terça-feira, 20 de maio de 2008

O Sobreendividamento e o Modelo Polít./Econ/Social

O Sobreendividamento e o modelo político-económico-social

O que são o endividamento e o sobreendividamento?É consensualmente admitido que o endividamento é a situação em que alguém é devedora de valores perante terceiros em dimensão comportável com os seus rendimentos, dentro dos prazos previstos para a liquidação das dívidas.Já o sobreendividamento é a situação em que a dimensão dos valores em dívida não permite a sua liquidação dentro dos prazos previstos.Tendo em conta o tema deste seminário (Crédito ao consumo e o endividamento familiar) parece-me importante a caracterização das situações que levam a que alguém seja colocada na posição de endividada ou sobreendividada .É inquestionável que a situação ideal para os consumidores é aquela em todos os seus compromissos e necessidades possam ser satisfeitos com os rendimentos disponíveis a cada momento, havendo ainda que considerar um aforro para situações futuras de carácter imprevisto. Óbviamente que o tipo de sociedade subjacente a este modelo terá de ter uma filosofia de organização político-económico-social determinada para este objectivo, nomeadamente em termos de defesa da liberdade, segurança de rendimentos, protecção social e de adequação da distribuição do produto em termos equitativos.E o que se passa neste final de século relativamente a estes quatro factores e quais são as características do modelo vigente?Para responder vamos ver quais são os grandes vectores que determinam o modelo de sociedade que governa praticamente todos os países ocidentais e a maior parte dos países de todo o mundo. É pacificamente reconhecido que a opção pela globalização da sociedade, começando pela globalização da economia, comporta riscos enormes na defesa e protecção dos consumidores, nomeadamente:
- Aumento do volume de importações de mercadorias provenientes das mais diversasorigens, com a dificuldade inerente de controle de qualidade já que a produção dos artigos de grande consumo tende a deslocalizar-se para países de mão de obra barata e em que normalmente a obediência a padrões de qualidade e de respeito por normas de defesa do consumidor é praticamente inexistente. O seu baixo preço seduz o consumidor a comprar sem reflectir.
- Concentração da produção de artigos de grande consumo em empresas agrupadas emholdings, possuidoras de grande força junto dos governos que os impede de tomarem medidas de defesa dos consumidores (Ex:Bancos/Seguros/PPR,no crédito à habitação)
-Privatização das grandes empresas do sector público, ou abertura ao sector privado de sectores tradicionalmente públicos, em grande número das quais quase monopolistas no mercado, e que sem concorrência ou com um pequeno número de empresas que lhes permite concertarem-se, e sem a moderação do Estado poderá permitir a prática de políticas em que o consumidor quase não tem alternativa (Ex: Portugal Telecom , EDP, CTT, etc);
- Quase inexistência duma preocupação humanista na política educativa, transformando o cidadão em mero agente produtor/consumidor com pouca consciência social (Ex: a cada vez menor participação dos cidadãos nas suas associações);
- Modelo de sociedade que apela cada vez mais ao cidadão como agente passivo e não agente activo (Papel das televisões – o cidadão come aquilo com que a televisão o tenta e não aquilo que conscientemente decide, logo aquilo que é suportado por quem tenha poder económico para passar muitos spots o que não é sinónimo de garantia para o consumidor)
- Enfim, um modelo de sociedade que pode transformar o cidadão em consumidor nato ainda que não possua a formação e solidez económica para tal (Ex: endividamento excessivo – o nº de sobreendividados e suicídios é apenas visto como questão estatística).Em síntese: Um modelo que não coloca em lugar importante a ética no consumo.
A dinâmica da sociedade de hoje altera rápidamente os enquadramentos em que se movem os consumidores, como por exemplo:
- O Estado é menos interveniente (Controle legislativo; Justiça, etc...).
- Há um acréscimo de poder das organizações de grande poder económicoe de influência política (Banca; multinacionais, etc...).
- Há um refinamento elevado das mensagens publicitárias (recursostecnológicos; erotismo; vedetismo, etc...).
- Há um poder tremendo nos canais televisos ( A TV é a única fonte deinformação para milhões de portugueses – A soma das tiragens dosdiários portugueses pouco ultrapassa os 200.000 exemplares).
- Há uma menor disponibilidade dos cidadãos para se “preocuparem”.
