Contributo
para as relações entre a Maçonaria e a Igreja Católica
Em tempo de aproximação ao
equinócio de outono, passando-se a assistir, durante os próximos seis meses, no
hemisfério norte, à predominância da duração da noite sobre o dia, é oportuno acrescentar
luz a um tema que alguns teimam em manter em conflito, agarrados a
comportamentos de séculos, ignorando os caminhos que se têm vindo a abrir,
acabando definitivamente com a cegueira que impede de ver que a paz e a
tolerância são desejos maiores da humanidade.
De tempos a tempos, vêm a
público tomadas de posição relativamente à pertença simultânea à Maçonaria e à
Igreja Católica, quer defendendo à liberdade de participação em ambas as
instituições, quer considerando a impossibilidade de tal participação
simultânea.
Sou de opinião que esta
questão tem, actualmente, um enquadramento claro e uma leitura que deve nortear
o relacionamento entre as duas instituições. Tal assenta nos referenciais
jurídicos em vigor e em orientações políticas dos seus máximos dirigentes.
Para
a Maçonaria, as Constituições de Anderson de 1723, são claras na definição da
postura que os maçons devem ter para com as religiões.
“I – O que se refere a Deus e à Religião
O maçon está obrigado,
por vocação, a praticar a moral; e se compreender seus deveres, nunca
se converterá num ateu estúpido nem num libertino irreligioso. Apesar de nos
tempos antigos os maçons estarem obrigados a praticar a religião que se observava nos países em que habitavam, hoje
crê-se mais conveniente não lhes impor outra religião senão aquela que
todos os homens aceitam e dar-lhes completa liberdade com referência às suas
opiniões particulares. Esta religião consiste
em serem homens bons e leais, quer dizer, homens honrados e justos, seja qual for a diferença de nome
ou de convicções. Deste modo a Maçonaria se converterá num centro de união e é o meio de
estabelecer relações amistosas
entre pessoas que, fora dela, teriam permanecido separadas (ou não se
conheceriam). (…)”
Também, a Constituição do Grande Oriente Lusitano expressa:
“Título I – Da
Maçonaria e Seus Princípios
Artigo 1º
A Maçonaria é uma
Ordem universal, filosófica e progressista, fundada na Tradição iniciática,
obedecendo aos princípios da Fraternidade e da Tolerância e constituindo uma
aliança de homens livres e de bons costumes, de todas as raças, nacionalidades
e crenças.
Artigo 2º
A forma da Maçonaria é
ritualista.
Artigo 3º
A maçonaria tem por fim
a aperfeiçoamento da Humanidade através da elevação moral e espiritual do
indivíduo. Não aceita dogmas e combate todas as formas de opressão sobre o
homem, luta contra o terror, a miséria, o sectarismo e a ignorância, combate a
corrupção e enaltece o mérito.
Artigo 4º
A Maçonaria procura a
conciliação dos conflitos, unindo os homens na prática de uma Moral Universal,
no respeito da personalidade de cada um, condena as regalias injustas.
Artigo 5º
A Maçonaria adota como
divisa a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade e como lema a Justiça, a
Verdade, a Honra e o Progresso.
Artigo 6º
A Maçonaria considera
o Trabalho um direito e um dever essencial do Homem, honrando igualmente o
trabalho intelectual e o trabalho manual.
Artigo 7º
Os Maçons
reconhecem-se como irmãos e obrigam-se a uma permanente ajuda e assistência
mútua. Exige-se-lhes o máximo altruísmo, o sacrifício de quaisquer interesses
ao bem-estar dos seus semelhantes e a propaganda pelo exemplo, sob reserva da
observância do sigilo maçónico.
Artigo 8º
Os Maçons,
recusando-se a assumir nessa qualidade quaisquer posições de natureza
partidária, integram-se no espírito das Constituições de Anderson e respeitam
as leis e as autoridades legítimas do país onde vivem e livremente se reúnem.” (…)
Destes dois referenciais ressalta, com clareza o propósito da
Maçonaria e a sua aceitação de todas as crenças e não crenças. A
Maçonaria assenta em princípios humanitários, filosóficos e de moral. Tem como
base a tolerância e releva a justiça e o espírito de entreajuda, auxiliando os
necessitados e promovendo o amor ao próximo. A Maçonaria dá liberdade a todos os
seus membros pela escolha e a responsabilidade da expressão de opiniões
religiosas e pratica um respeito absoluto para todas as religiões e crenças, ou
não crenças. Mantém-se equidistante das diferentes correntes políticas e exorta
os seus membros para o cumprimento dos deveres de lealdade cívica.
