terça-feira, 20 de maio de 2008

A Cidade e o Cidadão

A Cidade e o Cidadão

Os Aspectos Sociais, Políticos e Económicos

Inesperadamente, este final de século está a colocar novas e preocupantes facetas nas relações entre os cidadãos e entre estes e a organização social. Valores inquestionáveis até há pouco tempo (ética, honradez, civismo, gratidão, lealdade, etc...), valem pouco mais que nada no modelo de sociedade em vigor, reduzindo à insignificância conceitos que perduraram e modelaram sociedades durante longo tempo.António Sérgio dizia que únicamente os bons cidadãos podem reivindicar com justiça os benefícios dum bom governo.Com o modelo actual, sob a capa da igualdade, mas em que o que é importante é caçar votos, é não só irrelevante saber se são de bons cidadãos, como impossível face ao voto secreto. Logo, esta falaciosa igualdade traz uma nova faceta na luta pelo poder e no seu exercício, em que bons ou maus cidadãos são iguais instrumentos, servindo a prática do bem apenas para a paz de consciência dos que o praticam..O poder nas cidades é hoje exercido longe dos valores em que se baseava o conceito de democracia, que pugnava pela eleição dos melhores e não dos mais bonitos ou daqueles que utilizam o marketing mais agressivo.Assiste-se ao apagamento do ideal de servir no exercício da coisa pública, simultaneamente com o apagamento da solidariedade como valor básico na consciência dos cidadãos. É o ter pelo ter!Assim sendo, não é de estranhar a ausência da rectidão e da coerência no quotidiano, renegando hoje o que se defendeu ontem ou utilizando vias pouco claras no atingir de objectivos. Tudo isto em nome da eficácia dum modelo de sociedade fria, oca, tecnocrática, que só apraz a quem dela tem oportunidade de se aproveitar. Uma sociedade de mortos. Mortos de sentimentos, mortos de humanismo. Mortos ou narcotizados. Mortos ou anestesiados. Mortos ou inactivos. Mas mortos que votam.Uma nova faceta que se impôs sorrateiramente, quase sem se dar por isso, é uma nova concepção de Estado de Direito, assistindo-se à subversão dos princípios clássicos do Estado de Direito, com a crescente implantação do Estado Totalitário de Direito, estado este em que o que conta são os valores formais, manifestando pouco empenhamento na individualidade de cada pessoa e no reforço do civismo. Já Afonso Botelho em “Origem e Actualidade do Civismo” dizia:“... . Na fraternidade profana em que vivemos só o acaso poderá permitirque a maioria coincida com o juízo de Deus ou com a razão verdadeira.Quase sempre corresponde a uma vitória do mais forte que não será, comoé evidente, o mais justo.Por ser assim, é que encontramos tão frequentemente usada a expressão:maioria esmagadora. Não se repara, tal é o hábito, que ao usarmos estaexpressão não estamos a fazer o elogio da maioria mas a condená-la como,assim desprevenida de qualquer virtude, efectivamente merece.Já Almada Negreiros dizia a propósito da Arte: A opinião... abrange umatão colossal maioria que receio que ela impere por esmagamento.”Uma sociedade assim conduz, inevitávelmente, à desigualdade, à insegurança e à repressão. E isto é visível nas nossas cidades e nos cidadãos.O leque entre ricos e pobres aumenta na sua acentuação, a segurança aparece como a principal aspiração de cidadania, nunca houve tantos presos nas cadeias, etc,etc,etc... .É um escândalo e uma vergonha que se fique impávido numa altura em que 20% dos cidadãos mais ricos ganhem 150 vezes mais que os 20% mais pobres. Não é 1% nem uma franja marginal. São milhões de pessoas que vivem em cima de outros milhões.A desigualdade no acesso ao desenvolvimento acentua-se, com o desencanto de se manipularem as estatísticas para demonstrar que o desemprego não é tão alto quanto isso. E como se fazem as estatísticas? E os que estão fora das estatísticas? E o crescimento do emprego precário? Não são seres humanos os arrumadores, os mendigos, os excluídos, os trabalhadores a recibo verde? É que de acordo com o artº lº da Declaração Universal dos Direitos Humanos “ Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e de consciência devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”.Por outro lado, a segurança e a liberdade não são sinónimos de repressão nem são hierarquizáveis entre si. Ainda há poucos anos, na Declaração de Viena das Nações Unidas, ficou expresso que todos os direitos humanos são universais, interdependentes e indivisíveis.A cidade de hoje não pode ver os seus cidadãos como potenciais criminosos ou delinquentes, vigiando-os e controlando-os. É inaceitável que se assista, à boa maneira orweliana, à colocação de câmaras de vídeo nas ruas das cidades, deixando a liberdade e a privacidade de qualquer cidadão à mercê de quem visiona o vídeo. E não se diga que os inocentes não têm de ter medo. O simples facto de serem inocentes não os pode colocar ao nível dum