É fácil de prever novas frentes num futuro próximo como as televendas , as compras pela Internet e a violação da privacidade dos cidadãos.Perante esta situação, fácil é concluir que o consumidor se encontra em posição de fragilidade. E é demagógico apelar a deixar o mercado funcionar, já que não nos encontramos perante parceiros com igual poder de intervenção. Ou será que os consumidores têm alguma intervenção na redacção dos contratos de crédito à habitação e ao consumo? Qual é o poder negocial que os consumidores têm nas garantias exigidas pelas entidades financeiras de hipoteca, fiadores, seguro de vida e seguro de crédito nas companhias de seguros impostas pelas financiadoras ? Que taxas podem negociar nestes casos ? É isto o regular funcionamento do mercado ? E as taxas, comissões e juros de mora cobrados sem prévio aviso ? Que benefício têm retirado os consumidores da baixa da taxa de juro? Não é a própria Secretária de Estado da Habitação, Dra. Leonor Coutinho que diz que a baixa das taxas de juro não tem feito baixar o preço das casas? Quando um consumidor compra um bem por um preço mais alto que o devido quem ganha? O produtor/vendedor e o financiador! O prejudicado é só o consumidor.Perante este quadro, o endividamento aparece ao consumidor como uma situação permanente e não como uma situação para resposta a necessidades extraordinárias. A passagem ao sobreendividamento é um risco próximo.Aliás, o que se verifica noutros países e os indicadores em Portugal não prognosticam um futuro radioso. O governador do Banco de Portugal já lançou o alerta. O Instituto do Consumidor tem vários trabalhos e estudos, alguns deles publicados na sua revista “ O Consumidor”, sobre esta questão (E aproveito a oportunidade para felicitar o Instituto do Consumidor pela sua excelente revista e pela qualidade dos temas que tem tratado). Os dados estatísticos conhecidos são preocupantes: Entre Fevereiro de 98 e Fevereiro de 99 o montante de empréstimos não pagos na data aumentou 11%; O endividamento cresceu 600% entre 1991 e 1997; O crédito a particulares aumentou 36% ao ano, nos últimos 5 anos enquanto o crescimento económico foi de 2,6%; Em alguns tribunais de Lisboa 80% dos processos são de dívidas; etc...etc...etc...A acrescer a tudo isto verifica-se um incremento na instabilidade de emprego, com a respectiva insegurança de rendimentos, um aumento na disparidade da distribuição do rendimento, uma necessidade de recurso a mais de uma fonte de protecção social, incentivada pelo próprio Estado, com os custos inerentes, enfim, um conjunto de situações que coloca o cidadão/consumidor de baixos e médios recursos em risco de não conseguir solver os seus compromissos de forma normal.Não é por acaso que personalidades relevantes vêm alertando a opinião pública. Ainda recentemente o Dr. Augusto Mateus, ex-Ministro da Economia, disse que com a caracterização da situação actual ( aumento de crédito a particulares; diminuição de crédito a empresas e diminuição da taxa de poupança), estamos num modelo não sustentável a prazo. Mais radical foi Jens Ring, responsável na DG XXIV da Comissão Europeia, dizendo que primeiro de tudo “é preciso mudar o estilo de vida”.Qual tem sido o efeito destes alertas?De substancial o mais visível foi o anúncio em 15 de Março último (Dia Mundial do Consumidor), pelo Sr. Ministro, Engº José Sócrates, da intenção do Governo em legislar sobre os cidadãos sobreendividados, atitude esta que foi saudada pela DECO como necessária. Mas, além disto, importaria que o aliciamento dos consumidores deixasse de ser feito de forma insidiosa e primária (telefone na mão, dinheiro no bolso; ou este cheque no valor de 500 ou 1.000 contos é seu, o pagamento logo se verá; ou, ainda , quer um cartão de crédito imediato de 300 contos?); importaria que a publicidade ao crédito não recorresse a tentações com mensagens carregadas de erotismo, com recurso à utilização de crianças, ou com mailings agressivos e pouco éticos; importaria que não se empolassem as facilidades, pois com tanta facilidade a apetência pelo ter aumenta. Tendo em conta que não se vislumbra qualquer dinâmica de mudança nos vectores que suportam o actual modelo político-económico-social, responsável pelo quadro traçado, importa que as medidas atenuadoras dos impactos decorrentes contenham princípios de respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, internacionalmente consagrados em tratados e convenções de que Portugal é Estado-Parte, nomeadamente assegurando o direito à liberdade, à individualidade, à privacidade e à dignidade. É que se assiste já a intenções de criação de bases de dados com elementos susceptíveis de colocarem em causa estes princípios, indo-se ao ponto de se admitir que elas contenham informações sobre cidadãos com comportamentos exemplares (Bases de dados positivas). Isto é inaceitável ! O que hoje já se faz nas bases de dados existentes ultrapassa as necessidades dos fins em vista. Se algo há a fazer é limitar a intromissão na vida privada dos cidadãos, que já está a ser violada.No fundo, é preciso modificar a corrente que considera o consumidor como objecto de negócio, pois que, antes do mais, um consumidor é um cidadão com dignidade.
(Comunicação apresentada no Seminário “Crédito ao Consumo e Endividamento Familiar” – 28/06/99)

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