sábado, 21 de abril de 2018





AS PRISÕES E A  LIBERDADE  COMO VALOR ABSOLUTO




“A liberdade concreta supõe que esteja garantido ao indivíduo o direito de se desenvolver, enquanto tal, num mundo cuja razão de ser seja para ele evidente e, portanto, sensata.”
     Joël Wilfert – La liberté – (O Estado: Realidade Efectiva da Liberdade) 



Vivendo um tempo em que a liberdade é posta à prova frequentemente, devemos ter em conta esta reflexão do filósofo contemporâneo Joël Wilfert que coloca a sensatez do meio como uma das condições necessárias para o exercício da liberdade.
Assim sendo, importa analisar se neste início do século XXI se verifica a existência de sensatez na aceitação de instituições criadas para praticarem penas e medidas privativas da liberdade.
Para o número 64 da “A Ideia” (Março de 2008), escrevi um artigo intitulado “Prisões: Que esperança?” onde desenvolvi o meu entendimento sobre a realidade de então. Passados estes anos importa actualizar esta problemática, nomeadamente no atropelo ao valor da liberdade.
A consideração de poder ser a liberdade um valor absoluto tem vindo a merecer reflexões que apontam neste sentido, vindo-se a acentuar um crescendo na sua abordagem. E como poderemos alargar a reflexão com a inclusão das instituições onde se cumprem medidas privativas da liberdade, de que as prisões são um exemplo, como instituições perigosas para a afirmação desse valor? Certamente que esta discussão trará as objecções semelhantes às verificadas quando se discutiu o direito à vida como valor absoluto, mas em 2017 a pena de morte já foi abolida na maioria dos países do mundo e o próprio catecismo da Igreja Católica retirou a sua admissibilidade nos finais do século passado. 
Muitas personalidades relevantes têm, nos últimos anos, tomado posição sobre os múltiplos aspectos negativos das prisões, desde o filósofo Michel Foucault e outros filósofos até muitos conferencistas presentes em variadas intervenções públicas. Relembremos algumas das frases mais significativas.
- Habrá que tener la valentia de denunciar la injusticia social como la primera y más grave delincuencia, geradora de otras muchas delincuencias (…) - CEE–España – P. José Sesma León

-  A cadeia é um lugar injusto. (….) Parte de um tipo de Estado que, com ela, busca fins de repressão e submissão (…) A cadeia tal como a conhecemos não foi inventada para curar ou reabilitar (…) -  P. António Correia – capelão do E.P. de Paços de Ferreira

- O sistema penitenciário clássico falhou os seus propósitos.  Ex-Ministro da Justiça -  Dr. Alberto Costa

- A experiência dos últimos 200 anos tem sido um fracasso. (…)  A prisão não reinsere; por vezes fomenta a própria criminalidade.-Dr. Germano Marques da Silva - Professor de Direito Penal
- Todo o ser humano é maior que o seu erro! - P. João Gonçalves – Coordenador Nacional da Pastoral Penitenciária
- As nossas prisões não cumprem as condições mínimas relativamente à alimentação, saúde, higiene, privacidade e liberdade religiosa. - Comissão Nacional Justiça e Paz
-Mais policiamento? Maior vigilância? Mais meios de controle de indivíduos e grupos? Mais grades nas nossas janelas? Mais alarmes nas nossas entradas? Mas o mundo não pode transformar-se numa enorme cadeia onde todos nos vigiamos uns aos outros e de todos desconfiamos.., Que mundo?! Assim, ninguém lá quererá viver! -  P. João Gonçalves
- O actual sistema de justiça está fora deste tempo e deste modelo de sociedade. - Ex-Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público  Dr. António Clunny
“O condenado que entra numa penitenciária é como uma mercadoria que se arrecada num armazém e, pouco a pouco, vai entrando no abismo dos malditos, dos ex-homens, com os seus conflitos e farrapos de tragédia (…) -  “Onde o homem acaba e a maldição começa” - Emídio Santana
(…)nos últimos dois séculos o sistema de justiça tem mantido características de desumanidade de forma permanente. -  “Vigiar e Punir” – Michel Foucault

