terça-feira, 20 de maio de 2008

A Hegemonia do Poder

A Hegemonia do Poder

É preocupante a constatação, cada vez mais evidente, do cerco que o poder político vem fazendo às organizações independentes. Ora infiltrando quadros seus nessas organizações (nada o pode impedir), ora tornando-as dependentes financeiramente (através de subsídios ou da “encomenda” de estudos ou trabalhos), ora convidando-as para participarem na gestão do poder (como consultores ou como membros de grupos de trabalho).Este tipo de assimilação, pela fachada democrática de que se reveste, é de difícil contestação, e as suas consequências são fáceis de calcular: perda de independência; perda de capacidade crítica; submissão encapotada ao poder político; desmobilização de activistas descomprometidos. Fica o campo aberto para o compadrio, o oportunismo, o acesso às benesses do poder.A dificuldade de denúncia destas situações é, desde logo, patenteada pelo argumento do não impedimento de qualquer cidadão ter acesso ao exercício de qualquer cargo público, quer pessoalmente, quer representando uma entidade. A única defesa consiste em as associações que se pretendem independentes estipularem, de forma clara e sem subterfúgios, a incompatibilidade do exercício simultâneo de cargo ligado ao poder político com o de activista da associação, seja ele qual for, e de considerar inelegível para funções dirigentes quem já teve algum vínculo importante ao poder político.Das várias associações, ditas não governamentais, existentes, com relevância nacional, quase todas se encontram já na órbita do poder político. Associações de consumidores (quer dependentes económicamente, quer com exercício simultâneo de cargos nas associações e no poder político), associações ambientalistas e ecologistas ( as suas receitas são maioritáriamente constituídas por subsídios governamentais ou trabalhos para o governo), sindicatos (as quotas dos associados são uma parte menor das receitas sendo o restante de fundos governamentais, nomeadamente do fundo social europeu), associações de direitos humanos em que até a Amnistia Internacional começa a integrareste tipo de relação promíscua.Ficam de fora, por enquanto, algumas entidades , tipo Rotary e Lions. A sua acção não incomoda o poder político e têm-se revelado pouco activas, ou até desinteressadas, em assumir qualquer projecto que belisque o modelo se sociedade em que se inserem . Contribuem para diminuir algumas problemas sociais, praticam a solidariedade e estabelecem relações pessoais cordiais entre os membros dos clubes, o que por si só já é louvável e de salientar, mas, quer a sua forma de funcionamento e governação, quer a sua heterogeneidade de composição, não lhes permite irem mais além do que enunciar as questões nas palestras que realizam. Têm um espaço próprio do qual não têm demonstrado querer em sair.Por isto, não se têm mostrado interessantes para o poder político as colocar debaixo do guarda-chuva, a que, eufemísticamente, chamam participação da sociedade civil na construção da sociedade democrática. Para este guarda-chuva anestesiante apenas interessa quem incomoda ou quem serve de muleta.Esta postura do poder político, de afogamento das alternativas, de amordaçamento subtil das vozes independentes, da homogeneização da poder e da sociedade, conduz a uma forma de totalitarismo contrário à essência da democracia. É que numa sociedade verdadeiramente democrática não só se deve deixar respirar, sem tentações, quem quer exercer a liberdade no verdadeiro sentido do termo, como deve ser fomentada a existência de alternativas. A inexistência de sentinelas conduz às ditaduras.Como exemplo recente, refira-se a aceitação, por parte da Secção Portuguesa da Amnistia Internacional, do convite do governo português para integrar a Comissão Governamental para as Comemorações do 50º Aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta aceitação é um passo que fere os princípios de isenção e independência tão árduamente conquistados ao longo da vida da A.I.. Quer no seu âmbito (comissão de nível governamental), quer na sua composição (maioritáriamente composta por membros do governo), quer na sede de funcionamento (Presidência do Conselho de Ministros), quer no objectivo (garantir a adequada interligação do mesmo plano com outras iniciativas governamentais previstas para o corrente ano), quer no financiamento (será suportado por dotação provisional do Ministério das Finanças), esta comissão tem um cariz governamental inequívoco. O dever-se saudar a iniciativa do governo português de celebrar o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não quer dizer que a Amnistia Internacional tenha de estar na comissão. Antes pelo contrário, a A.I. tem um programa de comemorações antónomo e que vai, certamente, mais longe do que irá a comissão. Por outro lado a A.I. sempre apareceu perante a opinião pública desligada dos governos. Era a sua marca de prestígio, de credibilidade, de respeito, de confiança. Esta machadada na imagem da A.I. tem custos irreparáveis.Para a perda de independência destas organizações, cuja existência só faz sentido se forem independentes, tem contribuído o alheamento dos seus membros, deixando a sua direcção entregue a quem interessa esta proximidade com o poder político, retirando-lhes representatividade e carácter democrático. É lamentável que a independência de organizações com um passado exemplar de verticalidade esteja a ser posta em causa por dirigentes sem qualidade, acessíveis às mesuras e benesses do poder político, alteração esta que está a ser feita de forma subtil e não denunciada. A permanência continuada destes dirigentes na direcção destas organizações torna-os autistas profundos, que depois de estarem no poder só saem empurrados, se ainda na organização estiver alguém com verticalidade e paciência para os empurrar.É esta a caracterização da maioria das organizações chamadas não governamentais. E é por isto que se assiste à deserção dos activistas descomprometidos, apenas preocupados com a defesa dos ideais.Triste sinal dos tempos.
(Artigo publicado no semanário “Expresso” Julho de 1998)

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