quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Fuga do Estado às suas Obrigações

Durante a segunda metade do século XX a comunidade internacional, através, nomeadamente, da Organização das Nações Unidas e do Conselho da Europa, acordou num conjunto significativo de referenciais jurídicos tendentes a assegurar aos seus cidadãos a garantia do direito aos mais variados aspetos que têm a ver com padrões dignos de vida, como sejam o acesso ao trabalho, à habitação, à saúde, à educação, aos serviços públicos essenciais (água, energia, saneamento, etc…), à segurança social, à liberdade de expressão, à liberdade de reunião e associação, etc… . Dos mais conhecidos pode-se salientar, por exemplo, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais e Culturais, a Convenção dos Direitos da Criança e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Os Estados ao ratificarem estes referenciais jurídicos (tratados, convenções, pactos e protocolos) assumem o compromisso de promover e respeitar as obrigações neles constantes. Desde o final do século XX tem-se vindo a assistir a um crescendo de decisões de muitos Estados tendentes a fugirem às responsabilidades decorrentes do facto de serem Estados-Parte desses referenciais jurídicos, nomeadamente com a privatização de serviços públicos através dos quais era assegurado aos cidadãos o acesso a estes serviços. Com a privatização o Estado deixa de dispor directamente de mecanismos para assegurar o cumprimento das suas obrigações, já que são os Estados que se comprometem com o estatuído nesses referenciais jurídicos e não organizações privadas que, quando muito, apenas têm de cumprir aquilo que a transposição desses referenciais para o direito interno as possa obrigar. E não nos podemos esquecer que muitas multinacionais, que aparecem a adquirir empresas públicas de serviços, são originárias de países que não ratificaram os referenciais que enquadram estes serviços, não estando habituadas às obrigações antecedentes à privatização, logo pouco predispostas ao seu cumprimento. Estamos, portanto, a correr sério risco de pôr em causa aspectos básicos de dignidade de vida, já que não é só o facto do acesso público ser dificultado com taxas cada vez mais elevadas nos serviços prestados pelos Estados, como, também, passarmos a ser obrigados de recorrer a empresas privadas para termos serviços públicos essenciais, com as consequentes limitações decorrentes dos preços que estas praticam sem serem obrigadas a considerações humanistas, ou constitucionais, que permitam o acesso das pessoas sem condições económicas para tal. Além das empresas privadas serem, naturalmente, norteadas pela máxima rentabilidade económica, pelo que, dificilmente, prestarão esses serviços em locais que não disponham dum número de utentes com dimensão económica que justifique essa prestação de serviço, agravando os custos de interioridade ou de agregação sócio-económica. Os referenciais jurídicos que a comunidade internacional assumiu durante a segunda metade do século XX têm de ser defendidos já que se trata de proporcionar o acesso a padrões básicos de vida com dignidade a todos os seres humanos. Fazem parte dos direitos humanos universalmente consagrados que, como tais, são universais, iguais, indivisíveis e interdependentes. Têm a palavra as cidadãs e os cidadãos. Manuel Almeida dos Santos

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