O sistema penal vigente não tem obstado a que as prisões sejam instituições violentas, opressoras e violadoras dos direitos humanos. Situações no interior das prisões como tráfico de drogas e bens, homossexualidade, violações, roubos, chantagens sobre as famílias, autoritarismo, prepotência, penas longas e injustas, retenção indevida de bens, etc…, têm necessariamente de provocar a alteração deste sistema penal, impedindo a liberdade como valor absoluto. Este sistema continua a ser autista perante a condenação reiterada pelas Nações Unidas de que Portugal continua a negar aos seus cidadãos o direito à auto-defesa, sendo os reclusos particularmente injustiçados com tal negação.
As prisões são cada vez mais instituições opacas de que um exemplo é o facto dos relatórios anuais de cada estabelecimento prisional terem deixado de serem publicados desde 2010, sendo a opacidade inimiga da liberdade. Os dados conhecidos já nos dão uma ideia da dimensão aterradora duma política punitiva que se tem vindo a agravar, estando ausente qualquer dinâmica de prevenção no sentido duma sociedade mais humana, pacífica e fraterna.
Vejamos alguns dados relativos a Dezembro de 2016.
Temos sobrepopulação prisional, com o total de reclusos de 13779 (a lotação máxima é de 12.600), sendo 94% homens e 6% mulheres (os estrangeiros são 15%), representando a faixa etária dos 30 aos 40 anos 30% do total (Havia 191 reclusos com idades entre os 16 e os 20 anos e 5% têm mais de 60 anos), com 16% do total de reclusos em prisão preventiva, sendo 75% das penas aplicadas superiores a 3 anos (Havia 310 reclusos com penas indeterminadas ou medidas de segurança). Mais de 86% dos reclusos não tinham passado do ensino básico na sua formação escolar. O tipo de crimes estava distribuído entre: Contra as pessoas (homicídios, ofensas à integridade física, etc.): 25%; Contra os valores e interesses da vida em sociedade (incêndio, associação criminosa, condução perigosa, etc.): 10%; Contra o património (roubo, furto, burla, etc.): 28%; Estupefacientes (tráfico, consumo, etc.): 19%; Contra o Estado (desobediência, corrupção, etc.): 6%; Outros (fiscais, condução sem carta, etc.): 12%. Há menos trabalho nas prisões, apesar de mal pago, assemelhando-se à escravatura. Piorou a alimentação (tendo-se alargado a privatização do fornecimento das refeições nas prisões – o valor diário para alimentação, por recluso, é de cerca de € 4,00 para as quatro refeições diárias fornecidas por empresas com fins lucrativos). Continua a haver muitos reclusos sem possibilidade de estudar, sendo que 58% têm o 6º ano ou menos de escolaridade, dos mais de 86% dos reclusos que não tinham passado do ensino básico na sua formação escolar. A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens divulgou, no seu relatório apresentado em 2016, que foram acompanhadas. durante o ano de 2015, nas CPCJs, mais de 73.000 crianças e jovens. Dos jovens internados nos Centros Educativos 95% sofrem de patologias psiquiátricas, com uma taxa de reincidência superior a 50% (o tratamento psiquiátrico nos Centros Educativos é de grande debilidade). Em 2016, as equipas de reinserção social da DGRSP (Direção Geral da Reinserção e Serviços Prisionais) executaram um total de 54.600 pedidos de relatórios e audições na área penal. Em 31 de dezembro de 2016, a DGRSP apoiava a execução de um total de 31.269 penas e medidas na comunidade na área penal. No âmbito do apoio à execução de penas e medidas, foram registados, entre Janeiro e Dezembro de 2016, um total de 41.852 novos pedidos, 39.763 dos quais no âmbito penal. Em 2016, a DGRSP recebeu das entidades judiciais, relativamente à atividade de assessoria técnica à tomada de decisão e penas e medidas de execução na comunidade, um total de 110.151 pedidos dos quais, 101.861 (92,47%) no âmbito penal e 8.290 (7,52%) no âmbito tutelar educativo (Suspensão Provisória do Processo, Trabalho a Favor da Comunidade, Suspensão da Execução da Pena de Prisão, Liberdade Condicional, Medidas de Segurança relativas a Inimputáveis e outras). Quanto ao tipo de atividade, 68.299 (62,00%) pedidos respeitaram a relatórios e audições e 41.852 (37,99%) pedidos, à execução de penas e medidas na comunidade. Em 2016, foram recebidos 1.203 novos pedidos de apoio à execução de penas e medidas fiscalizadas por vigilância electrónica (Medida de Coacção de Obrigação de Permanência na Habitação com Vigilância Eletrónica (VE), Pena de Prisão na Habitação, Adaptação à Liberdade Condicional, VE em contexto de violência doméstica, Modificação da Execução da Pena de Prisão. VE em contexto de Crime de Perseguição). No âmbito da jurisdição tutelar educativa, a DGRSP registou, em 2016, um total de 2.089 novas solicitações para o apoio à execução de medidas (Suspensão do Processo com e sem Mediação, Tarefas e Prestações Económicas a Favor da Comunidade, Obrigações e Regras de Conduta, Acompanhamento Educativo e Programas Formativos, Internamento em Centro Educativo, Outras). Aumentaram as restrições ao fornecimento de bens aos reclusos (incluindo alimentação). Houve uma degradação do apoio psicológico e de reinserção, com o crescendo de recurso a psicólogos com vínculo precário e em número manifestamente insuficiente. Continua a fragilidade do apoio judiciário. Houve um reforço do securitarismo, apesar da insuficiência de recursos humanos nos estabelecimentos prisionais. Persiste-se nas penas mais longas da União Europeia (o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da U.E.), incluindo a prática de penas sucessivas e de medidas de segurança que leva à permanência de reclusos nas prisões por períodos que ultrapassam os 25 anos. Continuou a retenção indevida do dinheiro dos reclusos. Insiste-se na impossibilidade do direito à própria defesa violando o direito internacional de que Portugal é Estado-Parte; Etc, etc, etc… . Como aspeto positivo evidente assinale-se o desaparecimento do balde higiénico, existência sintomática do medievalismo deste modelo de sistema prisional.

