terça-feira, 20 de maio de 2008

O Terrorismo no Triunfo da Polícia e do Medo

O Terrorismo no Triunfo da Polícia e do Medo

Parece haver uma contradição na proclamação simultânea do triunfo da polícia e do medo, já que seria de esperar que quando a polícia triunfa é porque foi reforçada a segurança dos cidadãos e, por conseguinte, a diminuição do sentimento de medo.E pode-se dizer que há um triunfo da polícia, em sentido restrito, e dos órgãos intervenientes na justiça, em sentido lato? Pode-se! Mas não no sentido da sua participação na diminuição da insegurança, na diminuição da criminalidade e numa postura de cidadania (ainda não há muitos anos os polícias tinham a alcunha de “cívicos”), mas sim no contínuo reforço, nem sempre justificado, de mecanismos postos à sua disposição, com perda dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Após a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948, a humanidade encetou um caminho de construção dum conjunto de pilares que proporcionassem à comunidade mundial uma convivência mais harmoniosa, solidária e de valorização dos referenciais de cidadania. Neste sentido, foram aprovados os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, a Convenção dos Direitos da Criança, a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desunamos e Degradantes, a Convenção contra Todas as Formas de Discriminação Racial, Os Princípios e Regras Para o Tratamento de Reclusos, etc…, etc…, etc… .
Passados mais de 50 anos da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a comunidade internacional passou a dispor de mais de duas dezenas de grandes instrumentos jurídicos de respeito, valorização e promoção dos direitos humanos universalmente consagrados, que estão em vigor em mais de 100 países, em que se incluem todos os que integram a União Europeia, já que a ratificação desses instrumentos os tornou Estados-Parte e, portanto, vinculados à sua observância.
Enquanto se foi construindo este caminho, assistimos a manifestações alargadas de regozijo pelos passos dados e, também, a declarações permanentes de respeito pelos compromissos assumidos, por parte de muitos dirigentes políticos actualmente no poder, assistindo-se ainda, até há pouco tempo, a um progresso efectivo assinalável no campo dos direitos civis, políticos, culturais, económicos e sociais.
De repente, parece que tudo o que se construiu de nada vale. Nos últimos anos assiste-se a um retrocesso preocupante nas declarações de compromisso anteriormente feitas de aprofundamento do já consignado, assim como a posta em causa de princípios até há pouco considerados intocáveis. São as intenções de buscas domiciliárias, de dia e de noite, por parte das forças de segurança sem mandado judicial; é o acesso indiscriminado às agendas telefónicas dos cidadãos com o arquivamento do registo de todas as chamadas telefónicas efectuadas; é o possível não conhecimento, injustificado, do executado da penhora de bens por solicitadores judiciais; é o cruzamento de bases de dados das mais diversas instituições com prejuízo do direito de salvaguarda da vida privada; é a criação de figuras jurídicas aberrantes para permitirem a detenção e o tratamento degradante de presumíveis terroristas (muitos dos detidos foram libertados sem acusação, após anos de detenção!); é a constatação da ineficácia e inutilidade do sistema prisional, apesar do crescente aumento do número de presos, de prisões, de juízes e de tribunais, com os custos inerentes que começam a ser insuportáveis, quando o caminho deveria ser o da busca das vias para a diminuição da criminalidade; etc… . E já não se fala na crise social com a precaridade no trabalho (ou a certeza do desemprego), no agravamento do fosso entre pobres e ricos, na passividade (ou com declarações de circunstância) perante o dumping social que a globalização está a criar com o alargar da miséria e da exploração humana em todo o mundo, e por aí fora. Implanta-se um outro medo: o medo de viver.É, enfim, a consumação do 1984 de George Orwell.
Mas, entretanto, continuam em vigor os referenciais de direitos humanos nos países que agora deles se afastam. E porque não assumem a postura ética de derrogarem os instrumentos jurídicos que querem deixar de cumprir? Que legalidade é esta de se ser Estado-Parte dum instrumento jurídico e aceitar servir uma política diferente? Quem ouve as instituições e as pessoas que trabalharam na construção desses instrumentos referenciais a denunciarem o seu incumprimento?Uma sociedade mais segura, tolerante, fraterna, justa e perfeita só é possível com o respeito pelos direitos humanos universalmente consagrados, empregando a força, beleza e sabedoria que conduzem a uma construção sólida. O caminho da repressão, com desrespeito dos valores básicos já aceites como necessários, só conduz à desigualdade, à injustiça, à insegurança, ao ódio e à vingança.
A violência não se combate com mais violência e os Estados não podem ser cultivadores de tal postura. Os Estados têm de ser o exemplo da Cultura da Paz, tão enfaticamente enunciada mas tão pouco visível no tempo presente. A menos que baixemos os braços à constatação de Sophia de Mello Breyner Andresen nos últimos anos de vida: “ A civilização a que chegamos é tão errada que nela o pensamento se desligou da mão”.
O artº 21º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito de resistência a qualquer ordem que ofenda os direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não for possível recorrer à autoridade pública. Se eu invocar este preceito constitucional estarei a caminho de ser considerado terrorista?
Agosto - 2005

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