terça-feira, 20 de maio de 2008

Aspectos Éticos das Pessoas em Situação de Doença

Aspectos Éticos das Pessoas em Situação de Doença

(Comentário à comunicação do Dr. Van der Zeidjen –Associations of Patients affected by Chronic Diseases)
Ao Sr. Dr. Van der Zeidjen quero apresentar o meu acordo geral com a sua comunicação sobre o tema em epígrafe. As preocupações que manifesta e os caminhos que aponta devem merecer-nos cuidada reflexão.Como exemplo penso que se pode destacar:
- Há um distanciamento e uma dificuldade de compreensão muito grandes das pessoas saudáveis para com os doentes crónicos;
- Os cuidados de saúde estão centrados na doença e não nos doentes;
- Os governos têm vindo a diminuir a importância e a desempenhar um papel menos relevante na sua relação para com os doentes, havendo uma crescente influência do mercado;
- Os doentes têm de ser vistos com pessoas no seu todo e não como meros pacientes;

As associações de doentes desempenham uma importância vital na sensibilização da comunidade para com as características específicas dos doentes, sendo necessário que observem os seguintes princípios:
- O direito ao auto-governo;
- O direito à sua individualidade;
- O direito a manter uma rede social;
- O respeito pela pessoa no seu todo;
- O reconhecimento da imagem da doença na sociedade.
Façamos algum desenvolvimento destes aspectos.Na verdade todos sentimos que na organização social vigente (e com a famigerada globalização, cada vez mais formatada), os doentes constituem um mundo à parte dessa organização. E desde logo, porque sendo a grande preocupação dos modelos políticos dominantes o crescimento económico, a diminuição da inflação, as formas de convergência económica, etc..., os doentes representam um custo que quem governa quer reduzir ao máximo possível. Por isto, se assiste a tão grande preocupação com os custos da saúde, reduzindo a comparticipação governamental, o que quer dizer que a solidariedade aproxima-se do conceito de palavra vã.A mesma marginalização se pode constatar na pouca consciência que as pessoas saudáveis têm dos problemas específicos dos doentes. A decrescente valia dos valores ético-humanístico-culturais na sociedade actual reduz o campo de interesses e preocupações dos cidadãos, deixando-os quase só virados para os seus interesses pessoais, que cada vez mais são determinados pelo sistema e não por vontade própria, esquecendo-se, inclusivamente, que amanhã poderão vir a ser doentes.E aqui peço ao Sr. Dr. Van der Zeidjen autorização para colocar três interrogações a uma afirmação que faz na sua comunicação. Diz o Sr.Dr. van der Zeidjen: “.... . Olhando para as pessoas das ilhas, as pessoas do continente vêem-nas como pessoas vivendo na miséria. Vivendo uma vida amputada. ... “ Mas Sr. Dr., será que vêem? Ou será que afastam o pensamento nos outros? Não será que a generalidade das pessoas consideram as preocupações uma maçada, mesmo que sejam preocupações humanitárias? Ainda não há muito tempo, o editor da página de política internacional dum grande jornal português me dizia que os direitos humanos e o sofrimento não sensacionalista tinham pouco espaço na sua página porque “não vendiam”. Hoje, o lucro, o marketing, a fruicção primária tomaram conta da sociedade. As emoções estão a lutar e a perder a batalha com as sensações, quando deviam estar do mesmo lado da barricada.Um outro aspecto importante mencionado na comunicação, que importa ter em consideração, é a atitude que uma grande parte dos profissionais de medicina toma nas suas relações com os doentes . Trata-se da importância dos sintomas relativamente à pessoa do doente e na necessidade dos doentes serem completamente informados de todos os aspectos da sua doença e de participarem activamente no seu tratamento. Mais uma vez se coloca a questão de se centrar o foco nas pessoas e não no tecnicismo. Mas isto implica uma definição clara sobre a importância relativa dos conhecimentos e dos comportamentos. Como podemos querer que a dominante sejam as preocupações de natureza humanista e por outro lado se reduz a componente lectiva, nas escolas, das disciplinas das humanidades? Não assistimos a um constante reclamar de que precisamos de mais técnicos? Mas não se assiste a reclamar que precisamos de mais pessoas!Também aqui tem de haver uma inversão. As pessoas são mais importantes que as coisas e não se deve querer transformar as pessoas em coisas, em meros instrumentos produtivos. A sociedade em geral (família, escola, comunicação social, empresas, etc...) tem de valorizar cada vez mais a vertente humanista dos cidadãos . Até porque bons cidadãos são bons técnicos, mas o inverso nem sempre é verdadeiro.Aqui chegados, importa ver como podem os doentes ter consagrada a consideração da sua condição humana.No quadro das grandes preocupações que determinam a dinâmica dos nossos governantes políticos neste final de século, o humanismo é uma figura de retórica. É-lhe dada grande importância nos discursos mas fica em grau subalterno na prática quotidiana.Este quadro obriga os directamente afectados a construirem alternativas para a resposta aos seus problemas, de que as associações de consumidores, associações de doentes, associações de pais, etc..., são o exemplo mais frequente.E é inquestionável que o ênfase que o Sr. Dr. van der Zeidjen coloca nas associações de doentes tem pertinência. E a sua eficácia será tanto mais conseguida, quanto mais observados forem os seguintes moldes de funcionamento:
- Independência administrativa, económica, técnica e funcional;
- Inserção num movimento alargado homogéneo;
- Direcção em moldes altruístas e de voluntariado;
- Independência perante as forças político-partidárias;
- Adesão e participação activa dos seus membros;
- Prática da solidariedade entre os seus membros e a comunidade em geral.
Observadas estas condições, está fortemente aumentada a probabilidade dum trabalho eficaz. Até porque se assiste, também, a uma tendência de agregação de pessoas com questões afins. Infelizmente, não assistimos a grandes adesões a causas por mera solidariedade. Actualmente as pessoas só se associam quando precisam de algo ou quando estão em situação particular. Mas, neste caso existe um potencial que pode ajudar a carrear os contributos que, nas circunstâncias normais, não seriam possíveis. A consciência disto está no crescimento de inúmeras organizações específicas por todo o mundo.Óbviamente que esta necessidade de nos associarmos representa mais uma solicitação a adicionar aquelas que constituem a tendência natural da vida das pessoas: família, trabalho e actividades culturais / recreativas. Mas a tal nos obriga a incapacidade do sistema de governação em colocar as pessoas como a principal preocupação.E até sou capaz de abrir um parêntesis para declarar o meu cepticismo relativamente a grandes melhorias num futuro próximo. A hipocrisia com que afirmam grandes preocupações humanistas fica desmascarada quando o primado da economia assenta exclusivamente no lucro e não na função social. É vermos como se declara que as empresas não rentáveis devem ir à falência, sem cuidar do património afectivo criado pelos afectados (trabalhadores, empresários, fornecedores e clientes), nem da contribuição para o tecido estrutural em termos sociais e culturais. Na visão neoliberal que domina, a exigência da pessoa pouco conta. A competividade, a rentabilidade, o crescimento económico, são o Norte do mundo actual.Neste sentido, compete aos cidadãos que não encontram resposta natural para a resolução do que os afecta, tentar caminhos alternativos. A associação com outros que partilham de anseios comuns reveste-se como um caminho para a solução.No entanto, não se deve ver nestas entidades o mesmo que nos desgosta e que atrás é descrito: a falta de solidariedade.É importante que as associações de doentes não sejam só entidades para resolver os problemas concretos e específicos dos doentes, mas, também, associações que praticam os valores do humanismo que transcendem os interesses imediatos.Neste ano de 1998 em que se comemora o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, importa reter o compromisso assumido pelos nossos pais ou os nossos avós de que o humanismo constitua a chave mestra dos comportamentos individuais e colectivos. E não se alegue que já se passaram 50 anos, pois esses princípios foram sufragados e ampliados por todos os países das Nações Unidas na Declaração de Viena de 1993. Infelizmente, não conseguimos passar ainda das palavras aos actos, não só não honrando o legado deixado pelos nossos antepassados, como continuando a assumir compromissos sem haver empenhamento no seu cumprimento.O trabalho a desenvolver pelas associações de doentes não pode limitar-se à defesa específica dos seus interesses imediatos, sem abdicar de exigir das instâncias políticas e da sociedade em geral a solidariedade que lhe é devida. É uma questão de fundo que a não ser observada coloca fortes limitações ao êxito do trabalho.Por outro lado, as associações de doentes devem promover junto dos seus associados uma cultura de integração social, de espírito de entreajuda, de motivação para uma vida social plena. É necessário combater o sentimento que, normalmente, se apodera dos doentes de se isolarem com a sua doença e de se preocuparem quase só com ela.Na verdade, as associações de doentes devem contribuir para a ajuda concreta à resolução dos problemas específicos dos doentes, tentando conseguir a realização dos objectivos atrás focados ( percepção plena da sociedade da problemática dos doentes crónicos; consideração do doente como uma pessoa no seu todo, garantindo a sua participação e informação no tratamento; responsabilização da comunidade pela dotação de meios necessários à salvaguarda da dignidade e do tratamento dos doentes) , e , também, contribuir para a motivação do doente na sua assumpção como pessoa, com todos os direitos e deveres dos demais.E é este apelo à solidariedade que tem de ser feito. E para que este apelo tenha resposta importa que todos o façamos e que todos contribuamos.Enfim, é preciso introduzir no consciente de todos, pessoas doentes e saudáveis, que por pouco que se tenha deve chegar sempre para ajudar os outros.
(Comunicação apresentada no V Seminário Nacional do Conselho Nacional de Ética Para as Ciências da Vida – Porto – 12/11/1998)

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