Ao longo
de sua história, e até tempos recentes, a Igreja Católica condenou e
desaconselhou aos seus fiéis a pertença a associações que se declaravam ateias
e contra a religião, ou que poderiam colocar em perigo a fé. Entre essas
associações encontrava-se a Maçonaria. A Igreja Católica manteve, até ao Concílio
Vaticano II, esta posição de afastamento de outras crenças e instituições de
natureza espiritual ou ateia, tendo tais posições começado a ser matizadas pelo
Papa João XXIII e no Concílio Vaticano II. Essas posições tinham expressão
concreta no Código de Direito Canónico de 1917,
cujo cânone 2335 postulava: «Quem se
inscreve na seita maçónica ou noutras associações do mesmo género que tramam
contra a Igreja ou as legítimas autoridades civis, incorre “ipso facto” na
excomunhão reservada “simpliciter” à Santa Sé.»
A dinâmica do
Concílio Vaticano II teve tradução na abertura ao diálogo ecuménico e com
instituições até aí proscritas, tendo o Código de
Direito Canónico promulgado pelo Papa João Paulo II em 25 de janeiro de 1983,
estatuído no cânone 1374, que: "Quem
ingressa numa associação que maquina contra a Igreja deve ser castigado com uma
pena justa; quem promove ou dirige essa associação deve ser castigado com
interdito". Esta nova redação apresenta duas novidades em relação ao
Código de 1917: a pena não é especificamente definida e não é mencionada
expressamente a Maçonaria como associação que conspire contra a Igreja. Esta
retirada da referência à Maçonaria do referencial jurídico máximo da Igreja
Católica tem de ser lida como reconhecimento específico de que não há
justificação para a sua menção.
Logo, para que seja
aplicada uma pena justa (ex: excomunhão era uma das penas aplicáveis pelo
código anterior a 1983) é preciso que se prove que uma pessoa ou associação
maquina contra a Igreja. Depois de 1983 não se conhece a aplicação de qualquer
pena a maçons, ao abrigo deste cânone.
Esta nova postura da Igreja Católica,
consagrada no seu máximo referencial jurídico que é o Código de Direito
Canónico, independentemente de posições pessoais e de cartas apostólicas
avulsas que valem como opinião e não como norma jurídica que se sobreponha ao
Código, tem tido expressão concreta num sem número de acções e manifestações
que constroem este novo rumo. É certo que, também, continuam a ver-se posições,
cada vez mais isoladas, de quem quer continuar agarrado ao passado e que, na
verdade, ainda vão destabilizando a marcha do progresso. Mas esta marcha tem
contado com um apreciável apoio que denota o caminho do futuro.
Entre as acções e posições públicas, podemos
destacar algumas realizadas na região do Porto, onde resido, nomeadamente as
iniciativas apoiadas pela Universidade Católica do Porto, onde se tem destacado
como personalidade de relevo o Pe. Arnaldo Pinho, assim como as declarações de bispos,
cardeais e outras figuras eminentes da Igreja Católica, sendo o Papa Francisco
um grande paladino da abertura da Igreja a toda a sociedade. Das iniciativas da
Universidade Católica do Porto teve particular destaque a semana de estudos
organizada pela sua Faculdade de Teologia, em Fevereiro de 1994, onde esteve em
análise o tema “Maçonaria, Igreja e Liberalismo”. Nela participaram vários
académicos, leigos e sacerdotes, tendo o Bispo do Porto da altura, D. Júlio
Tavares Rebimbas, expressado: (…) .“Não estamos inocentemente aqui a abordar
problemas fáceis de Maçonaria, Igreja e Liberalismo, cuja vastidão e
complexidade é evidente e com tempos diversos de expressão e altos e baixos de
relação. Mas somos a mesma humanidade, as mesmas pessoas, a mesma paz e a mesma
guerra. Estamos civilizadamente à procura do que nos une, desfazendo
principalmente aquelas coisas que costumamos engendrar, e que são quase de
relações humanas, e temos tendências de dogmatizar. O que cria paredes difíceis
de vencer, obstáculos multiplicadores de inviabilidades. Não estamos aqui para
converter maçons, nem para laicizar cristãos, nem para aclarar tudo que é
problemática séria do liberalismo. Mas, também, não estamos aqui para quatro
dias de inutilidades, mais ou menos brilhantes. Estamos aqui nos caminhos da
procura da verdade que todos têm. Porque a verdade total será noutra instância,
é noutra onda e mesmo assim leva muito tempo para chegar lá.”
