurar consistentemente o direito à felicidade? Será que a felicidade se constrói à volta do umbigo de cada um ou a sua construção tem de considerar o mundo que o rodeia? Nos últimos tempos o Papa Francisco tem lançado vários alertas sobre o caminho em que estamos direccionados. Caminho este assente na trilogia que comanda a política neoliberal norteadora do mundo actual: supressão do Estado na economia; enfraquecimento do Estado social; fortalecimento e glorificação do Estado repressivo-punitivo. Neste sentido, o Papa tem demonstrado uma clarividência e uma coragem dignas de nota. Nos cerca de dois anos de Papado, as suas atitudes e pronunciamentos, de que as encíclicas “Alegria do Evangelho” e “Laudato Si” são, por si só, grandes exemplos, têm sido gritos de alerta e de incentivo notáveis, esbatendo o seu passado obscuro de alegada conivência com a ditadura argentina, nos anos de horror de 70 e 80 do século passado, enquanto alto dignatário da Igreja Católica em Buenos Aires, de que o livro “A lista de Bergoglio” deixa em aberto. A sua atitude actual insere-se nos grandes valores do cristianismo do perdão e da misericórdia (“Aquele que nunca pecou que atire a primeira pedra”Jo-8,7), assim como do direito de todos os seres humanos à dignidade e à justiça social. Estas atitudes recentes do Papa têm sido únicas dentro das posturas dos líderes mundiais importantes e não têm tido respaldo em muitos vultos da igreja católica, de que é exemplo a posição recuada da generalidade dos bispos portugueses, expressa, nomeadamente, nos textos da Conferência Episcopal Portuguesa. As denúncias do Papa sobre as injustiças sociais (pobreza, migrações, desemprego, escravatura moderna, desumanização no tratamento das crianças e jovens, etc…) e sobre as questões ambientais, não deveriam deixar ninguém sossegado mas sim provocar uma exigência de maior solidariedade e fraternidade. Por aqui já se pode ver que o direito à felicidade só pode ser alegado por quem quer ter uma posição autista, centrada sobre si próprio. Como se pode achar que se tem direito ao bem estar sem o partilhar com os que sofrem em muitas casas, em muitos hospitais, em muitas prisões e em muitos lugares do mundo? Já visitei alguns destes sítios onde estão muitas pessoas infelizes e incompreendidas, sofrendo em silêncio ou com gritos que ficam sem resposta. Os órgãos de comunicação social vão-nos relatando, a espaços cuja frequência fica aquém da realidade, alguns destes dramas humanos, mas o que predomina na grande corrente que atravessa o mundo é a futilidade, a cultura hedonista do corpo, que não do espírito, o vedetismo saloio, o entretenimento alienante, o primarismo acéfalo de apelo à repressão, à vingança, ao jogo (as chamadas de valor acrescentado nos programas de TV são disto exemplo) e as doses maciças de desporto que substituiu a religião como ópio do povo numa análise marxista que mantém actualidade. Quando se aceita a prisão como violação da liberdade para, pretensamente, se castigarem os erros e imperfeições dos seres humanos, quando se aceita o sofrimento dos semelhantes como reparação dos males por eles provocados sem atentar nas condicionantes que os proporcionaram, quando se condenam as crianças e os jovens a um futuro incerto que os leva, muitas vezes, a caminhos sem retrocesso de marginalidade e exclusão, como se pode reivindicar o direito à felicidade individual esquecendo que ninguém é capaz de, sozinho, construir a sua vida? Todos dependemos de outros. Ninguém consegue construir a sua felicidade por si próprio. Dependemos da família, da empregada doméstica, dos carteiros, dos lixeiros, dos pescadores, dos agricultores, dos operários e duma panóplia de outras pessoas, normalmente exploradas, com trabalhos precários mal pagos e horários desumanos, e que sem eles e elas ninguém conseguiria viver. O direito à felicidade de cada um só poderá existir quando incluir o direito à felicidade de todos os outros seres, em espírito de partilha e comunhão. Lembremo-nos do lema que nos foi legado por Frederic Ozanam: Não pode haver tristezas inconsoláveis nem alegrias exclusivas.

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