Obra Vicentina
de Auxílio aos
Reclusos – O.V.A.R.
“Quem nunca errou que
atire a primeira pedra” (Jo 8,7)
Excelentíssimo Senhor Dr. Ferro Rodrigues
Digníssimo Presidente da Assembleia da
República
Excelentíssimas entidades convidadas
Senhoras e senhores deputados
Caras e caros, reclusas, reclusos e
ex-reclusos;
Vicentinas e vicentinos da Sociedade de S.
Vicente de Paulo
Minhas senhoras e meus senhores
A gratidão é um dos princípios subjacentes ao reconhecimento pela
atribuição de distinções, nomeadamente quando se trata de elevados valores
humanos. Neste sentido, estamos muito gratos com a atribuição do Prémio
Direitos Humanos 2018, pela Assembleia da República, reconhecendo a nossa
contribuição para a humanização do sistema prisional e
a reinserção dos reclusos, partilhando esta distinção com todos os que são sensíveis ao respeito
pelos direitos humanos.
A O.V.A.R.-
Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, integrando o Conselho Central do Porto
da Sociedade de S. Vicente de Paulo, exerce a sua missão, tendo em conta o
legado de S. Vicente de Paulo e a exortação do seu fundador, Beato Frederic
Ozanam, de quem herdamos o lema “Não pode haver dores inconsoláveis nem
alegrias exclusivas”.
Numa visão
humanista sobre o sistema prisional, constatamos que há um grande trabalho por fazer. A existência de situações ao arrepio dos
valores civilizacionais constantes dos referenciais universalmente aceites,
como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de que comemoramos hoje o seu
70º aniversário, exige de nós um esforço acrescido para a sua superação.
Por exemplo, continuamos
a não ter a garantia do direito generalizado à própria defesa violando o artº
14º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de que Portugal é
Estado-Parte. Assiste-se ao desrespeito do espírito da Constituição da
República Portuguesa e do Código Penal, com a permissão de que o tempo
consecutivo de permanência na prisão exceda 25 anos, nos casos das penas
sucessivas e das medidas de segurança, configurando a prisão perpétua
constitucionalmente proibida. Persiste-se nas penas mais longas da União
Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da média
da U.E.). Continua a retenção indevida do dinheiro do trabalho dos reclusos,
infringindo o imperativo constitucional do direito de propriedade. Mantem-se a
fragilidade do apoio judiciário, situação agravada com a impossibilidade do
direito à própria defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal
situação. Assiste-se, no interior das prisões, a alegações de prática de
tráfico de drogas e bens, homossexualidade forçada, violações, roubos,
violência, chantagens sobre as famílias, autoritarismo e prepotência. Por outro lado, o passo positivo dado, há já muitos anos, de
descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia
não punitiva mais alargada, continuando-se uma política de combate que se tem
revelado infrutífera e negativa, ao invés de encarar a realidade enquadrando legalmente
a sua produção e comercialização e dinamizando uma política de sensibilização
para as consequências da dependência (vejam-se os exemplos já conhecidos do
tabaco e do álcool que podem servir de guia para uma nova política sobre as
drogas), sendo as drogas, juntamente com a pobreza, autênticas chagas e as
principais responsáveis no abrir do caminho para as prisões. As limitações às
comunicações telefónicas, às visitas familiares e à assistência espiritual e
religiosa, agravam as dificuldades para a reinserção social e à manutenção dos
laços afetivos. A dinâmica de reinserção social nas prisões é claramente
insuficiente, para não dizer quase inexistente, situação esta que continua a
persistir devido a um patente autismo da sociedade em geral, e do poder
político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de
Reinserção e Serviços Prisionais, através dos seus relatórios de actividades,
quer de algumas ONGs. O trabalho nas prisões, sendo escasso, é remunerado com
valores tão baixos, de alguns cêntimos por hora, que se pode equiparar a
trabalho escravo. A aposta numa dinâmica da educação ressente-se da
inacessibilidade às TIC e da falta de meios, quer materiais, quer de recursos
humanos, carências estas extensivas a muitas outras áreas das prisões. A
alimentação e os serviços de saúde são manifestamente pobres
e insuficientes. Há uma
aceitação acrítica sobre
a vivência de
bebés no interior das prisões acompanhando o
cumprimento de penas de suas mães. E poderia continuar a acrescentar outras
situações que são atropelos aos referenciais de direitos humanos. O Estado de
Direito não pode ficar à porta das prisões.