criminoso. Os mecanismos de protecção dos cidadãos têm de ser encontrados no reforço da educação para a cidadania e não no aumento da repressão. O mesmo se pode dizer do abuso de controle da identificação. Em quase todos os locais os cidadãos são controlados com a exigência do respectivo documento de identificação, indo ao ponto do abuso de retenção do bilhete de identidade, documento este pessoal e intransmissível.Uma só referência aterradora sobre o que pode estar para vir. Já este ano, foi divulgado um relatório do Parlamento Europeu intitulado “Uma avaliação das tecnologias de controlo político” em que todos os governos da União Europeia concordaram em cooperar com os Estados Unidos da América para criar sistemas de escuta e vigilância de qualquer cidadão ou grupo.A cidade tem de mudar. Temos de dizer não à cidade do medo, da intolerância, policial , repressiva e agressiva.Os cidadãos têm de assumir os seus direitos e, também, os seus deveres. O dever da solidariedade, o dever da tolerância, o dever da honradez, o dever da honestidade, o dever da lealdade. Estes deveres não estão ultrapassados por muito que os apelos ao primarismo e à fruicção egoísta o queiram fazer crer.Os modelos governativos actuais, que a globalização mundial os torna quase todos iguais e que assentam na frieza tecnocrática, têm de ser combatidos.Nesta região do Porto, por ex:, tem-se assistido ao desaparecimento de unidades produtivas de grande significado e expressão, com a inactividade forçada de trabalhadores qualificados, apenas porque a conjuntura económica o impõe. E o capital de experiência existente? E o significado cultural subjacente? E as relações afectivas criadas? Provávelmente, os gestores tecnocratas, apenas preocupados com a eficiência económica, não sabem que os trabalhadores e empresários criam relações afectivas como seu trabalho e quando acabam com este, acabam com uma parte do seu ser.O interesse colectivo não é determinado, apenas, pela eficiência económica.A tecnocracia não pode ser a corrente dominante nas nossas cidades. Os tecnocratas têm uma menor consciência dos direitos e deveres de cidadania e, por conseguinte, não podem ser os guias dos cidadãos. “As pessoas são sentimentos, não são coisas”. Isto exige que se reforçe a componente humana da cidade e dos cidadãos.Havendo um manifestar frequente dalgumas feridas das cidades, continua-se a assistir ao agravamento das suas causas e efeitos.Como exemplo, talvez o mais grave, cito a solidão. Veja-se se não é a solidão que está por detrás de quase todos os actos anti-sociais. Na droga, nos conflitos pessoais, na intolerância, no individualismo, está sempre associada a solidão. E o que tem feito a cidade para retirar a solidão às pessoas? Tem-lhe dado uma educação humanista? Tem contribuído para a sua estabilidade psíquica? Tem-lhe defendido os seus referenciais morais, arquitectónicos e de urbanidade? Infelizmente, parece-me não se poder responder de forma positiva a estas interrogações.A cidade está mais virada para o agrado dos eleitores do que em manter a humanidade do cidadão. A cidade está mais preocupada em recrear do que em formar ou cultivar. A cidade está mais preocupada em aumentar o ter do que em valorizar o ser.As mudanças profundas nos espaços das cidades, com séculos de história e de referenciais humanos, em que pais, avós, filhos, irmãos, vizinhos e amigos mantinham convivência quotidiana, em contraponto com as urbanizações suburbanas, e mesmo urbanas, que precisam de muitos anos para se humanizarem, é o exemplo do empurrão para a solidão. Esta leva o cidadão para o individualismo em que aparece triunfante o audiovisual embrutecido, alienante, primário e de apelo ao que há de mais acéfalo, arrebanhando o cidadão e transformando-o no ser passivo, mero instrumento de produção e consumo. Afinal, aquilo que os grandes dominadores da sociedade ambicionam: “Os cidadãos deverão ser aquilo que os interesses do poder pretendem que sejam”. Mas em democracia não deveriam ser os cidadãos que, de forma consciente, deveriam orientar o poder?O repensar, o discutir, o questionar do papel da cidade e do cidadão é a chave para criação duma sociedade mais humana, em que o cidadão goste verdadeiramente de viver na cidade.Neste ano em que se comemora o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importa ter presente que os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes. Isto quer dizer que a eficiência económica não pode ter o primado do que quer que seja.Os cidadãos devem assumir-se como cidadãos enquanto é tempo. Não podem deixar que na cidade impere o medo, a intolerância, a polícia, a repressão.O pesadelo de George Orwell ,em 1984, não deve ser o guia da cidade e do cidadão.
(Comunicação apresentada no seminário “A Cidade e o Cidadão” – Porto –18/04/98)

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