Um outro interveniente nesta semana de
estudos, Pedro Alvarez Lázaro, Professor da Universidade Pontifícia de
Comillas, constatou: “Poucas instituições
despertaram tanta curiosidade ao longo do tempo como a ordem francmasónica,
mas, por sua vez, poucas têm sido tão historiograficamente maltratadas.” Por
sua vez, o Pe. Arnaldo Pinho, na altura director da Faculdade de Teologia da
Universidade Católica do Porto, na introdução ao livro “Igreja e Maçonaria –
Textos para um diálogo” (que dedica “À memória do Prof. Embaixador José Augusto
Seabra, saudoso amigo, católico e mação” e “Ao prezado amigo, Dr. António
Arnaut, ex-Grão Mestre da Maçonaria e homem de boa vontade”), refere: “(…) O choque da nova mundividência para a
fé foi indiscutível. Perdidos os absolutos religiosos como fundamento, segundo
a palavra de Gusdorf, a subjectividade avançou para novos campos e a ciência,
em grande parte no século XIX, foi sinónimo do triunfo da razão, contra a
tutela da Revelação, ou como se dizia dos “dogmas”. O enfrentamento entre a
Apologética e o Racionalismo, que hoje aparecem como alternativas abstractas,
gerou polémicas gloriosas, mas vistas hoje, simplesmente confrangedoras. (…) A
sabedoria parece pois ter tomado o seu lugar. Faltaria ainda, (…), a
fraternidade, reveladora da unidade na totalidade. Sem irmos até ao fim, seria
muito esperar da simples inteligência, aberta à revisão do passado, que se
deixasse de vez de brandir palavras últimas? – Porto Março de 2012”
Dos muitos outros
eventos sobre as relações entre a Maçonaria e a Igreja Católica, pode-se
referir o Colóquio Internacional – Gnose e Gnosticismo –
Genealogias, Emergências», Porto, 14 e 15 de
Novembro de 2008, realizado no Ateneu Comercial do Porto, que teve como promotores
o Instituto São Tomás de Aquino (ISTA) o Centro de Estudos do Pensamento
Português da Universidade Católica do Porto, o Grande Oriente Lusitano –
Maçonaria Portuguesa (GOL) e o Instituto Onvestigación sobre Liberalismo
Krausismo y Masonería, da Universidade Pontifícia de Comillas – Madrid, onde
personalidades destacadas da Maçonaria e da Igreja Católica intervieram reforçando
pontes de aproximação em construção.
Também, em 25 de Abril de
2018, a loja Estrela do Norte do Grande Oriente Lusitano, promoveu uma
conferência, no Porto, subordinada ao título “ A Fraternidade na Europa
das Religiões do séc XXI” em que, além do
Sheik David
Munir, Imã da Mesquita Central de Lisboa, e do Rabino Elisha Salas , Rabino da Comunidade de Belmonte, participou, também, o Padre Jorge
Duarte, Pároco de Mafamude, Assistente Religioso do Centro de
Produção do Porto da Rádio Renascença e Director do Secretariado Diocesano das
Comunicações Sociais, tendo ficado patente a inexistência de quaisquer
obstáculos a colaboração fraterna das organizações presentes.
Uma outra entidade do topo da hierarquia da
Igreja Católica, o cardeal Gianfranco Ravasi, presidente do Pontifício Conselho para a Cultura no
Vaticano, manifestou-se nos seguintes termos (In "Il Sole 24 Ore",
14.2.2016): “Igreja e maçonaria: O diálogo para
além da incompatibilidade - «Caros irmãos maçónicos» - (…) Deve-se, além
disso, superar a atitude de certos ambientes integralistas católicos que – para
atingirem alguns expoentes inclusive hierárquicos da Igreja que a eles
desagradam – recorrem à arma da acusação apodítica de uma sua pertença
maçónica. Em conclusão, como escreviam já os bispos da Alemanha, é preciso ir
além da hostilidade, ultrajes, preconceitos recíprocos, porque em relação aos
séculos passados melhoraram e mudaram o tom, o nível e o modo de manifestar as
diferenças que ainda continuam a existir claramente.”
Que há diferenças entre a Igreja Católica e a maçonaria ninguém contesta.
Ainda bem que as há, senão não se tratariam de duas entidades distintas. Aliás,
mesmo dentro da Igreja Católica há estruturas com tal diversidade filosófica e comportamental que os certos ambientes integralistas católicos, se calhar,
olham de lado para aqueles que não são os que onde estão inseridos. Basta considerar os exemplos da Opus Dei, do Movimento
“Nós Somos Igreja”, da Sociedade de S. Vicente de Paulo, da Fraternidade S.Pio
X, da Companhia de Jesus (Jesuítas), etc…, para vermos a heterogeneidade
reinante no seio da Igreja Católica.