As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e
violentas, apoiando-se numa parte da opinião pública que apela à vingança, à
repressão, ao terror e ao medo, apesar das medidas e dos esforços que são
feitos. As prisões não reinserem, têm pouco efeito dissuasório e são desumanas
na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos
anti-sociais. A população prisional tem uma dimensão elevada em Portugal e no
Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As
estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição
da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa, desviando o
foco do criminoso para a prevenção do crime e reparação dos seus danos. As
prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à
consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode
admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada. Por outro lado, a
educação para a cidadania, como base para a prevenção da prática de atos
anti-sociais, tem de ter lugar relevante e transversal numa sociedade sem
vítimas nem criminosos.
O actual sistema prisional e de justiça é
aterrador, frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os
arguidos e os reclusos mais frágeis, secundarizando a equidade como valor
relevante. As cerca de 70.000 crianças e jovens que anualmente são acompanhadas
nas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens estão a constituir uma grande
fonte para o elevado número da população prisional. Ainda, em Junho do corrente
ano, a Provedora de Justiça declarou que a realidade nas prisões portuguesas é chocante. Um ex-ministro da
Justiça, Dr. Alberto Martins, admitiu, num debate, que se há inferno neste
modelo de sociedade ele está nas prisões. O Diretor Geral da Reinserção e Serviços
Prisionais, Dr. Celso Manata,
quando questionado sobre a situação nas prisões lembrou, na audição
parlamentar em Maio deste ano, que foi enviado para a Assembleia da República o documento sobre os
investimentos prioritários nas prisões para os próximos anos, aguardando-se a
concretização do programa subjacente.
Portugal é dos países que mais tratados, convenções e protocolos de
direitos humanos tem assinado e ratificado e ainda bem que é assim. Estes
referenciais não são só meros documentos indicativos. São normativos jurídicos
e, portanto, têm de ser cumpridos.
Chegados a 2018, não resta
outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema,
desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século
XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e
de diminuição da duração das penas, enquanto não se acabar com as prisões. A
alteração profunda da legislação penal e a aprovação duma amnistia são atos
urgentes, esperando-se que haja sensibilidade política para a sua realização.
Temos de centrar a atenção nas implicações
concretas das prisões na vida dos reclusos, nas suas famílias, nas vítimas dos
crimes e na ineficácia no ressarcimento dos danos provocados pelo crime. Fiódor
Dostoiévsky constatou que “O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é
sempre um doente”. Ora, os doentes precisam de
ajuda para o tratamento e não de serem encerrados em prisões. O Papa Francisco,
na visita ao campo de concentração de Auschvitz, alertou para a desumanidade
com que vivem os encarcerados de hoje, não podendo serem as prisões a Auschvitz
do nosso tempo.
Concluindo,
o que estamos aqui a dizer temo-lo vindo a declarar desde há muitos anos, na linha do que fazem
várias ONGs, os Comités sobre a Tortura do Conselho da Europa e das Nações
Unidas e a Provedoria de Justiça através do Mecanismo Nacional para a Prevenção
da Tortura, ainda que esta estrutura tenha um funcionamento a carecer de
revisão. Como instituição cristã revemo-nos em Jesus Cristo que, também, foi
preso, torturado e cruxificado. O nosso patrono é S. Dimas, o bom ladrão
cruxificado ao lado de Jesus Cristo. Temos de ter presente que Deus condena o
pecado mas perdoa e recupera o pecador. O exercício do nosso voluntariado
acresce-nos mais obrigações de cada vez que entramos numa prisão, já que, por
muito que façamos, saímos sempre mais ricos com a experiência humanista obtida
nos contactos dentro das prisões. Ganhamos mais do que o que damos o que nos
obriga, moralmente, a um maior empenhamento, dando de nós sem pensar em nós,
dando com uma mão sem que a outra mão veja. No próximo ano esta Obra Vicentina
de Auxílio aos Reclusos perfaz cinquenta anos na sua missão. A experiência
obtida aponta no sentido duma dinâmica de abolição das prisões, duma sociedade
mais fraterna e solidária, em que o ódio, a vingança e o crime não tenham
lugar. Será uma utopia? A resposta pode ser dada recuperando e adaptando a
expressão do falecido Dr. António Arnaut, que foi deputado nesta Assembleia da
República: “Utopia? Talvez. Mas utopia (…) não é o impossível. É o lugar do
encontro. E esse lugar está dentro de nós”.
Nos grandes valores civilizacionais que
devem nortear as relações entre todas as pessoas, incluindo na justiça e nas
prisões, tem de estar o lema desta Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, de
apelo ao perdão e misericórdia, extraído do evangelho segundo S. João:
“Quem nunca errou que atire a primeira
pedra”.
Muito obrigado
10/12/2018 – Manuel
Hipólito Almeida dos Santos – Presidente da O.V.A.R. - Obra Vicentina de
Auxílio aos Reclusos
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