 O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar.
As prisões são instituições retrógradas, arcaicas, medonhas, medievais e violentas. Não reinserem e são desumanas na punição. Têm-se mostrado ineficazes na reincidência e na prevenção dos atos anti-sociais. A população prisional tem crescido de forma constante em Portugal e no Mundo, demonstrando a ineficácia deste sistema de justiça punitiva. As estruturas de direitos humanos das Nações Unidas têm recomendado a substituição da via punitiva pelas vias da reabilitação e justiça restaurativa. As prisões constituem uma violenta agressão ao exercício da liberdade e à consideração desta como valor absoluto. Quem defende a liberdade não pode admitir a coexistência de prisões numa sociedade civilizada.
Esta situação continua a persistir já que se nota um autismo da sociedade em geral, e do poder político em particular, perante as denúncias, quer da própria Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (através dos seus relatórios de actividades), quer de algumas ONGs.  Infelizmente, o trabalho destas ONGs não tem levado a mudanças significativas, assistindo-se, inclusivamente, ao apagamento dalgumas delas por inclusão no aparelho e funcionamento de Órgãos do Estado, num colaboracionismo reprovável cujos resultados se traduzem na manutenção da desumanidade do sistema prisional. Por outro lado, o passo positivo dado há já muitos anos, de descriminalização do consumo de drogas, não foi acompanhado duma nova filosofia para esta problemática das drogas e sua comercialização, continuando-se uma política de combate que se tem revelado infrutífera ao invés de encarar a realidade, enquadrando-a legalmente (vejam-se os exemplos já conhecidos do tabaco e do álcool).
Chegados a 2017, não resta outra alternativa que não seja a continuação do combate a este sistema, desajustado dos valores civilizacionais construídos na segunda metade do século XX. É gritante a necessidade de descongestionamento das prisões portuguesas e de diminuição da duração das penas. A alteração do código penal e a aprovação duma amnistia são atos urgentes que só a ausência de coragem política impede de concretizar.


O actual sistema de justiça é frio, desumano e tecnocrático, menorizando e desconsiderando os reclusos, ignorando que na sua frente estão pessoas e não autómatos. As insuficiências, arbitrariedades, incompetência e desleixo das estruturas e pessoas que suportam o sistema, não respeitando os direitos dos reclusos legalmente reconhecidos, têm de ser corrigidas. A destruição das famílias provocada pelas prisões não pode continuar.

Temos de nos empenhar na construção dum outro sistema, humano, belo, solidário, fraterno, cristão. Temos de derrubar as prisões como a última instituição medieval que subsiste neste início do século XXI, abrindo caminho para a consideração da liberdade como valor absoluto. A crescente aceitação da justiça restaurativa, em que o foco se desloca do perpetrador do crime para o ato e a sua reparação, pode constituir um passo para a abolição das prisões.
Temos de centrar a atenção nas implicações concretas das prisões na vida dos reclusos, das suas famílias e no ressarcimento dos danos provocados pelo crime, mas sem nos deixarmos arrastar pela análise pseudo-científica que se traduz, muitas vezes, numa masturbação intelectual ineficaz para a resposta sobre a consideração da liberdade como valor absoluto.

Atentemos na reflexão que nos foi legada por Sophia de Melo Breyner Andresen: “A civilização em que estamos está tão errada que nela o pensamento se desligou da mão.”

“O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente.” 
FIÓDOR MIKHAILOVICH DOSTOIÉVSKI



Na construção das bases duma sociedade justa e pacífica e na convicção de que a felicidade humana está ligada, umbilicalmente, à existência em paz duma consciência esclarecida, importa intervir para que o trilhar do caminho da vida seja feito sobre pilares de ética e cidadania, ao arrepio dos caminhos assentes em valores primários que, infelizmente, são o suporte das políticas que actualmente governam o Mundo, apesar das declarações hipócritas de muitos governantes que nos querem fazer querer o contrário, assim influenciando o comportamento das pessoas. A via para a liberdade passa por cada pessoa interiorizar o seu compromisso com essa liberdade. Já Agostinho Silva nos dizia num dos seus bonitos poemas:
            “...
A primeira condição para libertar os outros
            É libertar-se a si próprio.
...”


Manuel Hipólito Almeida dos Santos


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