Mas estas diferenças não têm sido obstáculo ao aprofundamento
das pontes entre todos. Neste sentido, merece particular realce a iniciativa “Átrio dos
Gentios” fórum de iniciativa do Pontifício Conselho para a Cultura do Vaticano, iniciado em 2012, que promove o diálogo entre
cristãos e não-crentes em áreas de interesse comum a ambos os grupos. Foi
idealizado pelo Papa Bento XVI com o objetivo de estreitar os espaços entre
pessoas de diferentes culturas e promover, através do diálogo, experiências
conjuntas no intuito de responder às questões do tempo actual.
O
actual Papa Francisco tem tido, desde que assumiu as funções de responsável
máximo da Igreja Católica, posições muito claras de abertura a todas as instituições
e pessoas religiosas e não religiosas. Foi muito notada a sua ênfase do
sentimento popular de que mais vale ser ateu do que católico hipócrita,
declarada na missa celebrada a 23 de fevereiro de 2017,
em Santa Marta.
Esta abertura do Papa Francisco motivou
que o Sereníssimo Grande Mestre
da Grande Loja da Itália U.m.s.o.i. (Unione Massonica Stretta Osservanza
Iniziatica), Gian Franco Pilloni, lhe tenha dirigido uma carta em Outubro
de 2013 em que declara: (…) “Com extrema comoção e infinita alegria, me dirijo a
Vossa Santidade, para fazer um humilde pedido com o fim de que se trabalhe para
pôr fim às divisões que atingem as relações entre a Igreja Católica e a
Maçonaria, com a esperança de que finalmente possa reinar a justa serenidade
entre as duas partes, colocando fim às divergências que ainda hoje elevam um
muro entre as relações.(...) Não somos um componente adversário da Igreja
Católica por Vós dignamente representada, mas antes, pelo contrário, as nossas
estradas são paralelas, de facto, e pensamos como Vós quanto à totalidade dos
problemas que afligem a sociedade contemporânea. Como Vós, nós trabalhamos para
um mundo de paz e pelo respeito ao ser humano sem distinção alguma e pelo
respeito absoluto por todas as religiões”. (…)
Que a Maçonaria e a Igreja
Católica têm um passado de graves erros é um facto insofismável. Basta lembrar
o anti-clericalismo e os ataques à Igreja Católica por parte da Maçonaria, nos
finais do século XIX e início do século XX, assim como o passado de passividade
do Vaticano, e da maioria da hierarquia da Igreja Católica, perante certos regimes
ditatoriais, nomeadamente a operação Condor em países da América latina
(Chile, Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai, Brasil), para não falar da
tenebrosa Inquisição e do papel dúbio na II guerra mundial. Que há maçons e
crentes que se comportam ao arrepio dos valores das instituições a que
pertencem é um facto indesmentível, mas tais comportamentos não podem conotar
as instituições no seu todo nem os seus restantes membros. O perdão, a
misericórdia e a redenção, pilares da Igreja Católica, assim como a liberdade,
a igualdade e a fraternidade, que são a divisa da Maçonaria, têm de continuar a
ser a via para se lidar com as imperfeições do ser humano.
Em conclusão: o direito à opinião é livre e deve ser, salutarmente,
respeitado. As opiniões que continuam a defender a impossibilidade de pertença
simultânea à Maçonaria e à Igreja Católica são, a meu ver, uma visão
desactualizada do actual quadro normativo-jurídico e da dinâmica em curso
visando a eliminação dos constrangimentos à liberdade de associação e pertença
às mais variadas instituições. Mas são opiniões que têm de ser confrontadas com
a nova realidade e com os novos ventos da história. É cada vez maior o número
de crentes que ingressam nos quadros da Maçonaria, assim como se nota um
considerável número de não crentes que se convertem em crentes, sem se
desvincularem das entidades donde provêem, pois não encontram
incompatibilidades mas, sim, complementaridades, já que, em consciência, assim
o entendem. Antero de Quental, maçon e de educação católica, no seu poema “A
Ideia” proclama: (…) A Ideia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência; Só se revela aos
homens e às nações; No céu incorruptível da Consciência!”
Desejamos (Deus queira) que todas as confissões religiosas, de que a Igreja
Católica é parte, e todas as obediências maçónicas continuem, em consciência, a
trilhar a via que leva à convivência pacífica e ao respeito mútuo, sem
exclusões nem excomunhões.
Que a luz triunfe sobre as trevas!
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